Carlos Eduardo Bicudo, José Galizia Tundisi, Katarzyna Izydorczyk, Sunita Facknath e Ernesto González
A sessão “Ecohidrologia: uma abordagem sistêmica para o gerenciamento da água” reuniu representantes do Brasil, Polônia e Ilha Maurício no último dia do evento “Aperfeiçoando a gestão de recursos hídricos em um mundo em transformação: Academias de Ciências trabalhando juntas para ampliar o acesso à água e ao saneamento”, realizado em São Paulo entre os dias 25 e 27 de junho. A mesa redonda foi coordenada pelo biólogo Ernesto González, doutorado em Ecologia pela Universidade Central da Venezuela (UCV), onde coordena o Laboratório de Limnologia e dirige o Instituto de Biologia Experimental (IBE). Ele atua como ponto focal na Venezuela do Programa de Águas da Rede Interamericana de Ciências (IANAS).
O biólogo Carlos Eduardo Bicudo foi o relator da sessão. Ele graduou-se pela Universidade de São Paulo (USP) e tem pós-doutorados pela Universidade de Montana e pela Universidade do Alabama, ambas nos Estados Unidos. É pesquisador do Instituto Botânico do Departamento Ambiental do Estado de São Paulo. Os participantes foram o Acadêmico e coordenador do evento, José Galizia Tundisi, a professora e pesquisadora da Universidade de Lodz, na Polônia, Katarzyna Izydorczyk e a professora da Universidade da Ilha Maurício Sunita Facknath.
Conforme explicou o relator Carlos Eduardo Bicudo, ecohidrologia é o uso de uma combinação de princípios ecológicos e hidrológicos para obtenção de um gerenciamento ecologicamente seguro do ambiente. A ecohidrologia implica em monitorar as ameaças para, depois, poder relacionar suas causas e efeitos e, por fim, desenvolver métodos que as revertam em soluções sistêmicas.
O Bioma Amazonas e a geração de energia
Três temas foram discutidos na sessão: as novas perspectivas de desenvolvimento sustentado para o Bioma Amazonas; a aplicação de soluções ecohidrológicas na melhora dos serviços ecossistêmicos na Polônia utilizando, como exemplo, o rio Pilica; e os desafios enfrentados pela Ilha Maurício para atingir um desenvolvimento sustentável de suas águas.
No Brasil, é dominante a geração de energia a partir dos recursos hídricos. “Contudo, o potencial de sua geração no país mostra que as regiões sul e sudeste já estão saturadas de reservatórios e que o potencial tecnicamente utilizável volta hoje suas vistas para o Bioma Amazonas”, informou José Galizia Tundisi, que é coordenador do Programa de Águas do Interacademy Panel (IAP), co-coordenador do Programa de Águas da IANAS e coordenador do Comitê de Águas da ABC.
Hoje, existem no bioma amazônico brasileiro apenas quatro usinas hidrelétricas em funcionamento e outras seis em diferentes fases de construção. Entretanto, há pelo menos 18 outras planejadas. “Além disso, os componentes dos sistemas naturais amazônicos estão intimamente relacionados, de modo que os ciclos biogeoquímicos, o ciclo hidro-social, a economia regional, os processos ecohidrológicos de inundação e de pulsos do sistema e a biodiversidade dependem mutuamente”, comentou o Acadêmico, acrescentando que o barramento de rios para a construção de reservatório constitui uma quebra inevitável e, às vezes, irreparável desse equilíbrio.
O Bioma Amazonas é um centro de evolução extremamente ativo que mostra um ecossistema complexo, com amplas interações biofísicas, humanas e sociais. Qualquer princípio ecohidrológico aplicado ao Bioma Amazonas deverá, inevitavelmente, preservar a capacidade de evolução do ecossistema e de seu ciclo hidro-social. “A despeito de alguns avanços já mostrados durante a construção de barragens hidrelétricas no Bioma, ainda se torna imperioso um passo adiante”, ressaltou Tundisi.
Neste sentido, algumas recomendações de uma agenda de ação incluem: reduzir o número de barragens nos rios amazônicos; espaçar as barragens em um mesmo rio, isto é, evitar os reservatórios em cascata; preservar rios críticos em “hot spots” de biodiversidade aquática e terrestre – que deve ser uma ação governamental; reverter a degradação da biosfera; e integrar princípios de engenharia, tecnologia ambiental e de ecologia.
O caso polonês do rio Pilica
A representante da Polônia, Katarzyna Izydorczyk, é graduada em Proteção Ambiental e doutorada em Ecohidrologia pela Universidade de Lodz. Atua como vice-diretora do Centro de Hidrologia Regional Europeu do Instituto Internacional da Academia Polonesa de Ciências, sob os auspícios da Unesco. Em sua apresentação, ela tomou como exemplo o rio Pilica, que apresenta problemas de poluição não-pontual (difusa) resultantes do uso agrícola da bacia hidrográfica, problemas de poluição pontual e floração de cianobactérias que restringem o uso do reservatório como fonte de água para suprimento doméstico e áreas de recreação.
Assim, a Polônia providenciou, a partir do monitoramento dos desafios, a identificação e a quantificação das ameaças, a dinâmica espacial e sazonal das mesmas e o monitoramento de ambas, incluindo as causas e os direcionadores destas. “No que tange à identificação da hierarquia dos fatores que afetam as florações de cianobactérias tóxicas, estudos importantes foram realizados no sentido de monitorar a biomassa do fitoplâncton total do rio face à temperatura, à densidade e pressão do zooplâncton, à limitação de sílica no ambiente, aos níveis de fosfatos e fosfatase e ao tempo de retenção”, detalhou a pesquisadora.
O estudo concluiu que o aumento da concentração de fósforo na água levou ao aumento da frequência e da intensidade das florações de cianobactérias. Ademais, os pesquisadores identificaram e quantificaram as fontes pontuais e difusas de nutrientes, utilizando o modelo “Moneris” para administrar as duas fontes de poluição, desmembrando e quantificando a emissão de nutrientes, principalmente de fósforo e nitrogênio no reservatório Sulejow. “Eles também separaram a origem dos nutrientes em deposição atmosférica, o escoamento superficial, a erosão, água subterrânea e sistemas urbanos, concluindo que a migração de nutrientes dos fertilizantes para a água subterrânea foi enorme, da ordem de três vezes mais”, relatou Bicudo.
Como ferramenta remediadora, a Polônia está utilizando a mata ripária para a redução da poluição difusa, pois esse tipo de vegetação mantém ou melhora a qualidade da água por reter e remover várias fontes difusas de poluição, tanto de origem terrestre quanto do fluxo subsuperficial raso. “Além disso, as matas ripárias protegem as margens dos rios contra a erosão, melhoram o microclima pela regulação da temperatura da água e da penetração da luz no curso do rio. Criam, ainda, novos habitats e verdadeiros corredores de migração para diversos organismos”, mencionou o relator.
Out
ra medida adotada na Polônia foi a chamada parede de desnitrificação, as quais são construídas cavando uma trincheira (vala) perpendicular ao fluxo da água subterrânea e preenchendo-a com solo misturado com serragem de pinheiro. A decomposição da serragem estimula o crescimento de bactérias desnitrificantes que convertem o nitrato em gás nitrogênio. Ao final da construção, tais valas não são mais visíveis superficialmente.
Finalmente, foi desenvolvido na Polônia um plano de ação para redução da poluição difusa na bacia do rio Pilica, que utilizou biotecnologias inovadoras da ecohidrologia, promoveu um código de boas práticas para uso agrícola e adicionou medidas utilizáveis como instrumentos legais, administrativos e econômicos. “É importante salientar que o projeto polonês usou uma plataforma multi-usuário como ferramenta para transferir o conhecimento entre cientistas e tomadores de decisão, a qual passou por reuniões com os habitantes do entorno, atividades educacionais para crianças nas escolas e treinamento de especialistas, professores e tomadores de decisão”, informou Bicudo.
A situação urgente da Ilha Maurício
Já a Ilha Maurício corresponde a um pequeno território com alta densidade populacional concentrada na zona costeira, cujos recursos limitados ocasionam seu sobre-uso e até sua depleção prematura, conforme explicou Sunita Facknath. Ela graduou-se e fez o mestrado na Universidade de Pune, na Índia, e cursou dois doutorados: um pela Universidade de Middlesex, na Inglaterra, e outro pela Universidade da Ilha Maurício. Dirigiu o Departamento de Agricultura e Ciência dos Alimentos, tendo liderado diversas pesquisas e prestado consultoria para agências governamentais, empresas privadas e entidades internacionais. Suas especialidades são as mudanças climáticas e os agrossistemas sustentáveis.
“A ilha é dotada de capacidades institucional e humana limitadas”, contou Facknath. “Possui ainda uma dependência excessiva de forças externas tornando-se, portanto, muito suscetível aos desenvolvimentos globais. Depende, também, do comércio internacional e não tem meios que influam nos termos deste comércio.” A Ilha Maurício tem uma economia vulnerável, onde o custo de produção é elevado e a importação se reduz a um volume limitado, dados os altos custos do frete. O país é, também, extremamente vulnerável às catástrofes naturais, como ciclones, terremotos e tsunamis; e às catástrofes ambientais, como o aquecimento global, a depleção de ozônio e a elevação do nível do mar. Sua capacidade de resposta aos processos de recuperação de tais eventos é limitada.
“O país contribui pouco para o aquecimento global e as elevações do nível do mar, mas é um dos locais do planeta que mais sofrem com esses eventos”, lamentou a mauriciana. “Tais características restringem a adoção de uma aproximação ecossistêmica para o gerenciamento da água e estão levando a Ilha Maurício à adoção de uma aproximação ecossistêmica parcial.” A única fonte de água na ilha é a chuva e o armazenamento da água se faz em seis reservatórios maiores e três menores. Apenas 10% da precipitação pluvial vão para a recarga da água subterrânea, enquanto que a evapotranspiração e o escoamento superficial representam, respectivamente, 30% e 60%.
A ilha utiliza cerca de 1030 mm3, o equivalente a 26% da precipitação média anual, sendo a maior parte proveniente da água superficial e a menor da água subterrânea. Do total, 48% são destinados à agricultura, 30% à geração de energia e 21% aos usos doméstico, industrial e comercial. As oito hidrelétricas produzem 59 MW de energia e a água utilizada é destinada à agricultura. A utilização atual de água é da ordem de 1027 m3/pessoa/ano, o que coloca a Ilha na categoria água escassa.
O desenvolvimento econômico dos últimos 20 anos e o aumento do turismo local aumentaram, de maneira exacerbada, a utilização da água e constituem, atualmente, um desafio para o setor especializado do país, pois sua população demanda, de um lado, água adicional e, de outro, impacta as bacias hidrográficas. “É também significante a erosão superficial do solo após o desflorestamento, causada pelas chuvas”, lembrou Bicudo. O material erodido vai depositar tanto na lagoa quanto no reservatório, enchendo-os de silt; e sua deposição nos ambientes dulcícolas levou ao desaparecimento de espécies de peixe, camarões e plantas aquáticas.
Os “wetlands” da Ilha Maurício estão sendo drenados e, especialmente na área costeira, aterrados para a construção de hotéis. A destruição dos “wetlands” tem propiciado a rápida elevação do lençol freático durante a estação das chuvas e sua contaminação com coliformes fecais. “Há ainda que lembrar os danos causados pela indústria e pela agricultura, neste último caso levando à eutrofização dos ambientes”, comentou Facknath. “Considere-se, também, que 77% dos alimentos consumidos na ilha são importados, o que significa água virtual.”
Finalmente, a pesquisadora lembrou da fragmentação das responsabilidades ao lado da tomada ilegal de água e os vazamentos na linha de distribuição. “A Ilha não possui, até o momento, um programa oficial de gerenciamento de suas águas, mas vem assumindo algumas medidas que contribuem direta ou indiretamente para a gestão das bacias e sua proteção e que, de alguma forma, constituem uma aproximação ecossistêmica para o gerenciamento maior.” Neste rol, incluem-se medidas científicas, sociais, de políticas públicas, de formação de recursos humanos e de introdução de novas fontes de água.
“A mesa reuniu três experiências bastante diversas, porém, ao mesmo tempo, complementares”, concluiu Bicudo. Segundo o relator, o encontro apresentou fatos de um mega-país em que os projetos políticos carecem de maior embasamento científico, mas que ainda não se tornaram desastrosos. Paralelamente, reuniu a experiência de um país territorialmente muito menor, onde o gerenciamento da água vem sendo tratado com extremo cuidado em uma escala pequena, mas com a possibilidade de aplicação dos conceitos maiores em escala nacional. E, finalmente, de um país-ilha, onde o desenvolvimento de um projeto sistêmico para gerenciamento de suas águas enfrenta condições bastante adversas, mas existe a consciência de que se deve chegar a um sistema desse tipo e as medidas para tanto vêm sendo, pouco a pouco, adotadas.