Leia artigo do Acadêmico Constantino Tsallis, comentando entrevista do Acadêmico Sérgio Mascarenhas para a Fapesp:

Em entrevista no dia 2 de setembro à Agência Fapesp, o Acadêmico Sérgio Mascarenhas focaliza os sistemas complexos ou, equivalentemente, o fenômeno da complexidade. Ele faz, mais precisamente, a distinção entre a ciência dos sistemas complexos e a ciência de suas consequências práticas.

O estudo dos fundamentos da complexidade é, além de fascinante, necessário quando o que se deseja é a compreensão profunda dos fenômenos envolvidos, suas causas, suas conseqüências. Necessário, sim, mas não suficiente quando o que se deseja é atingir a sociedade como um todo, e não somente sua atávica procura de universalidade, de satisfação de sua curiosidade — o Homo sapiens é sapiens porque é curioso, o mais curioso dos animais! Se não é suficiente, de que mais precisa?

Exatamente aquilo do qual fala Sérgio Mascarenhas, isto é, a ponte que conecta esses conhecimentos a suas aplicações. A ciência é necessária à engenharia, mas nao é suficiente. O tipo de saber envolvido nas ciências é primo irmão do saber envolvido nas suas aplicações, mas é certamente diferente. Como disse muitos anos atrás o notável físico Anatole Abragam, em sessão inaugural do Institut de France, na presença do presidente Valéry Giscard dEstaing e seus ministros, o cientista aplicado é aquele que, se a coisa funciona, não lhe interessa primordialmente o porquê, enquanto que o cientista puro, se ele sabe o porquê, não lhe interessa primordialmente como, mesmo se não funciona. No rio do saber humano, o cientista puro – o físico, o químico, o biólogo, o astrônomo, o linguista – procura as fontes, de onde a água vem, enquanto o cientista aplicado – o engenheiro, o médico – olha para onde as águas vão. É a simbiose de ambos os saberes que tem propulsado a humanidade ao longo da sua história, para o melhor e para o pior.

Muitas décadas atrás, Sérgio Mascarenhas criou, na qualidade de reitor, a Engenharia de Materiais na Universidade Federal de São Carlos. Esta disciplina se beneficiou enormemente do gabarito de muitos cientistas dos materiais provenientes da USP de São Carlos, ali ao lado, e da Unicamp, de Campinas. Mas seu conteúdo foi, como não poderia deixar de ser, diferente do da ciência dos materiais. A atual proposta de Sérgio Mascarenhas de incentivar, de criar no Brasil cursos de Engenharia de Sistemas Complexos, corre em via totalmente paralela, e, se implementada, não tenho dúvidas de que terá também um grande sucesso, como de fato acontece hoje com as Engenharias de Materiais. A comparação é muito eloquente e é a que percorre o mundo desenvolvido de hoje, levando os conhecimentos das nanociências para as nanotecnologias e destas para os celulares, para a internet, para a medicina a cada dia menos invasiva, para somente citar alguns exemplos conhecidos de todos.

E o que seria mais exatamente esta Engenharia de Sistemas Complexos? Ela deve consistir no domínio das características práticas dos sistemas complexos – feitos de muitos elementos relativamente simples interconectados em geometrias frequentemente hierárquicas, fractais, irregulares. O comportamento coletivo de tais sistemas, suas estruturas e dinâmicas sofisticadas, originam-se em elementos que interagem através de dinâmicas de grande simplicidade. É na interminável repetição, nos grandes números, que nascem os fenômenos macroscópicos que o homem observa e nos quais está imerso. É isto que ocorre nas complexas dinâmicas ecológicas, nos desastres naturais, como tsunamis, terremotos, furacões, na complexa evolução de nosso meio ambiente, nas profundas modificações que o homem – querendo ou sem querer – vai provocando na fauna e na flora, na agricultura. É assim também no plasma do vento solar, intensamente estudado pela NASA, ESA e outros organismos internacionais, acompanhados pelas Nações Unidas.

É isto que ocorre na evolução das línguas e das culturas, dos mercados, na camada de ozônio, nos surtos epidêmicos da doença de Chagas, do dengue, da tuberculose. É isto que ocorre nas turbulências da nossa atmosfera, das galáxias, das multidões e da fusão nuclear no tokamak, que talvez venha a representar uma das mais importantes fontes de energia para uso humano para nossos filhos, nossos netos. É talvez isto que ocorra nas profundezas das sopas de quarks e glúons que se formam após as formidáveis colisões entre prótons e outras partículas elementares, que são provocadas no poderoso LHC em Genebra, ou em Brookhaven, nos Estados Unidos, ou nos fluxos de raios cósmicos, observados pelo observatório Auger. Todas essas manifestações da natureza, dos sistemas artificiais e dos sistemas sociais têm surpreendentes elementos em comum. É isto que estuda a ciência dos sistemas complexos – razão de ser do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Sistemas Complexos, criado três anos atrás e congregando atividades de 36 cientistas de 18 instituições do Brasil.

E qual é o foco proposto para uma Engenharia de Sistemas Complexos? As aplicações práticas desses conceitos no processamento de sinais (eletrocardiogramas, eletroencefalogramas, temperaturas de El Niño, perfis ao longo dos acessos a reservatórios de petróleo), no processamento de imagens (de mamografias, de tomografia computadorizada, de visão noturna, das placas -ocasionalmente sujas, ou enferrujadas – dos carros que atravessam sinais em vermelho ou que viajam a velocidades proibidas), da classificação automática de centenas e milhares de células normais ou cancerosas. As aplicações práticas para a otimização das rápidas e numerosíssimas operações financeiras do mundo de hoje, dos algoritmos computacionais que regulam procedimentos de praxe nas indústrias química e farmacêutica, do tráfego de sinais na internet e outras redes computacionais, e no de carros e motocicletas nas grandes cidades. A lista é simplesmente interminável.

Mais uma vez, como quando patrocinou a criação da Engenharia de Materiais em São Carlos e o Departamento de Física de Recife, ou quando, durante um seminário na UnB, 35 anos atrás, disse: “Nos países subdesenvolvidos, temos que estar sempre atentos, pois até quando a gente tem razão, dizem que a gente está errado”, Sérgio Mascarenhas está coberto de razão.