Tempo e espaço nunca foram barreiras intransponíveis para o físico Sérgio Mascarenhas. O carioca, que saiu de Copacabana em plena década de 50 para plantar as sementes que transformaram São Carlos, no interior de São Paulo, num polo de alta tecnologia, continua inquieto. Aos 85 anos, defende, com veemência, o estudo dos sistemas complexos, para melhor compreensão da própria ciência e do agronegócio. Mascarenhas falou para a “XXI Ciência para a Vida”, no auditório que leva seu nome, na Embrapa Instrumentação, em São Carlos, SP.
 
XXI – Como o senhor avalia a ciência hoje? Ainda existem fronteiras entre as áreas?
 
Sérgio MascarenhasEsse é um problema central da ciência atual. Quando tivemos a grande revolução na física, e Newton estabeleceu a universalidade da gravitação, demos um grande passo, porque a ciência até então, derivada da cultura greco-romana, era uma ciência muito antropocêntrica, em que o homem ocupava o papel dos deuses do Olimpo. Com isso, ele centrava os valores filosóficos e epistemológicos sobre si próprio. Quando Newton e, antes dele, Galileu estruturaram a ciência moderna, foi, então, um grande salto para a humanidade. Foi o que nos levou, no tempo de Galileu, à grande revolução representada pelo Renascimento. O Renascimento trouxe a evolução da ciência, do pensamento humano, mas sempre considerando um modelo reducionista, em que, para se entender um sistema, divide-se o sistema em pedaços e estuda-se cada pedaço. Um filósofo que introduziu essa noção foi Descartes. Ele tentou interpretar a vida, o corpo humano, com essa ideia do reducionismo. Há pedaços, estudam-se os pedaços, entende-se o todo. Newton fez a mesma coisa com a teoria da gravitação: se entendermos a queda de um corpo, podemos entender a Lua se movendo em torno da Terra, podemos então explicitar toda uma teoria reducionista.
 
XXI – Quando a ciência começa a mudar?
 
Sérgio Mascarenhas – Quando chegamos ao fim do século XIX, um grande cientista chamado Ludwig Boltzman mostrou a possibilidade de um novo modelo com não linearidades. Acontece que toda a física newtoniana era linear, todas as equações, todos os modelos analíticos eram lineares. Essa não linearidade começou realmente a perturbar toda a modelagem epistemológica, todo o cenário da ciência. Na segunda metade do século XX começaram a aparecer, na termodinâmica, sistemas não lineares. Tive a fortuna de trabalhar com um dos cientistas, o Lars Onsager, ganhador do Prêmio Nobel, que demostrou ser possível ter, fora do equilíbrio do sistema, interação entre as partes de sistemas não lineares, e não havia matemática para isso. Essa matemática começou a ser desenvolvida também, ainda no século XX, com algumas teorias, como a Teoria do Caos e a Teoria dos Fractais. Essas teorias nos levaram a uma nova geometria, concebida por Benoît Mandelbrot, um belga que demonstrou como tratar essas não linearidades. Com isso se organizou, no fim do século XX, um equipamento conceitual que levou ao estudo dos sistemas complexos. As pessoas que elegeram esse novo paradigma foram Lars Onsager e Ilya Prigogine, um russo que emigrou para a Bélgica e que escreveu os primeiros modelos quantitativos dos modelos não lineares e dos sistemas complexos. Esses sistemas complexos mostraram-se muito eficientes para entender fenômenos que até então não eram compreendidos.
 
XXI – Que fenômenos são esses?
 
Sérgio Mascarenhas – Quando temos vários sistemas interagindo, pensamos imediatamente em quê? Em interdisciplinaridade. E pensamos em outra coisa ainda mais ampla – a transdisciplinaridade. Esses sistemas complexos não lineares podem ser encontrados não apenas na engenharia, na termodinâmica, na física, mas também na sociedade. A primeira ciência que se deparou com esses fenômenos foi a química. E aqui entra uma ideia fundamental para entendermos o conceito geral dos sistemas complexos: o problema de ordem e desordem. Quando se tem um sistema em que há muitos elementos interagindo, aparentemente há uma desordem no sistema. Pense num gás que tem bilhões de moléculas, aquilo é um sistema desordenado. Mas acontece que, quando, por exemplo, a temperatura de um gás desses cai, pode ser que ele vire um líquido. Por que essas moléculas então resolveram se reconhecer umas às outras e produzir um novo estado da matéria que é o estado líquido? Foi uma transição de fase. Esse conceito de transição de fase inseriu-se na física de várias maneiras. Einstein e um físico indiano chamado Satyendera Nath Bose descobriram uma coisa espetacular: quando a temperatura de átomos é reduzida, eles começam a se reconhecer uns aos outros, podendo até haver uma espécie de coagulação, uma transição de fase, chamada de transição de fase de Bose-Einstein. Esse é um dos fenômenos mais interessantes dos sistemas complexos. Ninguém entendia isso: como é que, em condições de temperatura sendo reduzida, o hélio, de repente, um gás nobre, vira um líquido. E mais, esse líquido sobe pelas paredes do recipiente. Ou, então, se é um gás de elétrons, transforma-se em um supercondutor, um fenômeno incrível. Voltando ao Prigogine e ao Onsager, quando se tem muitas moléculas, mesmo na temperatura ambiente, e faz-se uma reação química, de repente podem surgir figuras totalmente ordenadas. Isso aconteceu com a química. Se havia a desordem, como é que se consegue ter ordem? É o efeito da não linearidade. Quer dizer, quando se tem muitos átomos, muitos sistemas interagentes, e se essas interações forem não lineares, pode-se ter uma transição de fase em que aparece ordem. Imediatamente surgiu a pergunta: e a vida? Exatamente isso! Há uma porção de átomos e moléculas e, de repente, eles se organizam e produzem vida, produzem o DNA. Esse DNA fornece uma mensagem que cria coisas muito complexas como uma flor numa árvore, ou cria a vida humana. São os sistemas complexos.
 
XXI – Os sistemas complexos provocam uma mudança no modo de ser e de fazer ciência?
 
Sérgio Mascarenhas – Exatamente. O agronegócio, por exemplo, certamente é um sistema complexo. Há a logística para transportar as commodities, a compreensão sobre a saúde dos clones, das sementes etc. Há ma interação forte também com o clima, porque a água é fundamental no processo de irrigação. Observamos, então, que já temos vários sistemas interagentes e quando esses sistemas interagem, o fazem não linearmente. Nos sistemas complexos, pequenas variações podem engendrar um processo de enorme confusão e complexidade. É o caso do clima. Se há, por exemplo, uma frente fria caminhando pela América do Sul e outra frente de temperatura diferente que colide com a primeira, de tornados a grandes tsunamis no mar podem ocorrer. Isso daí é interação entre muitos sistemas. Não se pode prever o clima absolutamente, se você mudar uma pequena coisa nas condições iniciais. Como há fenômenos não lineares, uma coisa interage com a outra, e essa, por sua vez, interage com uma terceira, todas não linearmente. Dá-se uma verdadeira catástrofe, de tal forma que faz lembrar a famosa frase que o bater de asas de uma borboleta na China pode alterar o clima no Brasil. É uma tal desestruturação não linear dos parâmetros que é difícil prever. Isso mobilizou o matemático John Von Neumann, quando ele lançou a ideia do computador digital. Ele começou a tentar fazer previsão climática e não conseguia, até que vários cientistas, nos Estados Unidos, no MIT, e em outros lugares mostraram que não podia haver uma previsão absoluta de um sistema com muitas partículas. Era possível modelar, calcular probabilidades, mas não dar certeza, como na mecânica determinista do Newton. Então, por meio da não linearidade, cria-se a desordem, mas também cria-se a ordem, porque, havendo interação entre o sistema, pode aparecer o que se chama de fenômenos emergentes, como a vida. Isso é a emergência de um sistema complexo, isso é o século XXI.
 
XXI – Como se situa o Brasil no estudo dos sistemas complexos?
 
Sérgio Mascarenhas – O Brasil está mais ou menos quinze anos atrasado na ciência de sistemas complexos. Recentemente, num congresso em São Paulo sobre engenharia, propus ao governo brasileiro e à comunidade científica que o Brasil atacasse de frente o problema de sistemas complexos, de sistemas de sistemas. Tomemos o melhor exemplo de sistemas de sistema, a Internet. Há nela desde pornografia até novelas, até Wikipedia. É um sistema de sistemas. Há música, MP3, comunicação e ensino a distância, Skype e imagens de satélites sendo aproveitadas por essa estrutura de informação e difusão. Então, certamente, comunicação é um sistema complexo. Por isso, acho que a difusão da ciência e o entendimento da própria ciência têm que passar, de agora em diante, pelo estudo de sistemas complexos.
 
XXI – Em que medida, com toda essa mudança, as fronteiras da ciência devem ser mantidas? Ainda há espaço para o estudo mais aprofundado de determinada área?
 
Sérgio Mascarenhas – Há uma frase muito antiga do Isaac Newton. Ele, apesar de ser antigo, propôs uma imagem da ciência muito interessante. A ciência é um contínuo construir e destruir, é uma contínua quebra de paradigmas substituídos por outros. Então, Newton disse: “o conhecimento humano é como o raio de uma esfera, quanto mais aumenta, mais aumenta a superfície em contato com o desconhecido”. Em outras palavras, não existem fronteiras rígidas. A ciência é uma coisa dinâmica, e o modo de se entender essa dinâmica é via sistemas complexos, é assim que eu vejo. Um sistema como o agronegócio precisa de química, de bioquímica, de física, bioinformática, precisa de equipamentos, portanto, de hardware, precisa de software. Então, é um sistema altamente complexo, não tem fronteiras. A divisão entre física, química ou biologia advém de um modelo reducionista. É uma divisão puramente conceitual, didática, errada. Na realidade, não existem fronteiras.
 
XXI – Nesse contexto, quais as perspectivas para o ensino nas escolas?
 
Sérgio Mascarenhas – Você conhece as redes sociais, o Orkut, Linkedin, conhece uma série de redes sociais. Essas redes sociais democratizaram o conhecimento. Hoje, entramos no Google ignorante, e, no fim da noite, nos tornamos PhD em algum assunto. Houve tal complexidade ao estruturar esse sistema, que ele perdeu as fronteiras. Então, é preciso partir para uma nova linguagem – e aqui entra novamente a questão da interdisciplinaridade. Temos que falar em hardware e software, na metalinguagem dos bits, da internet, da web. Se não usarmos este tipo de estruturação nova do pensamento humano, sempre ficaremos divididos em especialidades que não se comunicam e essa falta de comunicação destrói os sinergismos, que nos permitem novas fronteiras. Penso que devemos, cada vez mais, introduzir metamatemática, fractais, os sistemas complexos no sentido computacional, de modelagem, inteligência artificial, uma série de mecanismos novos que constituem uma verdadeira linguagem para falarmos e ouvirmos a natureza. A natureza não fala por meio da física, da biologia, ela mistura isso tudo. Há que se entender essa linguagem, essa mistura de idiomas. Se tínhamos que passar pela fase reducionista, linear, estamos chegando agora ao entendimento das coisas sob o ponto de vista do que os psicólogos chamaram anteriormente de uma linguagem “Gestalt”, da linguagem integrada. Devemos criar, desde o pré-primário, na escola, na creche, uma nova linguagem que seja aceita pelas crianças. Elas não serão reducionistas, elas vão entender. Tenho certeza que meus alunos são muito melhores do que eu. Se eu não tivesse essa certeza, seria um fracassado. Vejo que há gente melhor do que eu, que foi além, porque houve essa liberdade. No fundo, a complexidade é a própria liberdade, é a liberdade da transdisciplinaridade, do uso de várias ferramentas, é a autoconfiança, criada duplamente pela intuição e pela racionalidade.
 
XXI – Diante dos sistemas complexos, quais seriam os desafios futuros da Embrapa?
 
Sérgio Mascarenhas – No passado, quando tivemos a sorte de obter o apoio da Presidência da Embrapa, então com o Prof. Eliseu Alves, e propusemos a criação da Embrapa Instrumentação, já foi com a ideia de transdiciplinaridade, que implica sistemas complexos. Tivemos desde o estudo de imagens, de tomografia para solo, como o estudo de sistemas complexos, como por exemplo, infiltração de água no solo. Eu acho que o Centro perseguiu o caminho da interdisciplinaridade, da transdisciplinaridade e, portanto, da complexidade. O que vejo, depois de 40 anos, é exatamente que é preciso utilizar uma análise ainda mais transdisciplinar. O agronegócio nacional representa 30% do PIB nacional – 600 bilhões de dólares. Significa que são recursos maiores que de muitos PIBs de várias nações. Isso salvou o Brasil da grande crise de 2008, se não fosse o agronegócio tropical o Brasil não teria conseguido passar incólume por aquela crise. Agora nós enfrentamos outra crise ainda maior que é a do aumento populacional. Vamos ter, segundo se diz, 2 bilhões a mais de pessoas até ametade do século (em 2050). Como alimentar esse pessoal todo? Aqui entra novamente a análise por meio dos sistemas complexos. Como é que vai ser a logística disso? Já temos um problema terrível no Centro-Oeste transportando commodities para os portos brasileiros, o que faz aumentar em 50% o custo de produção delas. Temos também outra coisa ainda mais complexa que são os preços internacionais, controlados. É um sistema de políticas financeiras complexas, tão complexas que às vezes resulta no caos e vêm as crises. Podemos observar, então, que há interações de várias ordens em torno do problema do agronegócio. Vejo que a Embrapa terá que se preparar cada vez mais nessa área de introduzir metamatemática, que é a matemática dos sistemas não lineares, estatísticas muito mais complexas. A Embrapa foi no caminho certo e deverá então, cada vez mais, abrigar mentes transdisciplinares. Mas concursos públicos são abertos por especialidade, o que afasta as mentes mais amplas. Eu advogo que teríamos que ter uma nova visão dos concursos para atrair talentos interdisciplinares. Talentos que, às vezes, aparentemente, nada têm a ver com as commodities ou com o trator que ara a terra. Existe um Prêmio Nobel chamado Daniel Kahneman, que escreveu um livro. Ganhou o Prêmio exatamente por entender os sistemas complexos na economia. Ele é psicólogo e economista. Veja só a mudança. O livro dele chama-se Pensando Rápido e Lento (Thinking Slow and Fast). Deveria ser um livro de leitura obrigatória para todas as pessoas que estão fazendo gestão, porque tecnologia só não interessa. Que adianta a tecnologia se não há gestão? E o que é gestão? É planejamento estratégico, serve para sabermos para onde vamos, para entendermos os sistemas interagentes. Penso que um dos problemas maiores que temos no País, na humanidade em geral, é a falta de entendimento dos sistemas complexos como sistemas de gestão, como sistemas de difusão de conhecimento, de informação, para que se crie uma verdadeira e nova complexidade, capaz de progredir e criar conhecimento a mais. Conhecimento que cr
ia conhecimento, acho que é isso.
 
XXI – Como romper a situação do País amarrado pela burocracia? Ela coloca em risco a competitividade da ciência, da agricultura e do Brasil?
 
Sérgio Mascarenhas – Acho que precisamos mudar totalmente o nosso mecanismo de gestão. Nos países desenvolvidos, tudo que não é proibido é permitido, prevalece a liberdade. No Brasil é exatamente o contrário. Primeiro vê-se se aquilo que é proibido e aquilo que é permitido tem que passar pelo crivo, exatamente, da proibição. Vejo que sofremos uma crise cultural. Quando ela se abate sobre a ciência, a economia, a educação, a saúde, ela é destruidora, ela é kafkiana. Kafka escreveu sobre grandes labirintos da burocracia. Então, fica incompatível trabalhar com as necessidades dos sistemas complexos se as barreiras não são quebradas. Se há um monte de barreiras criadas pelos burocratas, como fazer?
 
XXI – Ciência e tecnologia andam juntas?
 
Sérgio Mascarenhas – Uma coisa clara é que o século XX – aliás, antes mesmo, o século XIX – mostrou um fenômeno muito interessante, sociológico: a convergência da ciência sobre a tecnologia. Da criação do motor elétrico, das leis do eletromagnetismo, até o uso da energia elétrica nos motores e na iluminação das cidades, passaram-se mais ou menos uns 40 anos. Quando veio a energia nuclear, foram precisos 20 anos para partirmos da fusão nuclear para os reatores que produzem energia. Quando se inventou o laser, no mesmo ano em que foi inventado já foi aplicado. Então, nota-se uma tremenda convergência temporal entre ciência e tecnologia. Hoje em dia não se pode mais separar a ciência da tecnologia.
 
XXI – Essa convergência funciona bem no Brasil?
 
Sérgio Mascarenhas – A academia, as universidades são torres de marfim que não se comunicam bem com a sociedade. Portanto, não geram tecnologia. Se olharmos para o conceito de inovação, é exatamente essa convergência que mistura ciência básica com tecnologia. O tempo de vida dos produtos é muito curto, há uma competitividade tremenda, então aquelas organizações que não têm essa agilidade ficam no caminho, atropeladas. Acho que estamos passando por uma crise grave. A Embrapa é um exemplo muito bom, mas ela precisa ser liberada da burocracia, por políticas que sejam políticas de Estado, que tenham continuidade e, sobretudo, por uma coragem antiburocrática que aceite que pessoas são diferentes porque elas não são lineares. Essa é a nova personalidade do século XXI. Quem não reconhecer essa
personalidades não vai achar os talentos. Não achando os talentos, vai ficar com os medíocres. Ficando com os medíocres, o País será medíocre, a economia será medíocre, a saúde será medíocre. Então, o futuro da Embrapa dependerá muito das lideranças que têm visão de futuro, como já está acontecendo.