Os protagonistas do maior escândalo de doping do atletismo brasileiro tinham boas razões para acreditar que poderiam escapar ilesos. Enquanto as autoridades esportivas do país se mostram empenhadas no lobby da candidatura Rio-2016, em seguidas viagens ao exterior custeadas com recursos federais, o único laboratório credenciado pela Agência Mundial Antidoping (WADA) no Brasil sofre com o descaso do poder público. Por causa de uma câmara de detecção quebrada no único equipamento disponível para análise de EPO (eritropoietina) no Laboratório de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico (Ladetec), na Ilha do Fundão, nenhum teste pôde ser realizado entre outubro de 2008 e julho deste ano. Significa dizer que, se alguém fez uso do hormônio que pode levar à morte nesse período e as amostras não foram enviadas para o exterior, com certeza deixou de ser flagrado.
O caso envolvendo atletas e técnicos do Rede Atletismo sinaliza que, na luta contra a infâmia do doping, o Brasil caminha a passos lentos.Segundo o coordenador do Ladetec, o Acadêmico Francisco Radler, desde os Jogos Pan-Americanos o laboratório não recebe um centavo sequer para aquisição de novos aparelhos ou manutenção dos existentes. Não fosse a compra, mês passado e com recursos próprios, da peça de US$5 mil, importada do Japão, que possibilitou a volta aos testes de EPO, o Ladetec teria perdido até o prazo para renovar o credenciamento anual junto à WADA. “Quem tem um (aparelho), na verdade tem nenhum. Precisamos de, pelo menos, duas máquinas para análises de EPO. Do contrário, ficamos sujeitos a esse tipo de problema”, diz Radler.
Ministério dos Esportes se nega a liberar recursos
Na frenética indústria do doping, as três gerações da EPO já perdem espaço para novas substâncias de detecção mais complexa, como o hormônio do crescimento (GH, sigla em inglês para Growth Hormone) e a insulina. O que leva a um dado alarmante: a menos de dois meses da escolha da sede dos Jogos de 2016 (em 2 de outubro), o Brasil não possui a tecnologia para testar amostras dessas duas substâncias.
Excluído dos repasses da Lei Piva, que ano passado destinaram R$93,4 milhões ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e a suas confederações, o Ladetec esbarra na indiferença das autoridades federais. Repousa desde outubro passado na mesa do ministro dos Esportes, Orlando Silva, em Brasília, o processo número 58005.009305/2008-82, para “implementação de metodologia de análise de hormônio do crescimento humano recombinante (rhCG)”, num investimento de R$976.359,35. Alegando já ter investido R$7 milhões para modernizar o laboratório antes do Pan, o ministério, através de sua assessoria de imprensa, informou que “já respondeu da impossibilidade de atender ao pedido de novos investimentos em reforma e construção no laboratório”.
“Outros laboratórios, como o de Montreal, no Canadá, recebem recursos do poder público. O Brasil é um dos signatários do Código da WADA e da Convenção da Unesco, que dizem que, se tem um laboratório credenciado, o país precisa dar suporte aos seus programas de teste “, explica Radler, dando um resumo sobre a evolução do perfil de dopagem. “Antes era o HCG (Hormônio Coriônico Gonadotrófico), depois veio a EPO, agora a luta é contra o GH. E já se sabe que a insulina deve crescer no futuro. A eritropoietina deixa o sangue viscoso e pode bloquear artérias, levando à morte. Já a insulina mexe com a regulação dos açúcares do corpo e tem efeito anabolizante.”
As confederações não são obrigadas a pedir análise de EPO e o elevado preço por amostra é mais um fator que pode estimular a sensação de impunidade. Um teste padrão, mapeando 500 substâncias proibidas na urina, sai por US$250. Só o de eritropoietina custa entre US$250 e US$350. “E esse é o preço de custo, apenas para girar o laboratório. O faturamento, nas mais diversas atividades, é de R$3 milhões anuais. Mas, normalmente, operamos com déficit. Só de testes de esporte, não sobreviveríamos”, admite Radler, lembrando que o laboratório realiza pesquisas para a Petrobras e o Ministério da Agricultura.
Na área esportiva de combate ao doping, a CBF é, disparada, a maior cliente do Ladetec, que funciona dentro do Departamento de Química da UFRJ. Dos 4.672 testes realizados ano passado, 3.824 foram de jogadores das séries A, B e C do futebol brasileiro. Embora tenha mandado para o Canadá as amostras que deflagraram o esquema de doping, a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) tem requisitado com assiduidade os serviços do laboratório, com 454 testes. O futsal teve 119 exames encomendados; o vôlei, 106; a natação, apenas oito; e o judô, um único. Ao contrário das três edições anteriores das Olimpíadas, as 600 amostras da delegação que foi a Pequim não foram mandadas pelo COB ao Ladetec.