Passada a primeira curva da Estrada Dona Castorina, que leva ao mirante da Vista Chinesa, no bairro do Horto, sobressai a entrada de uma propriedade cercada pelas árvores da Floresta da Tijuca. Ali, em um terreno de 15.000 metros quadrados, um vasto prédio se esparrama por três alas. Pelos corredores, o silêncio monástico é cortado de tempos em tempos por diálogos em português, inglês, francês e espanhol. Não raro, incorporam-se a essa babel de idiomas expressões em russo e mesmo persa, uma das línguas mais antigas do planeta.

É nesse ambiente, mistura de bucolismo e aldeia global, que 226 matemáticos desenvolvem estudos complexos e projetos de repercussão internacional. Embora não seja muito conhecido entre os próprios cariocas, o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa) é unanimemente apontado entre os especialistas como um dos principais centros de pesquisa do mundo. Ancorado em sólida produção científica, exibe uma performance surpreendente, ultrapassando índices de departamentos de universidades americanas como Harvard, Princeton e Berkeley. Segundo dados da American Mathematical Society, a instituição brasileira publica, em média, 2,03 artigos relevantes por pesquisador ao ano, enquanto Harvard alcança 1,89 e Princeton, 1,83 (veja o acima). “Sempre buscamos a excelência, e essa performance é apenas o resultado desse compromisso”, orgulha-se o diretor, o Acadêmico César Leopoldo Camacho.

Welington Celso de Melo, Jacob Palis e Artur Ávila, na Biblioteca do Impa (foto do prédio principal abaixo): três gerações de talentos

Sabe-se que um núcleo de ensino superior se torna respeitado à medida que consegue atrair talentos dos quatro cantos do globo. Entre os centros americanos, considerados os primeiros do mundo, a presença de acadêmicos estrangeiros chega a 30%. No período áureo do sistema universitário alemão, na década de 20 e início dos anos 30, quando a importação de cérebros era incentivada, o país produziu 21 prêmios Nobel. Portanto, faz parte da vocação de uma ilha de excelência reunir grandes cabeças, independentemente de onde elas estejam.

Um recente processo para a escolha de dez vagas nos programas de pesquisa e pós-doutorado dá uma ideia da reputação internacional do Impa. Anunciado o “vestibular”, apareceram 185 candidatos. Da Europa, vieram 66. Da Ásia e América do Norte, 43 e 26, respectivamente. Os latino-americanos perfaziam 28, enquanto os brasileiros eram 23. Encerrada a seleção, apenas duas posições foram ocupadas por estudantes daqui, um cearense e uma gaúcha. Outras sete foram divididas por representantes de nações diferentes (Inglaterra, Alemanha, Espanha, Itália, Portugal, Israel e Rússia). E detalhe: uma última vaga permaneceu em aberto por falta de postulante suficientemente qualificado. “Não temos cota. Simplesmente escolhemos os melhores”, diz Camacho. Uma vez selecionados, os pós-doutorandos ganham 7.500 reais mensais, enquanto os pesquisadores têm salários entre 12.000 e 15.000 reais.

Não é fácil reproduzir em palavras todo tipo de trabalho desenvolvido no câmpus do Horto – para isso, seria melhor fazer uso de equações e algoritmos. Alguns projetos, porém, são de fácil entendimento. Existem aplicativos para iPhone, simuladores de realidade virtual e até um recorde mundial alcançado em 2010: uma imagem com a maior resolução gráfica do planeta (veja o quadro aqui).

Tamanha produtividade, pouco comum entre nós, pode ser explicada por diversas razões. Mas a principal delas é a capacidade dos que ali estão. O Impa tem formado sucessivas gerações de gente que faz diferença. O mais reconhecido é Jacob Palis, 71 anos, tido como gênio mundial dos sistemas dinâmicos. No ano passado, Palis, doutor por Berkeley, nos Estados Unidos, foi agraciado com o Prêmio Balzan, uma das principais distinções europeias. Além de ser o primeiro brasileiro a receber a honraria – e o 1,2 milhão de reais que a acompanha – , Palis tornou-se o sétimo matemático a entrar para o grupo de agraciados. Empenhado em transmitir seus conhecimentos, ele se emociona ao relembrar que orientou 41 teses de doutorado ao longo da carreira. Desde então, esses mesmos doutores já formaram outros 150 matemáticos do instituto. “Essa é a essência do conhecimento, em que os mais experientes formam os mais jovens, sucessivamente”, resume.

Os pesquisadores Diego Nehab e Carolina Bhering de Araujo, ambos de 34 anos: volta ao Brasil depois de cursarem doutorado em Princeton, uma das universidades mais importantes do mundo

Tal filosofia, fortemente baseada na meritocracia, deu origem a uma linhagem de superpesquisadores como Marcelo Viana, Ricardo Mañé e Welington Celso de Melo, reconhecidos no Brasil e no exterior pela notória desenvoltura com números. E desaguou em prodígios como Artur Ávila, de 31 anos. Ele é considerado o mais forte candidato a ganhar a medalha Fields, uma espécie de Prêmio Nobel de Matemática, entregue a cada quatro anos. Seria o primeiro brasileiro a conquistá-la. Há uma década, antes mesmo de ter um diploma de graduação, ele havia concluído seu doutorado no Impa. Famoso no exterior pela capacidade de resolver os problemas mais complexos, ele se divide hoje entre Paris, onde é um dos diretores do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), e o Rio de Janeiro. “A maioria das pessoas só conhece o tema nos tempos de escola e ignora o vasto horizonte nessa área”, diz. Ávila, de fato, respira o assunto. Não raro, acorda no meio da noite com ideias e novos caminhos para suas teses. Durante o banho, nas caminhadas e até no metrô, as equações lhe vêm à cabeça. Costuma dizer que prefere não dirigir porque, devido a sua capacidade de abstração, poderia perder a concentração e bater o carro.

Sala de estudos do câmpus, no Horto: atmosfera ao mesmo tempo informal e cosmopolita

Por qualquer ângulo que se olhe, a educação brasileira está longe do ideal. Em seu ranking mais recente sobre o ensino fundamental, a Unesco atribuiu ao país a 88ª posição entre as 127 nações analisadas – atrás de Bolívia e Namíbia. Outra lista, sobre as 200 melhores universidades do mundo, feita pela revista inglesa Times Higher Education, não incluiu nenhuma das nossas. Ou seja: estamos mal em cima e em baixo.

Por não ter cursos de graduação e se dedicar unicamente à matemática, o Impa não é avaliado nesse tipo de levantamento. Mas sua trajetória poderia servir de exemplo e inspiração. Criado pelo governo federal em 1952, o instituto surgiu antes de outros correlatos – como o de Pesquisas Espaciais em São José dos Campos (SP) e o da Amazônia, em Manaus. Com o tempo, graças à adoção de um sistema de gestão diferenciado, foi se descolando de seus pares. Trata-se de uma organização que recebe repasses públicos, mas tem independência administrativa. Com isso, as contratações e os investimentos são mais ágeis. Se a direção julgar procedente, os acadêmicos poderão ser punidos com a demissão. “Isso faz uma enorme diferença, pois dá autonomia. Pesquisa não se faz no improviso”, afirma o economista Claudio de Moura Castro, especialista e consultor na área.

Costurados com carinho, os laços com a iniciativa privada têm se mostrado outro importante diferencial. A cada ano, o instituto recebe 18 milhões de reais em repasses do Ministério da Ciência e Tecnologia. Mas, além de administrar tais recursos com rigor, busca também financiadores externos, seja através de parcerias, seja por meio de simples filantropia. Desde 2007, por exemplo, o economista e ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga doou 1,6 milhão de dólares para seus cofres. O dinheiro foi destinado à criação de um posto permanente de pesquisador. Em seguida, foi a vez de o banqueiro Pedro Moreira Salles e seu irmão, o cineasta João Moreira Salles, destinarem 660.000 reais para a manutenção de duas vagas de doutorado e mais duas de pós-doutorado. O último a entrar na lista foi o célebre matemático americano James Simons, dono de uma fortuna de 10,6 bilhões de dólares e o 74º homem mais rico do mundo. No início do ano, ele se comprometeu a aplicar 1,6 milhão de dólares. “A matemática é fundamental para a boa educação, e o Impa é um centro de padrão máximo global, talvez a instituição brasileira de maior prestígio internacional”, explica Fraga. “De lá saem pessoas que espalham pelo Brasil ideias e padrões essenciais, vitoriosos.”

O inglês Morris, o iraniano Movasati e o argentino Heloani: salários compatíveis com os dos melhores centros e excelentes condições de pesquisa atraem matemáticos de vários países

Nas grandes universidades do mundo, os pesquisadores de ponta gozam de uma invejável independência, seja para dispor de seu tempo, seja para escolher os rumos de seu trabalho. O mesmo acontece com os matemáticos da ilha de excelência carioca. O fato de não terem de dar aulas para graduação lhes permite uma maior dedicação a seus próprios projetos. É curioso observar que, frequentemente, um estudante de determinada área não entende absolutamente nada das outras. “Eu sou da computação gráfica e as outras especialidades são praticamente outra língua para mim”, confessa Diego Nehab. Aos 34 anos, ele é representante da nova geração de estudiosos do instituto. Doutorou-se em Princeton e passou pelo centro de inovação da Microsoft, na costa oeste americana. Com tantas credenciais, Nehab poderia ter continuado nos Estados Unidos, mas, quando soube da vaga, decidiu que era a hora de voltar. “Aqui tudo funciona. Os equipamentos são ótimos”, diz ele. Trajetória semelhante teve Carolina Araújo, de 34 anos, membro afiliado da ABC. Como Nehab, ela fez doutorado em Princeton. Lá, sua sala ficava no mesmo andar do escritório de John Forbes Nash, ganhador do Nobel de Economia em 1994 – e inspirador do filme Uma Mente Brilhante. “Ele ia diariamente à universidade. Sempre nos cumprimentávamos”, recorda. A perspectiva de desenvolver projetos na área de geometria algébrica a animou a trocar os Estados Unidos pelo Rio. Com isso, tornou-se também a única mulher a ocupar um posto na elite do Impa.

Presenças marcantes no belo câmpus do Horto, os estrangeiros parecem se sentir em casa. Adepto de um uniforme pouco usual entre as estrelas acadêmicas de seu país, o argentino Reimundo Heloani, de 33 anos, percorre os amplos corredores do instituto de camiseta, bermuda e chinelo de dedo, aliás um visual comum por ali, principalmente entre os expatriados. Com especialização no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e em Berkeley, escolheu o Brasil para fazer suas pesquisas em uma área aqui ainda pouco explorada, a física matemática. O inglês Robert Morris, de 30 anos, segue o mesmo estilo. Graduado na Universidade de Cambridge, o maior celeiro de prêmios Nobel do planeta (82 no total), ele se diz apaixonado pelo Rio: “O salário é ótimo, muito parecido com o que se paga na Europa. Além disso, os colegas são mais abertos para a troca de conhecimento”. Com sua mistura de rigor acadêmico e informalidade, o Impa atrai até representantes de culturas longínquas, como o iraniano Hossein Movasati. Há quatro anos na cidade, após uma experiência na Alemanha e no Japão, ele foi o primeiro de seu país a estudar na nossa pequena Harvard. Agora, espera que conterrâneos sigam seus passos. “Outros virão”, avisa Movasati. As portas estão abertas. Mas apenas para os melhores.