Um grande exemplo, seja dentro do laboratório ou fora dele. Esta descrição do falecido Acadêmico Haity Moussatché, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) que tornou-se referência mundial em Farmacologia e ajudou a formar gerações de estudantes no tema, tanto no Brasil como na Venezuela, foi feita por discípulos, colaboradores e familiares que participaram no dia 17 de setembro de evento comemorativo do centenário de nascimento do farmacologista.
A primeira homenagem foi a inauguração de uma foto de Haity no saguão da Biblioteca de Manguinhos, localizada no Pavilhão que leva seu nome, com a participação do presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, do presidente do CNPq, o Acadêmico Carlos Aragão, e de diversos outros pesquisadores e Acadêmicos, como Jayme Tiomno e Sérgio Henrique Ferreira, além da família do cientista. “Está é uma homenagem singela, um gesto simbólico pela importância de Haity Moussatché, para lembrar a trajetória impar deste grande cientista. Esta cerimônia informal tem o estilo da maneira de ser de Haity. E esta biblioteca também, ela tem como característica ser um lugar de encontros e debates”, destacou Gadelha.
O físico Carlos Aragão revelou que, quando novo, tinha uma série de heróis científicos. “Meu pai era matemático e me influenciou muito. Nesta área, admirava o Acadêmico Maurício Matos Peixoto. Mas eu também tinha meus bioheróis”, disse ele, destacando os cientistas Haity e Carlos Chagas Filho. “Moussatché não foi importante apenas para a Biologia, mas para toda a ciência brasileira. O CNPq não poderia deixar de homenageá-lo, pelo exemplo e inspiração que ele passou a todos nós”, declarou.
A diretora do IOC, Tania Araújo-Jorge, destacou a justa homenagem. “Em tempos duros perdemos Haity para a Venzuela, mas conseguimos reavê-lo e eu acompanhei o seu regresso. Haity unia afeição e trabalho e esta homenagem é muito oportuna”, disse.
A construção de um país
Lotada por discípulos, ex-colaboradores, admiradores e familiares, a sessão especial do Centro de Estudos foi marcado por depoimentos emocionados. A mesa de abertura foi formada por Paulo Gadelha, Tania Araújo-Jorge, Carlos Aragão, Edgar González Marin, cônsul da Venezuela no Brasil, Sérgio Henrique Ferreira, pesquisador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Jerson Lima, diretor científica da Faperj e da Academia Brasileira de Ciências, além dos pesquisadores do IOC Renato Cordeiro e Jonas Perales, discípulos e ex-colaboradores de Haity Moussatché.
Gadelha lembrou o período sombrio do episódio conhecido como Massacre de Manguinhos e a volta de Haity. “Foram cassados alguns dos mais destacados cientistas da Fundação, levando ao desmantelamento da formação de cientistas e da pesquisa.”
Ele contou que em 1987, data da volta de Haity para o Brasil, fez uma entrevista com o pesquisador. “No primeiro contato, fiquei intimidado, por toda a trajetória e importância dele, mas logo nas primeiras palavras, com a doçura e trato maravilhoso de Haity, as minhas inseguranças se esvaneceram”, relembra.
O presidente da Fundação terminou frisando que “honrar a memória deste grande cientista é passar adiante os seus valores e conhecimentos”.
Aragão, que mais cedo já havia declarado ter Haity como um de seus bioheróis, fez a palestra magna do evento, mostrando um panorama das ações do CNPq. “Pulamos de 42 mil bolsas concedidas em 2000 para cerca de 80 mil bolsas em 2010. Hoje formamos cerca de 11 mil doutores e 33 mil mestres por ano. Claro que há ainda muito a ser feito, mas temos o que comemorar”, comentou.
Segundo ele, os principais desafios do CNPq são apoiar ainda mais a formação de recursos humanos, combater os desequilíbrios regionais na área de C&T no país e fomentar a pesquisa em temas como alimentos, energia, saúde, medicamentos, meio ambiente, recursos hídricos, defesa nacional, segurança pública e desenvolvimento tecnológico.
Citando o Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional, que cobria o prazo 2007-2010, Aragão destacou o recente planejamento na área. “O PAC contou com R$ 41 bilhões em quatro anos e foi dividido em 21 linhas de ação e 87 programas. Muitas linhas superaram suas metas. Tivemos um bom resultado”, avaliou.
Ao fim de sua apresentação, o presidente do CNPq enalteceu a importância de Haity e outros cientistas que lutaram pela criação do órgão, além da Capes e da SBPC. “O quadro favorável que temos hoje na área é parte da história de grandes cientistas, de visionários como Moussatché, que faziam e lutavam pela ciência numa época muito mais difícil. Eles fazem parte da construção desse país”, finalizou.
Emoção no Centro de Estudos
Numa segunda parte do evento, foi apresentada uma entrevista gravada com o próprio Haity. Ao contar um pouco de sua história, o pesquisador se declara orgulhoso de ser brasileiro e termina dizendo que “o cientista tem uma função social fundamental”.
O vídeo foi o começo de diversos depoimentos emocionados sobre a vida e obra de Haity. O cônsul da Venezuela no Brasil, Edgard Marin, destacou o grande aporte científico deixado por Haity em seu país, tanto na área de formação de recursos humanos como para a política de fomento à ciência e tecnologia.
O Acadêmico Renato Cordeiro, um de seus discípulos e atual pesquisador do IOC, citou exemplos da pesquisa de Moussatché em temas como a reação anafilática em animais de laboratório, propriedades farmacológicas de frações de venenos de serpentes e reatividade de músculos lisos e estriados. Além de sua obra, Renato relembrou também a vida do pesquisador. “Ele acreditava no talento dos jovens, era um militante na formação de recursos humanos”, disse.
Mostrando fotos históricas, Renato relembrou a trajetória, a amizade e a colaboração de Haity com pesquisadores como Mauricio Rocha e Silva, Tito Cavalcanti, Walter Oswaldo Cruz, Fernando Ubatuba e os irmãos Miguel e Álvaro Osório de Almeida, entre outros.
Outro discípulo, o venezuelano Jonas Perales, hoje pesquisador do IOC, caracterizou o Massacre de Manguinhos como “um ato de extrema violência contra o Brasil e uma sorte muito grande para a Venezuela”. Ele mostrou as principais contribuições de Haity no período de 1971 a 1987, quando foi pesquisador da Universidade Centro-Ocidental Lisandro Alvarado. “Além da pesquisa, ele lutou para fundar na universidade o Consejo Asesor de Investigación y Servicios”, relembrou.
Como chefe deste conselho, Haity investiu na compra de periódicos, na contratação de professores estrangeiros e em bolsas de pós-graduação para estudantes venezuelanos no exterior, citou Perales.
Emocionando a plateia, o pesquisador destacou a personalidade de Haity. “Ele era um homem alegre e que gostava de viver, não transferia só conhecimento, mas acima de tudo alegria”, disse.
Representando a SBPC, o presidente de honra da entidade, o Acadêmico Sérgio Henrique Ferreira, lembrou os tempos em que trabalhou no INCQS, da Fiocruz. “Tivemos muitas conversas, mas nada de ciência. Como fazíamos coisas muito parecidas, eu odiava conversar com Haity sobre trabalho. Ele sabia bem mais do que eu”, disse, arrancando risos.
O representante da Faperj e da Academia Brasileira de Ciências, Jerson Lima, definiu o ano de 1910 como o ano mirabilis da Biologia, numa alusão ao ano mirabilis da Física, 1905, quando Einstein escreveu quatro artigos fundamentais para a Física Moderna. “Em 1910, nasceram Haity Moussatché, Carlos Chagas Filho e Maurício da Rocha e Silva”, disse o diretor científico da Faperj.
A diretora do IOC ressaltou que a carreira de Haity foi emblemática para o IOC. “Ele veio fazer iniciação científica quando não existia iniciação científica, veio procurar estágio com Carlos Chagas e depois voltou por concurso e ficou 30 anos, até ser cassado. Depois, retornou em 87. Foi uma vida dedicada à pesquisa e ao IOC, com um legado de dedicação e resistência.”
O Acadêmico Nelson Vaz contou um pouco de seu aprendizado com Haity. “Ele nunca me mandou fazer nada, mas me deu ferramentas físicas e intelectuais para eu desenvolver o meu trabalho. Fazer ciência depende de entusiasmo e fascinação e eu encontrei este clima no laboratório dele”, disse.
O Acadêmico Michel Rabinovich lembrou que em 1948 vinha de São Paulo para ler as revistas científicas na biblioteca da Fiocruz. “Uma vez, ele me viu, perguntou o que eu estava fazendo e me levou para conhecer seu laboratório. Ele era um útero de cientistas. Mesmo sendo já um pesquisador formado, dava toda atenção aos jovens”, recordou.
Impossibilitados de comparecer, os Acadêmicos Elisaldo Carlini, da Unifesp, Jorge Guimarães, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atual presidente da Capes, e Gilberto Domont, da UFRJ, enviaram mensagens. O primeiro destacou que “Haity teve uma influência muito forte na vida científica brasileira e que era uma figura austera e imponente, mas muito carinhosa. Ele foi um exemplo de bravura e dedicação, mesmo com tantas injustiças.”
O presidente da Capes resumiu a importância de Haity. “Ele foi, é e sempre será uma referência para mim e para muitos outros cientistas”, escreveu.
Lida de forma emocionada por Patrícia Machado Rodrigues e Silva Martins, discípula de Haity, a carta de Domont dizia que o pesquisador “dedicava carinho aos jovens e amor aos mais velhos” e que “nada levará a herança deixada por Moussatché”.
Exemplo como marido, pai, avô e bisavô
A sessão especial do Centro de Estudos reuniu um grande número de familiares de Moussatché, como seus dois filhos do primeiro casamento, Anna Helena e Mendel, e sua segunda esposa, Cadem Moussatché. Anna e a bisneta de Haity, Isadora, representaram a família nos depoimentos.
Emocionada, a filha agradeceu a homenagem a Haity. “Recuperar a história do meu pai para os netos e bisnetos dele me deixa radiante e é um grande presente. Ele era um amigo incondicional e um modelo intelectual e de humildade”, destacou.
Isadora contou suas lembranças com o bisavô e se disse honrada pela herança de conhecimento e humanidade deixada à família por Haity. “Sei que ele está por perto sempre que abro um livro e aprendo mais um pouco”, disse.
Paulo Gadelha, ao entregar uma placa comemorativa a Cadem Moussatché, encerrou o evento: “O que foi falado aqui serve de exemplo e energia para o nosso futuro”.