Marido coruja ou não, os avanços no combate à malária são, para o Acadêmico Victor Nussenzweig, resultado das descobertas de sua mulher, no que diz respeito à imunização de camundongos. Contrariando a ideia de que seria impossível criar uma vacina contra a doença, a Acadêmica Ruth Nussenzweig conseguiu, por meio de irradiação – processo de exposição a algum tipo de raio que quebra o DNA de um parasita – inativar o parasita da malária na glândula salivar de mosquitos. Ao injetar a substância nos animais, ela os imunizava. Hoje em dia, o mesmo princípio é utilizado na RTSS, vacina humana contra a malária. Na visão de Victor, professor da Universidade de Nova Iorque, a RTSS está longe da perfeição: ela não garante 100% de proteção e ainda tem prazo de validade. Por outro lado, esta não deixa de ser uma prova de que, apesar de sua recorrência, é possível produzir vacinas contra essa doença. Palestrante do “Simpósio Produção de Vacinas no Brasil” organizado pela ABC no fim do ano passado, o Acadêmico contou um pouco de sua trajetória como pesquisador e falou também sobre a latência, atual foco de seus estudos.

O trabalho mencionado rendeu a Ruth uma grande honraria: ela foi a primeira mulher brasileira eleita, em abril de 2013, membro da Academia de Ciências dos Estados Unidos (NAS, na sigla em inglês). Ela já era membro da ABC desde 1998. E engana-se quem pensa que a conquista pôs freio à curiosidade do casal. A partir daí, Victor e Ruth passaram a pesquisar qual seria a proteína responsável pelo sucesso dessas imunizações. Ela descobriu que, se o esporozoíto (célula causadora da malária) perdesse sua casca, deixava de ser infectante; já ele descobriu que a proteína em questão – conhecida hoje como proteína CS – reveste a casca do esporozoíto e exerce papel fundamental na invasão das células hepáticas. Apresentando ciclos complexos tanto no mosquito (Anopheles) quanto no homem, é no fígado humano que o parasita se multiplica, voltando em seguida à circulação sanguínea. Não é exagero dizer que as contribuições dos Nussenzweig serviram como base para o desenvolvimento da mais avançada vacina contra a malária até o momento, consolidando o prestígio de ambos no mundo científico e acadêmico.

Mas antes de se tornarem pesquisadores de tanto renome, Victor e Ruth já foram jovens estudantes de medicina da Universidade de São Paulo (USP). Em um tempo de inflamadas discussões políticas, ambos se identificavam com os pensamentos de esquerda. Victor era extremamente engajado: demonstrava grande interesse pela prática da política estudantil e chegou inclusive a participar de campanhas como O petróleo é nosso. Ruth, por sua vez, era um pouco mais contida e terminou por trazer o marido – que à época ainda era namorado – para o campo da pesquisa. Segundo ela, sua contribuição para a humanidade e para a saúde das pessoas seria muito maior por meio da prática científica do que da política. E não foi isso o que, de fato, aconteceu? “Ele não gosta de elogios”, brincou o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Julio Scharfstein durante o evento na ABC. Embora não se sinta confortável sendo elogiado e goste de ser chamado, sem formalidades, pelo primeiro nome, é impossível ignorar a importância de Victor Nussenzweig para a ciência brasileira.

Após sua formatura, ele cursou um pós-doutorado em imunologia no Instituto Pasteur, na França. Quando voltou ao Brasil em 1965, logo após o Golpe Militar, o casal se deu conta de que não poderia mais viver aqui. Além de todos os seus amigos estarem presos, ainda que não estivesse no país quando aconteceu a tomada de poder, o professor foi levado a interrogatório pelos militares. Para Victor, cientistas perguntam, questionam e se inquietam. E isso faz dos ideais científicos, em sua visão, opostos aos militares. Foi então que os Nussenzweig resolveram voltar aos Estados Unidos, onde dizem ser “muito mais fácil fazer ciência”. Em 1965 o Acadêmico tornou-se docente da Universidade de Nova Iorque, alcançando o cargo de professor pleno seis anos mais tarde. Companheira fiel do marido, Ruth dá aulas na mesma universidade, só que no Departamento de Parasitologia.

Mas a primeira conquista do casal aconteceu ainda durante o curso de medicina. Incomodados com o modo como era feito o diagnóstico da Doença de Chagas à época, eles passaram a estudar formas de se chegar a um xenodiagnóstico in vitro. Isso significa que, ao invés de submeterem os pacientes ao contato direto com o barbeiro – que, ao sugar o sangue de um indivíduo infectado, passa a ter o parasita se desenvolvendo dentro de seu próprio organismo – o sangue seria fornecido a ele em uma etapa posterior ao colhimento das amostras do paciente. Mas isso não foi tão fácil quanto parece. O barbeiro se sente muito atraído pela pele humana e, até encontrarem a membrana adequada para separar bicho e sangue, algum tempo se passou. Até camisinhas chegaram a ser testadas, mas o que realmente funcionou foram as tripas de boi.

Após muito tempo no exterior, Victor e Ruth estiveram de volta ao Brasil na segunda metade de 2013. O motivo da viagem era o São Paulo Excellence Chairs (SPEC), projeto da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que visa ao estabelecimento de cooperações entre instituições locais e pesquisadores de excelência radicados no exterior. A ABC aproveitou a ilustre – e rara – presença do casal no país e convidou Victor para uma das sessões de seu evento sobre vacinas, a “Contribuição da Medicina Experimental para a Vacinologia”.

E qual o atual foco das pesquisas de Victor? A latência, período de inércia dos parasitas. “Ela é muito comum em todos os organismos, mas meu real interesse é na latência dos plasmódios”, conta Nussenzweig. Segundo suas explicações, trata-se do momento de repouso de determinado organismo, ocasião em que ele fica quietinho e, de repente, “revive e volta a fazer mal aos seres humanos”. Interessado em entender a base bioquímica desse estado, seu objetivo é desenvolver uma droga que impeça os plasmódios de entrarem em estado de latência. De acordo com o seu raciocínio, se a latência é tão importante para um organismo, ele morrerá se for impedido de consolidá-la.

Ruth, por sua vez, agora mergulha nos estudos do plasmodium vivax. Ainda que seja menos fatal do que o plasmodium falciparum, ele responde por 80% dos casos de malária no Brasil, estando presente – em peso – na Amazônia e outras localidades. Em âmbito nacional, o grande nome de referência na área é Maurício Martins Rodrigues, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que também apresentou seu trabalho durante o simpósio da ABC e com quem a Acadêmica estabeleceu fortes laços de cooperação. Interessados na compra de antígenos que possam ser injetados no homem, eles aguardam a ajuda de instituições de fomento à pesquisa. De acordo com Victor, a ajuda deve vir, mais uma vez, da Fapesp.

Mas uma pergunta nos vem à cabeça em ambos os casos: se realizar pesquisa nos Estados Unidos é tão m
ais simples do que no Brasil, por que os Nussenzweig aceitaram o convite para essa temporada em solo brasileiro? A resposta é simples. Os americanos só financiam pesquisas relacionadas a doenças que sirvam aos seus interesses. Doenças parasitárias como a malária, explica o professor, não entram nessa lista.