“Se estivesse aqui nesta sala conosco, ele seria o primeiro a se sentar à mesa e a comentar o pequeno atraso”. A frase da Acadêmica Elisa Reis demonstra o rigor, a ironia e o humor fino do antropólogo Gilberto Cardoso Alves Velho, falecido em 14 de abril. Essas foram algumas de suas características tão lembradas durante a Reunião Regional da Vice-Presidência do Rio de Janeiro em homenagem ao Acadêmico – “Gilberto Velho – um cientista singular” – realizada na sede da ABC em 28/8. O encontro contou com a presença da ex-mulher Yvonne Maggie, amigos, admiradores, ex-alunos e estudantes das áreas de sociologia e antropologia.


Antonio Firmino da Costa, Elisa Reis, Mariza Peirano, Peter Fry e Karina Kuschnir

“Antropólogo, cientista de grande influência no Brasil e no exterior e, sobretudo, um defensor das causas sociais, GIlberto Velho foi um dos primeiros da área a entrarem para o quadro de membros da ABC”, disse o presidente Jacob Palis, dando início às considerações do dia e agradecendo a presença de todos. Em seguida, Mariza Peirano, professora titular aposentada e pesquisadora-sênior da Universidade de Brasília (UnB), destacou a capacidade e o dom que o Acadêmico tinha com as palavras. Para ela, são poucas as pessoas que conseguem prender a atenção de um público por mais de 50 minutos contendo apenas uma ficha pequena em mãos com poucas palavras escritas. “Por ser o excelente orador que era, ele sempre sabia o que falar, não importava a situação e o lugar”, lembrou.

Segundo ela, a antropologia urbana de Gilberto, com foco nas grandes metrópoles, fez do Rio de Janeiro “o seu laboratório e coquetel particular”. “Ele era uma figura brincalhona, de humor inteligente, o que sempre deixava seus espectadores se perguntando se ele estava realmente falando sério ou apenas brincando”, disse. “Amoroso, gentil, amigo leal e de todas as horas, um pai para seus estudantes, que sempre se devastava quando os alunos se viam frente a uma situação séria”.


Pesquisadores prestaram homenagem ao Acadêmico

Seu último artigo – “O patrão e as empregadas domésticas” -, é, de acordo com Mariza, um exemplo do exímio etnógrafo e antropólogo, que atuava até em sua própria casa. “Ele discorreu sobre todas as ajudantes que o auxiliaram desde que saiu da casa dos pais. Para ele, tudo era um apaixonante objeto de estudo e de reflexão”.

Trabalho e personalidade

Como frisou Karina Kuschnir, ex-aluna de mestrado e doutorado do Acadêmico, Gilberto Velho praticava uma antropologia que mostrava valores cultivados por ele desde os 19 anos, quando se formou pelo Colégio de Aplicação da antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, atual UFRJ. “Em seu discurso de formatura no ano de 1964, ele já falava como se fosse um profissional”, observou. Para ela, sua audácia foi não temer criar essa antropologia, um novo plano de trabalho através de inúmeras fontes que foi coletando ao longo de sua vida.

Velho cultivava interesse pelas mais diferentes manifestações culturais, como imprensa, teatro, música, literatura, e pelos mais variados temas. “Ao propor uma antropologia urbana e estudá-la, ele não pretendia criar uma subdisciplina. Estava interessado, sim, em questões de metodologia de investigação no meio urbano, nas possibilidades de o antropólogo estudar o seu meio, sendo ao mesmo tempo nativo e investigador”, analisou Karina. “A área, para ele, não era o centro do universo, nem uma retórica. Era uma prática que tinha por objetivo comparar e colocar em perspectiva”.

Quando contava para os alunos as histórias de sua juventude ou do início de carreira, argumentava em tom de brincadeira: “Mas isso foi no século XIII…”. Ainda segundo Karina, Velho era uma pessoa discreta e preservada que não gostava de se expor ao extremo. “Não se levava tão a sério e cultivava com vigor e imenso afeto as relações pessoais. Nós, alunos, sempre recebemos reclamações e muito rigor acadêmico, mas também carinho de alguém que queria nos ver crescer pessoal e profissionalmente”.

Atualmente, a pesquisadora cuida do acervo e memória do Acadêmico, para que seus livros fiquem disponíveis na internet para alunos, pesquisadores e toda a comunidade acadêmica e científica. Segundo ela, o trabalho livre de direitos autorais deve estar disponível para consulta em breve.

Amizades que ultrapassavam fronteiras

Dando continuidade às homenagens, o português Antonio Firmino da Costa, do Instituto Universitário de Lisboa, exaltou a vasta cultura do Acadêmico, que gostava de ler temas relacionados à história, política, educação, sociologia, artes, entre muitos outros. Costa lembrou que depois de seu doutorado realizado em Portugal, do qual Gilberto foi um dos avaliadores da banca, a amizade cresceu forte. “Foram os comentários mais interessantes que recebi durante a defesa. Agradeço a ele até hoje por todos os aprendizados”.

Costa afirmou que a influência da obra de Velho em Portugal é grande, principalmente depois dos anos 80, quando as mudanças sociais em curso nos bairros de Lisboa começaram a ser estudadas. As análises antropológicas do Acadêmico deram legitimidade ao objeto de estudo dos espaços urbanos em transformação. “Muitos portugueses entraram em contato com o Gilberto, que contribuiu para o intercâmbio de jovens entre os dois países nessa área de estudo”, afirmou.

Por sua vez, Peter Fry, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), falou de sua ligação com Gilberto Velho através de sua pesquisa, que inclui temas como religião e política na África, umbanda e pentecostalismo, sexualidade e religião e relações raciais no Brasil. Graduado em Antropologia Social pela Universidade de Cambridge (1963), com doutorado na área pela Universidade de Londres, ele conheceu Gilberto assim que chegou ao país, “quando a antropologia universitária ainda era uma disciplina pequena e todos os pares se conheciam”.

Para ele, ser estrangeiro no Brasil é difícil, mas os laços de amizade são importantes para assegurar a estadia. “A amizade dele, através de sua experiência de vida, conversas e inteligência, me fortaleceu como pessoa e como antropólogo”.

Juventude, obra e generosidade

A homenagem continuou com o relato do sociólogo e Acadêmico Sergio Miceli Pessôa de Barros (USP), que comentou experiências de quando integrava, ainda muito jovem, um grupo de teatro com Gilberto Velho e outros amigos. Segundo ele, não era um simples grupo teatral, era um grupo com “projeto intelectual”. “Montamos A tempestade, de Shakespeare, segundo uma leitura marxista! O grupo de teatro funcionava como uma solda para reunir esses amigos”, afirmou Sérgio, em tom saudoso.


Luis Fernando Duarte, Ruben Oliven, Sérgio Pessôa de Barros e Maria das Dores Guerreiro

O que esse grupo de jovens rapazes e moças, nos seus vinte e poucos anos, tinha em comum era uma indefinição diante do futuro profissional, social e “existencial”. “A pergunta era: O que seremos na vida?”, relatou o Acadêmico. No entanto, segundo ele, Gilberto Velho era o único do grupo que já tinha encontrado seu caminho. “Ele já traduzia, fazia mil coisas, e, aos meus olhos, e
le já era um profissional e, por isso, funcionou como uma espécie de modelo para mim”, disse o sociólogo.

Em seguida, a socióloga e professora Maria das Dores Horta Guerreiro comentou a respeito da sua amizade com Velho e sobre a participação dele como membro do conselho editorial do periódico “Sociologia: problemas e práticas”, publicado pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL).

Segundo ela, o pesquisador manteve uma assídua e importante participação na revista científica, tendo contribuído com inúmeros artigos que constituem um importante patrimônio em torno do conhecimento científico na sociologia. “A sua morte é uma perda irreparável, mas a sua obra continuará sendo referência para várias gerações de estudiosos”.

O Acadêmico Ruben George Oliven (UFRGS) foi o seguinte a contribuir para a homenagem, abordando aspectos que considera indissociáveis da figura de Gilberto Velho: a ironia e a generosidade. Segundo ele, o humor e a ironia eram uma marca do homenageado. “Pelo humor, Gilberto desconstruía a imagem de sisudo que poderiam tomar dele, por conta da sua seriedade”, afirmou Ruben.

Quanto à generosidade, não há muito que comentar. Basta dizer, de acordo com ele, que Velho foi responsável por uma centena de orientações de pesquisas científicas, além de ter criado redes de integração entre pesquisadores. “Ele sempre estava interessado em saber o que os outros estavam estudando e se interessava genuinamente em ajudar”, disse o Acadêmico.

Por fim, o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ) leu um artigo que escrevera analisando conceitos sociológicos e pensadores que foram base para os estudos de Gilberto Velho. No texto, intitulado “Fenomenologia e singularidade”, ele buscou compreender o aparelhamento utilizado pelo homenageado para apreensão e compreensão da vida social urbana a partir da complexidade da experiência da vida moderna.

“Os melhores momentos da nossa vida são aqueles em que [nos] sentimos responsáveis”. […] “Ninguém gosta de ser manipulado. Todos querem tomar parte na construção de seu próprio futuro, sem aceitar dogmas e princípios herméticos e autoritários. São necessários o debate, o diálogo, a confiança mútua […] e uma dose de audácia” […] “Temos que viver a nossa época, procurando atualizar na prática as conquistas teóricas. Seria retrógrado, anticientífico e antidemocrático pretender educar sem conhecer e respeitar os que estão sendo educados”
(Trechos do discurso proferido por Gilberto Velho, aos 19 anos, em sua formatura)