A matemática Maria Laura Mouzinho Leite Lopes foi uma das cinco primeiras mulheres admitidas na Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a primeira brasileira a entrar como membro associado – as outras foram Marie Sklodowska Curie, Emilie Snethlage, Carlota Joaquina de Paiva Maury e Gabrielle Mammana, todas membros correspondentes.
Sua dedicação aos temas referentes ao ensino da Matemática já motivou inclusive uma tese de doutorado e uma de monografia. Mas esse interesse não surgiu na infância: ela confessa que detestava Matemática. “Eu errava muito nas contas, ficava até com dor de cabeça”, declara, em depoimento exclusivo para as Notícias da ABC, em homenagem ao 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Ainda assim, Maria Laura Mouzinho foi a primeira Doutora em Matemática formada no Brasil.

A relação com os estudos

Nascida em Pernambuco, em 1919, numa família com sete filhas mulheres, sendo ela a primogênita, e apenas um menino – o caçula – Maria Laura afirma que nunca se sentiu discriminada por ser mulher. Sua mãe, Laura Moura Mouzinho, havia parado de estudar no curso Normal, embora desejasse ser médica, porque vinha de uma família de onze filhos e não teve oportunidade de continuar os estudos. “Meus pais incentivaram todas nós a fazer universidade, eles se preocupavam muito com a nossa formação”, explica a professora.

Maria Laura conta que quando entrou para o curso Normal, aos 13 anos, que equivalia ao ensino médio e era para onde iam as meninas depois do ensino fundamental, teve a sorte de ser aluna de Luiz de Barros Freire, um professor criativo que, fora do horário das aulas, contava histórias da Matemática na biblioteca para um grupo pequeno de alunas interessadas, mostrando a beleza da matéria. Pela influência dele, Maria Laura pensou pela primeira vez em fazer alguma coisa ligada à àrea.
Ela identifica altos e baixos em sua história de vida, mas acha que os problemas que enfrentou, em certo sentido, a favoreceram. Quando sua família teve que se mudar de Recife para o Rio, em 1935, ela estava com 16 anos e já tinha cursado três anos do curso Normal. Seu pai, Oscar Mouzinho, considerou-a capaz de fazer o exame de Madureza, que encaminhava os alunos para cursar as duas últimas séries do curso ginasial, mas era apenas para maiores de 18 anos. Providenciou, então, uma nova certidão de nascimento, datada de 1917, para que ela não ficasse para trás nos estudos. Foi assim que Maria Laura e suas irmãs entraram para o Instituto Lafayette. “O instituto era um escola bem atualizada, bastante moderna, muito interessante. Eu fiz um ano, a quarta série”, conta.
Após um ano, mudaram-se para Petrópolis, onde as meninas foram estudar no Colégio Sion, que era considerado o melhor da cidade. Lá, Maria Laura sentiu-se deslocada. A escola era de elite, inclusive econômica, “as meninas falavam francês desde o primário e tinham aulas de latim. E eu, coitadinha? Onde é que eu podia me salientar?” Ela encarou a situação como um desafio, estudou Latim, Francês e Literatura. Mas como já tinha bastante conhecimento de Matemática, gostava de Física e de Química, conseguiu se destacar naquilo em que se diferenciava: na parte de ciência.
Naquele momento, Maria Laura percebeu que deveria cursar uma universidade. Mas as opções, na época, eram poucas: Engenharia, Medicina ou Direito. Tentou o vestibular de Engenharia no anod e 1938, mas foi reprovada em Desenho. Passou então um ano sem estudar, dando aulas particulares, inclusive no Colégio Sion.
No ano seguinte, em 1939, ela soube da existência da Universidade do Distrito Federal (UDF), que havia sido fundada em 1935 por Anísio Teixeira. Os objetivos daquela instituição eram a pesquisa não orientada para as áreas profissionais e a formação de professores de todos os níveis. Entusiasmada, Maria Laura procurou a UDF, mas o vestibular já havia acontecido e ela só poderia tentar entrar no ano seguinte. “Mas quando eu estava saindo, quem vinha chegando? O Luiz Freire. Ele fez muita festa e contei a ele minhas misérias. Ele me perguntou: você passou em Matemática e Física no vestibular para Engenharia? Então, está matriculada!” Conseguiu um documento que comprovava seus resultados no vestibular e foi assim que entrou no curso superior.
Mas, 15 dias depois, a UDF foi fechada, tendo seus cursos e corpo docente e discente transferidos para a recém criada Universidade do Brasil. Maria Laura começou então o curso de Matemática na Faculdade Nacional de Filosofias (FNFi da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro) em uma turma de dez alunos, dos quais quatro eram mulheres. Estudavam junto com os alunos de Física nos dois primeiros anos. E entre estes estavam José Leite Lopes, Jayme Tiomno e Francisco Alcântara Gomes, que já era médico. Os alunos da escola de Engenharia, entre eles Marília Chaves, Maurício Peixoto e Leopoldo Nachbin, que mais tarde se casaria com Maria da Graça, uma das irmãs de Maria Laura, participavam das aulas do curso de Matemática. No decorrer do curso, todos ficaram muito amigos. Eles eram, nas palavras dela, da” turma do contra”: contra a organização da universidade e contra a cátedra feudal.

Maria Laura atribui parte importante de sua formação ao Professor Antônio Monteiro, que veio de Portugal para o Brasil em 1945 e trouxe uma Matemática mais atual do que a que se fazia aqui. “Vocês pensam que a Matemática é aquela coisa imutável? Não é não! A história da matemática é muito cheia de conquistas e diferenças, há uma evolução muito grande”, argumenta a professora.

Em 1949, Maria Laura defendeu sua tese de livre docência, com a qual obteve o titulo de Doutora em Ciências Matemáticas. Ela conta que a também Acadêmica Marília Peixoto já havia defendido uma tese sobre equações diferenciais, mas pela Escola de Engenharia. Na Matemática mesmo, a primeira foi Maria Laura. Sua tese de doutorado foi publicada na Summa Braziliensis Mathematicae, da Fundação Getúlio Vargas, a primeira revista de Matemática de ensino superior, pois havia obtido resultados interessantes dentro da teoria dos reticulados, assunto que estava na ordem do dia.

“A vida não é só ciência”

Maria Laura fala da vida pessoal com muita tranqüilidade. Na faculdade, ficou muito amiga de José Leite Lopes, que se tornaria um dos mais importantes físicos do Brasil. Ele era casado com a namorada de infância, Maria do Carmo Moreira Lopes, e tinha dois filhos. Maria Laura era amiga do casal e convivia com a família. Mas a esposa de Leite Lopes ficou gravemente doente e Maria Laura ajudava ficando com as crianças. Depois que a esposa faleceu, ela acabou se casando com Leite, como ela o chama, e mudou o nome para Maria Laura Mouzinho Leite Lopes.

Ela diz que uma das coisas que acha mais importante em sua vida foi ter criado os dois filhos de Leite Lopes – José Sérgio e Sylvio Ricardo – como seus. “Eles me consideraram como mãe. Realmente, a gente conseguiu formar uma família”. Para isso ela contou com uma grande ajuda da mãe da primeira esposa de Leite Lopes, D. Marieta, que ficou com a família até o fim. “Ela me ajudou a criar tanto os dois meninos quanto a minha filha com Leite, Ângela.”

Depois de 17 anos de casamento, eles se separaram. Mas continuaram amigos. “A gente não tem que olhar para as coisas miúdas e sim olhar para um horizonte largo. É preciso ter generosidade com a vida”, diz ela. “A vida não é só ciência, o que vale mais é a realização como ser humano. E isso, felizmente, eu consegui.”

A preocupação com o ensino e o contexto político

Maria Laura tem uma visão crítica sobre a evolução tecnológica desatrelada da evolução educacional. Ela diz que os matemáticos faziam a Matemática, mas ela não chegava à escola, e cita um grande matemático realmente se preocupou com isso, o alemão Felix Klein, que levantou essa questão em um Congresso de Matemáticos em 1908, em Roma, quando então foi fundado o Comitê Internacional de Instrução Matemática (ICMI). Isso acarretou uma reforma do ensino da Matemática que teve seguidores no Brasil, como o professor Euclides Rox, do Colégio Pedro II, que batalhou pela integração da aritmética, álgebra e geometria, ministradas até então de forma isolada.

A professora conta que até os anos 50, o cientista brasileiro era um autodidata. “Não tinha apoio, eram poucas as instituições onde se fazia pesquisa. Por exemplo, aqui no Rio era basicamente o Instituto Oswaldo Cruz, que inegavelmente teve grandes cientistas”. Não havia ainda, no entanto, uma institucionalização da ciência, que só foi ocorrer a partir de 1951, com a fundação do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
A Acadêmica rememora a 2ª Guerra que, para Maria Laura, foi ganha pelos cientistas. Não somente pela bomba atômica, mas principalmente com a Matemática, pois foi necessário desenvolver a questão da programação linear e a do abastecimento rápido das tropas em combate nos campos, principalmente para tanques e demais transportes utilizados na guerra. “Com isso, vieram os computadores”, lembra a educadora. Em 1950, ela esteve num congresso em Harvard onde foi apresentada aos computadores, na época do tamanho de armários. Era uma demonstração orgulhosa da evolução da computação, pois as máquinas que antes tinham o tamanho de salas agora estavam reduzidas ao tamanho de armários. “E hoje, o que temos? Computador que levamos no bolso. Mas e o ensino? Será que evoluiu na mesma escala?”

Maria Laura relata que, logo após a 2ª Guerra, em 1952, um grupo de matemáticos, professores e psicólogos reuniram-se em Londres para compor um Comitê Internacional para Estudo e Aperfeiçoamento do Ensino da Matemática. O estruturalismo estava na ordem do dia – fosse na Psicologia, com Piaget, ou na Matemática, com Nicolas Bourbaki. Então, em 1959, a Comissão Européia para o Desenvolvimento Econômico convocou um congresso na França, de onde saiu a Matemática dita moderna, toda estruturalista. Mas, segundo ela, foi imposta essa “nova” Matemática aos professores, que não foram preparados para ensiná-la. “A questão era começar com o estudo dos conjuntos. E é nesse cenário que eu vou me inserir”, explica Maria Laura.
Ela reconhece que no período ditatorial, como os militares queriam fazer o país crescer, a pesquisa foi institucionalizada na universidade, dando aos professores a perspectiva do tempo integral e da dedicação exclusiva. “Mas se por um lado houve esse movimento a favor da pesquisa, por outro lado houve uma desvalorização muito grande do ensino de graduação e, em particular, das licenciaturas”, aponta a professora.
Para identificar o momento atual, Maria Laura cita o sociólogo Octavio Ianni, que sinaliza a ruptura que estamos vivendo hoje, da era da informação. “Estamos vendo agora a revolta no Oriente Médio e na África sendo feita com o Facebook, com o Twitter. Não está sendo feita com canhão só não. Isso mostra a importância da informação e do conhecimento”, observa a professora.
A opção pela educação matemática
Quando o governo militar a aposentou, em 1969, Maria Laura foi para Estrasburgo, na França com a família, onde ficou quase dois anos sem trabalhar. Conseguiu então entrar no Instituto de Pesquisa e Educação Matemática (IREM), da Universidade Louis Pasteur. E lá descobriu que fazer pesquisa nessa área era uma coisa séria. Passou então a ver a Educação Matemática como outra maneira de se fazer Matemática: trabalhando a cognição do aluno.

Quando voltou para o Brasil, identificou alguns grupos voltados para a modificação do ensino da Matemática. Havia o Grupo de Estudos do Ensino de Matemática (GEEM), em São Paulo, liderado por Oswaldo Sangiorgi e Renata Watanabe, cujo objetivo principal era preparar os professores para a Matemática Moderna; o Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (Gempa), de Porto Alegre, que tinha à frente a professora Ester Pilar Grossi e pretendia atualizar professores com base nas idéias de Zoltan Paul Dienes.
No Rio de Janeiro, então Estado da Guanabara, havia sido criado o Grupo de Estudos de Matemática do Estado da Guanabara (Gemeg), baseado nas ideias de Georges Papy e seus seguidores, presidido por Arago Backx, um ex-aluno de Maria Laura da Faculdade Nacional de Filosofia que tinha ido estagiar na Bélgica, onde atuava Papy. Maria Laura travou contato também com o Grupo de Ensino de Matemática Atualizada (Gruema), formado por mulheres: Anna Averbuch, Anna Franchi, Franca Cohen Gottlieb, Lucília Bechara Sanchez e Manhucia Perelberg Liberman. Elas já tinham dado uma outra feição aos livros didáticos, inclusive com histórias em quadrinhos, que eram uma inovação.
Maria Laura se juntou à professora Moema de Sá Carvalho, sua colega desde a época da FNFi, a Anna Averbuch, Franca Cohen, Estela Saiguelernt e a José Carlos Mello e Souza, professor da Universidade Santa Úrsula, e resolveram pensar a educação matemática de forma independente. Fundaram então, em 1976, o Grupo de Estudos e Pesquisa de Educação Matemática (Gepem), sendo eleita a Professora Maria Laura Mouzinho Leite Lopes para presidente.
O Gepem teve como primeira atividade a organização do I Seminário sobre o Ensino de Matemática. Para tanto, Maria Laura foi conversar com o falecido Acadêmico José Pelúcio Ferreira, que era da Finep, para conseguir recursos para o evento. A Finep, porém, não tinha como disponibilizar a verba, mas Pelúcio sugeriu que ela procurasse o presidente da ABC, Aristides Pacheco Leão, que lhe abriu os braços e deu todo o apoio logístico.

O evento foi realizado então, no ano de 1976, com o patrocínio da Academia Brasileira de Ciências e do Programa de Expansão e Melhoria do Ensino (Premen), com o objetivo de obter um panorama da situação do ensino da Matemática no Brasil, tendo contado com a presença de aproximadamente 200 professores de 20 Estados e de todos os níveis de ensino. Em convênio com a Universidade Santa Úrsula, o Gepem realizou o primeiro curso de pós-graduação lato sensu em Educação Matemática para seus professores. A partir dessa experiência, a referida universidade iniciou em 1989 o curso de Mestrado em Educação Matemática no Rio de Janeiro.
E assim começou o trabalho de uma entidade que publica, desde 1976, um boletim que é referência para a Capes na Educação Matemática até hoje. Depois de muitos percalços, o Gepem hoje funciona na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Maria Laura já se afastou do Grupo, mas se orgulha em tê-lo construído.

Aposta na formação continuada de professores do ensino básico

Em Estrasburgo, Maria Laura havia aprendido que era necessária uma formação continuada para os professores. Mas lá o material vinha pronto da universidade e ela percebeu que nem sempre estava de acordo com o público-alvo. Quando utilizavam os livros e materiais com os alunos, muitas vezes eles não entendiam o conteúdo apresentado. E os professores não se conformavam, responsabilizavam o aluno pelo fracasso na aprendizagem. “Aí eu percebi que ensinávamos em plena neblina e vi o que tinha que ser feito: o próprio professor é que tinha que elaborar o livro, junto com seus alunos. E quando eu consegui fazer isso? Quando eu voltei para a universidade, em 1980.”
Maria Laura juntou-se então a professores do Instituto de Matemática da UFRJ que se preocupavam com a formação inicial e continuada dos professores, como Lucia Tinoco e Radiwal Alves Pereira. Sua chegada fortaleceu o grupo, pois além de ser membro da Academia e trazer a experiência de fora, ela era um pouco mais velha e tinha sido professora de vários dos matemáticos que naquele momento estavam na direção do Instituto. “Eu cheguei e o diretor, que tinha sido meu aluno, me perguntou Qual é o departamento que a senhora quer ir?. Eu disse que queria um pra mim. Não tive, mas hoje o Projeto Fundão, criado por nós, é um programa vitorioso da Universidade.”, diz uma Maria Laura orgulhosa.

O objetivo do Projeto Fundão é a valorização do professor, considerada em dois aspectos: o exterior, que diz respeito ao reconhecimento da sociedade, melhores salários e condições de trabalho, e o aspecto da valorização interior, pela sua competência. “Porque se o professor não é competente, não adianta. E não há varinha de condão: é um processo longo e dinâmico.”
Maria Laura considera que para se alcançar um sistema sólido de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil, é preciso ter um sistema sólido e criativo de ensino de Matemática e das Ciências em geral. A grande receita, do ponto de vista da pesquisadora, é ter um professor bem preparado. O Projeto está organizando, para 2011, o 32º Encontro de Professores, que reúne profissionais de todo o estado do Rio e também de outros estados.
“Até hoje eu sou coordenadora do Projeto e tenho uma satisfação muito grande com seus resultados”, diz a educadora, observando que costuma dizer aos seus alunos que nunca desanimem. “Aceitem os desafios, porque só a partir deles é que vocês poderão realmente ser grandes pessoas.” Maria Laura comenta que ultimamente tem citado muito uma frase de Plutarco, pensador grego do século II. “A alma do aluno não é um vaso que se deve encher, mas uma lareira que se deve acender. Fico contente, porque acho que acendi muita lareira por aí.”