O Espaço Alexandria é um projeto que pretende promover um diálogo da universidade com a dinâmica atual do conhecimento. Este projeto é baseado na cooperação interdisciplinar entre grupos de pesquisa que possuem interesses comuns em diferentes eixos temáticos. Valores como descobrir, inventar e pensar criticamente estão na essência da proposta, que valoriza um modelo descurricularizado, sem amarras departamentais, aberto para a reflexão e a proposição de novas ideias.
O Acadêmico Luiz Bevilacqua (na foto acima), professor emérito da UFRJ, coordenador do projeto Espaço Alexandria, nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, fala acerca dos desafios e das potencialidades abertas pela convergência temática em dois ou mais campos de conhecimento, num contexto marcado pelo acelerado avanço da Ciência e Tecnologia.
Para o pesquisador, a universidade do século XXI deve manter um projeto civilizador e o objetivo primário de fazer avançar as fronteiras do conhecimento científico: “é um modelo de universidade onde há mais perguntas que respostas”.
O projeto Espaço Alexandria foi elaborado inicialmente a partir de nove eixos temáticos: Dimensões humanas e mudanças globais; Cognição e Neurociências; Comunicação e Informação; Engenho, arte e invenção; Energia; Sistemas complexos e modelagem; Processos de transformação; Evolução e vida; Materiais e estrutura da matéria.
Por uma Nova Aventura do Conhecimento
Bevilacqua, que permanece atuando no Núcleo de Transferência de Tecnologia (NTT) do Programa de Engenharia Civil da Coppe, também questiona os critérios de financiamento que tendem a valorizar as pesquisas de aplicação de ferramentas que possam dar retorno em curto prazo. Segundo ele, o projeto de uma universidade para o século XXI deve ser civilizador e ter o objetivo primário de fazer avançar as fronteiras do conhecimento científico. “É um modelo de universidade onde há mais perguntas que respostas”, aponta o professor, que se graduou em Engenharia Civil pela UFRJ em 1959, especializou-se em pontes e grandes estruturas na TH Stuttgart (Alemanha), em 1961, e doutorou-se em Mecânica Teórica e Aplicada na Universidade de Stanford (EUA), em 1971.
Entrevista
Jornal da UFRJ (JU): No documento do projeto Espaço Alexandria, o senhor destaca que “a universidade foi fundada sob a hipótese de que o conhecimento não é apenas um meio de resolver as demandas materiais imediatas, mas é acima de tudo um bem necessário para iluminar o espírito humano.”A universidade vem cumprindo esse papel? Qual o atual Momento da universidade brasileira?
Luiz Bevilacqua (LB): O Brasil, e talvez seja uma tendência em todo o mundo, chama a universidade de Ensino Superior. Creio que há uma diferença: o Ensino Superior apresenta um leque muito maior. Quando termina o Ensino Médio, existem várias possibilidades para complementação de formação e profissionalização. Existem universidades que se preocupam com a formação profissional. Isso é absolutamente necessário. Porém existe outro patamar de universidade que não tem essa preocupação de formação profissional como um objetivo primário. O objetivo primário é fazer avançar o conhecimento. Defendemos um modelo de universidade onde há mais perguntas que respostas. Na universidade profissional já existe uma série de ferramentas prontas para resolver alguns problemas. A universidade em que se tem que pensar quais são os problemas é mais rara no Brasil. Esse tipo de universidade em que se faz avançar o conhecimento naturalmente vai depender muito do grau de educação, da formação cultural de uma sociedade. No Brasil, precisamos defender essa ideia para que algumas universidades se dediquem a isso. Acho que a UFRJ é uma das instituições de ensino que tem essa possibilidade.
JU: Esse modelo que o senhor defende não anula outras funções que a universidade já vem cumprindo, como, por exemplo, a formação profissional?
LB: Exatamente. Pensar criticamente é fundamental, mas, além disso, você tem que arriscar um pouco. Vou dar um exemplo que aconteceu em São Paulo: no último concurso para professor de que participei na área de Cognição, no ano passado, uma aluna não acreditava que poderia ser aprovada. No memorial, ela disse que sempre se interessou por interpretação de sonhos, inclusive do ponto de vista das Neurociências, mas não pôde se dedicar porque tinha que pensar no currículo. Então ela abandona um sonho, uma força motivadora da vida, para preencher um currículo. Isso está errado. Perdem-se pessoas que poderiam dar uma contribuição enorme. Ela sabe que, se ficar nessa área, vai publicar um trabalho daqui a três ou quatro anos. Então esse modo de avaliação está levando a universidade também a abandonar um pouco esse sonho.
JU: O documento do projeto se intitula “A universidade em tempo de choque cultural”. Que choque cultural é esse? Parece ter relação com a descontinuidade do conhecimento. O senhor poderia explicar melhor?
LB: Hoje o conhecimento avança muito rapidamente, puxado principalmente pelos avanços científicos e tecnológicos. Isso traz descontinuidade. Na Engenharia, não se pode dizer mais que se forma o engenheiro. No momento em que ele sai da faculdade, eventualmente algumas coisas que ele aprendeu passam a ser até obsoletas. O tempo dos objetos que estão expostos no museu hoje é muito pequeno. Você vai ao museu e encontra equipamentos e objetos que usou. Então a faixa de tempo que o museu abrange para dizer como foi o passado é de alguns anos. Antigamente eram séculos. Essa compressão do tempo caracteriza um choque.
JU: Haveria então uma incompatibilidade entre a organização acadêmica atual e o acelerado avanço da Ciência e da Tecnologia? A universidade não acompanhou esse ritmo de transformação?
LB: Não acompanhou. Olhando a estrutura acadêmica hoje, comparando com a do começo do século XX, não mudou muita coisa. Essa é uma característica do choque cultural. E nesse choque cultural é preciso evoluir de outra forma. Uma das consequências desse choque é a interdisciplinaridade. As disciplinas começaram a se misturar. Há matemáticos junto com biólogos, físicos, químicos e até com pessoas da área da Psicologia, Neurociência e Linguagem. Mas a universidade insiste em programar seus grandes eixos de conhecimento do mesmo modo como ocorreu no início do século XX: Física, Química, Biologia, Ciências da Computação, Matemática. Essas coisas não existem mais.
JU: Daí surge então a ideia do Espaço Alexandria. Qual o conceito central do projeto?
LB: Alexandria é um nome emblemático, porque foi um lugar onde conviviam, 300 anos antes da era Cristã, astrônomos, matemáticos, literatos e poetas. Não havia esse conhecimento compartimentado. Eventualmente alguém conhecia mais uma coisa do que outra, mas tinha interesse por tudo. A primeira máquina a vapor, ainda muito primitiva, foi inventada em Alexandria. É natural a gente entender que, com o mundo evoluindo, essas coisas vão se desenvolvendo em tentáculos. Está na hora de juntar tudo de novo. Então essa é a ideia: tentar ver se a gente consegue mover o interesse de alguns professores – não serão todos, cer
tamente – para um conceito diferente de universidade que possa depois, eventualmente, se concretizar em um currículo diferente. Reconheço que isso é dificílimo.
JU: O plano foi elaborado a partir de nove eixos temáticos, que têm como marca a interdisciplinaridade. A partir de quais critérios se baseou essa divisão?
LB: Experiências existentes. São eixos que procuram abranger um número maior de disciplinas, mas não são soluções únicas. Isso pode ser expandido. Acontece que para se iniciar uma discussão é preciso ter alguma coisa concreta, porque, caso contrário, não sai nada. Assim, pelo menos, existe um ponto de partida. Acho que os eixos fazem bastante sentido.
JU: Quais as dificuldades para implantação desse modelo?
LB: As pessoas talvez não queiram se mover para muito além das suas áreas de competência. Quando se fala em convergência disciplinar, em interdisciplinaridade, isso não significa ficar simplesmente em contato com pessoas de outras disciplinas. É necessário estudar o mínimo da disciplina dos outros. Requer outro tipo de formação.
JU: Pela proposta do Alexandria, não se trata de uma mudança meramente curricular. É algo mais estrutural?
LB: A gente quer evitar amarras regimentais, estatutárias. Sou muito mais favorável a deixar os processos evoluírem e ir estabelecendo as regras na medida em que forem necessárias.
JU: Pelo número e pela qualidade do seu corpo discente, a UFRJ tem um potencial enorme para ser inventiva e pensar criticamente. O senhor concorda?
LB: Espero contar muito com os estudantes. Nessa nova era de redução do tempo e com todos os meios hoje disponíveis, os estudantes estão muito mais próximos dos professores. Há 50 anos, havia o professor lá em cima que sabia tudo. Os estudantes apenas absorviam os conhecimentos. Hoje existem estudantes que sabem mais do que os professores porque têm acesso ao conhecimento muito mais rápido e num volume muito maior. Minha expectativa é que alguns estudantes também se interessem, porque eles são mais entusiasmados e têm mais garra.
JU: Em recente palestra realizada na UFRJ, o senhor falou sobre essa ideia de devolver aos jovens a alegria de estudar.
LB: É bom conhecer. Quando se domina um conhecimento, isso dá prazer. A pessoa sabe que sabe. Então precisamos recuperar esse gosto.
JU: Não chega a ser uma nova cultura, mas o resgate de uma cultura verdadeiramente acadêmica?
LB: Tenho bastante confiança no progresso da nossa civilização, mas hoje isso pode ser feito de várias formas. Países com mais condições podem se dedicar mais ao avanço do conhecimento. Se os outros permanecerem nessa situação mais pragmática vão ficar simplesmente aplicando. É possível ter grandes descobertas ou tentativas de descobertas farmacológicas nos grandes laboratórios do mundo. Aqui pagamos para que as descobertas possam ser aplicadas, para ver se funciona ou não. Qual a nossa contribuição? Muito prática. No momento em que eles não produzirem mais conhecimento ou não quiserem mais transferir esse conhecimento, o resto estaciona.
JU: A esse respeito, o documento informa: “Se nos contentarmos em sermos apenas aplicadores de ideias geradas em outros lugares. Se nós nos reduzirmos a caminhar pelas vias abertas por outros, bem exploradas e sem riscos para acrescentar mais um pequeno resultado na enciclopédia do conhecimento mundial, ficaremos prisioneiros mais uma vez”. Esse trecho se relaciona com a sua observação anterior?
LB: Exatamente. Então é preciso mudar esse conceito da universidade. Não é questão de xenofobia, de se fechar. É questão de dizer que temos o direito e o dever de produzir conhecimento. Não podemos negar esse direito aos jovens com essa vocação, dizer que aqui não há espaço para isso. Precisamos dar oportunidades para que eles desenvolvam suas descobertas. É uma cultura que precisa ser mudada rapidamente. Vejo o Brasil atualmente caminhando para ser um país que tenha o que dizer e não simplesmente que fique à mercê do que acontece no mundo. Há alguns anos, jamais o Brasil retaliaria os Estados Unidos. Hoje ele assume o seu papel, de direito. Isso nos coloca no cenário internacional como um país que tem voz e tem vez. Isso agora precisa permear a área de Ciência e Tecnologia.
JU: O projeto prevê outras atividades complementares, como cursos não curriculares e seminários internos de pesquisa. Poderia falar um pouco mais a esse respeito? Quando essas ações começariam na universidade?
LB: Nossa intenção é começar a oferecer alguns cursos com essa vertente bastante interdisciplinar este ano. Talvez um na Cidade Universitária e outro na Praia Vermelha. Ainda não sei como vai funcionar, mas, se os alunos perguntarem se vai ter crédito, digo que não vai ter. O crédito interno é a alegria do conhecimento. Existem certos cursos que são bastante atrativos. Por exemplo, cursos na área de Astronomia e Astrofísica ou Genética e DNA, com um desdobramento de como isso pode ser modelado. Quer dizer, queremos começar a fundir esses conhecimentos.
JU: Também está prevista no Espaço Alexandria a cooperação com outras universidades, através do intercâmbio de estudantes e professores?
LB: Certamente. A universidade tem que ser aberta, inicialmente às instituições que estão próximas e se interessam pela área de pesquisa, como a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e a Pontifícia Universidade Católica (PUC), além da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) em certos setores. Queria muito ver um seminário de estudantes. Acho que temas não vão faltar. Citei o exemplo de uma aluna que queria estudar interpretação dos sonhos, mas desistiu por falta de financiamento. Aqui seria o lugar. Nós daríamos suporte a essa ideia. São coisas que, às vezes, não têm lugar porque está ficando tudo muito pragmático. A própria sociedade está cobrando demais. É o “serve pra quê?”.
JU: O senhor falou nas dificuldades para conseguir financiamento para determinadas pesquisas. O Espaço Alexandria viria suprir algumas lacunas dos órgãos de apoio à pesquisa, que incentivam pesquisas que deem retorno em curto prazo e fazem avaliação mais quantitativa do que qualitativa dos projetos?
LB: O que acontece aqui acontece no resto do mundo. Os órgãos de apoio à pesquisa têm que dar uma resposta à sociedade. Pensam: estou botando milhões aqui e o que está saindo? Estou descobrindo uma nova galáxia, mas ninguém explora petróleo em galáxia. Então há uma demanda de que essas coisas tenham um resultado que sirva para o bem viver material das pessoas. Isso não é errado. Só que falta o resto. É a mesma coisa quando se diz: posso comer, tenho uma casa, só que não leio um livro. Será que você é uma pessoa completa? Acho que estamos tendendo para uma avaliação dos projetos de maneira muito pragmática: quais os resultados em curto prazo e quais os impactos socioeconômicos? E os impactos intelectuais? Esses não contam? Outra coisa é que os resultados das pesquisas, inclusive para efeito de currículo, são contados hoje num critério muito quantitativo. São contados quantos papers se publicou e em quais revistas? Hoje são publicados milhões de papers por ano em milhões de revistas, mas, na verdade, o que se faz são catálogos. Você tem as ferramentas, pega
uma nova matéria-prima, aplica essas ferramentas e tem outros resultados. Isso não é ruim, mas não se pode reduzir a avaliação a essa quantidade de produção. Hoje é normal haver dez papers por ano em certas áreas. Quase um por mês. Ninguém tem uma boa ideia por mês. Na avaliação do desempenho, isso tem que ser relativizado. Não se pode dizer que quem tem 20 papers é melhor do que aquele que tem dez. Pode ser que quem tenha dois papers seja muito melhor, porque teve duas ideias geniais. Essa quantidade versus qualidade é que precisa ser revista. Mas já existe um movimento grande na área científica e tecnológica de contraposição a esse exagero.
JU: Falamos dos jovens estudantes, mas e o papel do professor diante das
mudanças tecnológicas e sua postura em sala de aula? Ele transmite conhecimento, mas estimula a criatividade e o espírito crítico?
LB: Interessa muito mais a ação e a iniciativa do próprio aluno. Os professores não metem informações na cabeça de alunos. Isso não existe. Eles é que aprendem com os alunos. Então é necessário estimular essa criatividade, esse modo de pensamento crítico. Deixar que eles pensem, produzam e não atuem como receptáculo de conhecimento que vem de fora.
JU: Quanto aos recursos para o Alexandria? O documento fala em buscar fontes alternativas de investimento. Como obtê-los?
LB: Podemos recorrer aos órgãos de apoio à pesquisa, mas queria ver a possibilidade de conseguir recursos do setor privado. Pode parecer um pouco de loucura dizer: queremos fazer uma pesquisa que não interessa a vocês, mas estamos pedindo para vocês financiarem isso porque interessa à humanidade, interessa ao futuro, interessa à civilização. Tenho confiança nas pessoas. Não acho que um semelhante seu seja totalmente avesso à humanização do mundo. É dizer: não faremos um poço de petróleo mais eficiente nem um avião mais silencioso ou menos consumidor de combustível. É dinheiro para fazer alguma coisa que tenha mais perguntas do que respostas. Que não tenha resultados imediatos, mas que possa ter no futuro. A ideia é também tentar um fundo de investimento com bancos estatais, com agências do governo. Esse fundo seria administrado por um conselho, formado por um representante de cada doador e representantes da universidade ou das outras universidades. No fim de um ano, esse fundo daria alguns rendimentos em torno de 8% ou 10%. Digamos que se consiga R$ 100 milhões. No fim de um ano, teríamos R$ 10 milhões para financiar projetos. Então serão enviados os projetos e esse conselho faria uma análise para verificar os que merecem apoio e estão no espírito do Espaço Alexandria. Acho que, pela própria ideia do Alexandria, a sociedade tem que estar comprometida. Acho muito difícil levar isso adiante sem que haja esse reconhecimento da sociedade. Se não for possível, estaremos ainda numa trajetória muito difícil. Mas tenho muita esperança.
JU: Há uma relação entre a formulação do projeto Alexandria com as discussões sobre o Plano Diretor UFRJ 2020, tendo em vista que um de seus objetivos principais é promover uma dupla dimensão de integração, tanto interna, entre os cursos da universidade, como externa, entre a UFRJ e a cidade? Nesse sentido, o Plano Diretor pode contribuir para as discussões do projeto Alexandria?
LB: Sim. Nessa integração com a cidade, por exemplo. Quando se fala em extensão nas universidades brasileiras, praticamente todas as pessoas pensam em cooperação com o governo, com órgãos públicos, com a indústria. Acontece que existe um espaço para a extensão que é levar conhecimento para a sociedade.
JU: Quais são os próximos passos do projeto?
LB: Pretendemos fazer algumas palestras ainda neste semestre nos centros e já começar no segundo semestre alguns cursos e seminários.
JU: Qual projeto de universidade o Alexandria almeja?
LB: A formação do homem integral, abrindo oportunidades para que cada um escolha seu caminho, não colocando os estudantes em trilhos previamente estabelecidos. Portanto, deixando muita liberdade e mais responsabilidade para eles e apurando muito a qualidade de professores e alunos. Quer dizer, o conhecimento deve ser aprofundado e não pode ser superficial. É uma universidade de qualidade. Temos uma universidade elitista. Precisamos de inclusão social.
Acesse o site: http://www.espacoalexandria.ufrj.br