Em 29 de agosto de 2013, segundo dia de palestras do 2º Encontro Nacional de Membros Afiliados da ABC, o foco se voltou para a questão da ética no campo da ciência. Após a exposição das linhas de pesquisa de alguns Acadêmicos, os Acadêmicos Alexander Kellner (ABC/Anais da ABC) e Jailson Bittencourt (ABC/UFBA), assim como o professor convidado José Roberto Goldim (UFRGS), atuaram no papel de provocadores, levantando alguns pontos de suma importância quando o assunto em pauta é a integridade científica. Os membros afiliados da ABC Adriana Fontes, Frank Crespilho e Patrícia Schuck foram os coordenadores da mesa redonda.
O “efeito padaria” da ciência
Chamando a atenção dos presentes para a pressão contemporânea pela produção de novas publicações, o bem humorado paleontólogo Alexander Kellner, membro titular e editor dos Anais da ABC (AABC), afirmou: “Estamos vivendo hoje sob o efeito padaria – tem que ter pão quente toda hora.” Com isso, Kellner levantou alguns pontos que, em sua visão, merecem especial atenção nos atuais contornos da ciência. De acordo com ele, a maioria das pessoas não saberia dizer com precisão o que pauta um comportamento científico verdadeiramente ético. Incluindo-se nesse vasto contingente de pessoas confusas quando esse é o assunto, Kellner contou que, durante sua trajetória acadêmica, nunca teve uma aula formal sobre o tema. A partir daí, colocou sua primeira provocação: “É necessário incluir em nossas universidades uma disciplina que fale sobre integridade científica?”
Ainda buscando ater-se a aspectos discutidos com pouca frequência, o editor-chefe dos Anais da Academia Brasileira de Ciências (AABC), que é também colunista da revista Ciência Hoje On-Line, indagou a quem compete o papel de regular a presença de coautores em um paper científico. Em seguida, questionou a real eficácia da revisão desses artigos serem realizadas por pares, procedimento conhecido como Peer Review System: “Qual o grau de interferência que o revisor tem ou deveria ter em uma publicação?” Kellner ainda ressaltou a importância de que esteja claro para a sociedade quem é o real responsável por avaliar questões ligadas à integridade científica. “Será que devemos criar uma CPI da Ciência?”, brincou, referindo-se aos atuais contornos políticos do país. Ele também falou sobre o estabelecimento de punições para casos de fraudes comprovadas e, por fim, voltou à questão da formação de pessoal, perguntando qual o modelo ideal de orientação para alunos interessados em pesquisa.
Ao realizar a síntese das discussões encaminhadas por Kellner, Adriana Fontes destacou que, em função da divergência entre os presentes, o ponto mais discutido foi numerologia versus integridade. De acordo com ela, a grande questão colocada foi descobrir qual seria a maneira mais eficaz de medir a qualidade dos trabalhos publicados. “O fator de impacto das publicações? O índice H do pesquisador?”, indagou. O grupo também propôs que as revistas científicas comuniquem a submissão de um artigo a todos os seus autores, já que por vezes o pesquisador é pego de surpresa ao saber que foi submetido um trabalho com seu nome. Segundo Adriana, outras propostas interessantes foram a incrementação da formação de laboratórios multiusuários – dos quais mais pessoas possam usufruir sem o estabelecimento de vínculo direto com o pesquisador – e a disponibilização de ferramentas e softwares para o monitoramento de plágio e fraude.
Provocador de primeira viagem
O segundo palestrante do painel foi o Acadêmico Jailson Bittencourt de Andrade, professor titular do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisador nível 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). No início de sua fala, divertiu-se ao dizer que essa foi a primeira vez em que foi chamado a um evento para provocar e, atendendo prontamente ao convite, também tratou da constante pressão para se publicar. “Essa situação foi criada pela geração anterior e potencializada pela minha, mas eu acredito que os jovens cientistas podem reverter esse quadro”, opinou.
Coordenado pelo Acadêmico Carlos Henrique de Brito-Cruz, diretor-científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o Grupo de Estudos da ABC sobre Integridade Ética na Ciência acaba de publicar um guia de práticas responsáveis no campo de pesquisa. Na opinião de Jailson Bittencourt, é importante que as discussões da Academia sobre o tema sejam mais amplamente divulgadas – dentro e fora da organização – para que os Membros Afiliados possam contribuir com suas visões e opiniões. O provocador aproveitou para acrescentar que um dos temas transversais do Fórum Mundial de Ciências, que acontecerá em novembro no Rio de Janeiro, é exatamente a questão da integridade científica.
Alguns tópicos foram abordados com maior ênfase durante a interação de seu grupo. Dentre eles destacam-se o fortalecimento do comitê de ética dentro da ABC, o papel das Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) e dos programas de pós-graduação na detecção de práticas inapropriadas e os métodos vigentes de avaliação da qualidade de trabalhos publicados. “É necessário, portanto, propor um modelo mais arrojado e eficiente, capaz de atender às demandas atuais. As agências devem reportar falhas e divulgá-las, não no sentido de apontar dedos ou penalizar, mas de reportar a detecção de atitudes que vão contra a boa conduta. Nós também achamos que seria interessante se existisse um sistema de denúncias através do qual nós pudéssemos nos manifestar caso detectássemos algo desse tipo”, afirmou Crespilho.
O membro afiliado Emiliano Medei, por sua vez, demonstrou certa preocupação em relação a essa proposta. “Eu não sou contra as denúncias”, explicou, “mas acho que incentivá-las indiscriminadamente pode gerar alguns problemas.” Bem humorado, ele opinou que é preciso ter certo cuidado ao sugerir um “disque-plágio”. Medei ainda levantou uma questão que não havia sido tratada até o momento: “É absurdo que as pós-graduações que se utilizam de animais em experimentação não forneçam aos alunos uma mínima introdução sobre o que é trabalhar com animais de laboratório. Tendo isso em vista, a Capes poderia exigir que todo estudante de pós-graduação cursasse uma disciplina de integridade científica.”
Um assunto que merece mais atenção
Fechando o quadro de provocadores da mesa estava o médico José Roberto Goldim, professor do Programa de Pós-Graduação em Medicina e Ciências Mé
dicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele possui vasta experiência no tocante à integridade científica: atuou nos Comitês de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), da UFRGS, do Hospital Moinhos de Vento e de inúmeras outras instituições hospitalares e de ensino. De acordo com Goldim, não existem muitos fóruns de discussão voltados exclusivamente para a questão da ética na pesquisa. Sendo assim, uma das sugestões de seu grupo foi a organização de um simpósio com esse tema para que todos os aspectos relacionados sejam analisados de modo satisfatório.
Assim como o grupo de Bittencourt, os pesquisadores que participaram do laboratório do terceiro provocador também se preocuparam em trazer à tona o papel das FAPs na questão da integridade. Após discutirem o tópico, concordaram que uma boa forma de punição a cientistas que apresentem comportamentos antiéticos é impedir que eles obtenham novos financiamentos para pesquisa. “Também seria interessante avaliar o desempenho dos revisores das revistas científicas em relação aos artigos que eles avaliaram”, completou Patrícia Schuck, última coordenadora do painel. Membro afiliado da ABC desde o ano de 2011, ela ainda ressaltou que, diferente dos demais grupos, eles se ativeram mais à graduação do que à pós. A ideia também é a criação de palestras e cursos de curta duração à respeito da integridade científica, mas o diferencial seria trazê-los para estudantes ainda mais jovens. “Nós chegamos à conclusão de que é importante começar desde cedo esse ensinamento sobre o que é ética no campo da ciência. Uma sugestão levantada foi vincular essa formação complementar aos projetos de iniciação científica”, finalizou.