Os participantes do 49º Webinário da ABC.

Continuando as discussões do webinário anterior, o 49º Webinário da ABC voltou a abordar as consequências a longo prazo da Covid-19. Com o tema “Planejando o sistema de saúde para prioridades pós-covid”, o evento foi realizado na terça feira, 23 de novembro, e reuniu importantes nomes da medicina brasileira.

Estudos apontam que 10 a 80% das pessoas que tiveram Covid-19 sintomática desenvolveram algum tipo de complicação posterior. As sequelas variam desde perda de olfato e paladar até depressão e AVC. O sistema de saúde brasileiro, que já teve de se adaptar à pandemia, terá que continuar se moldando para lidar com esses novos problemas.

Participaram do webinário a diretora-presidente do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Nadine Clausell, o ex-secretário de Saúde de Curitiba e ex-secretário Nacional de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Adriano Massuda e a diretora do Programa Global de Vigilância da Sobrevida em Câncer (Concord), Gulnar Mendonça. Inicialmente, também estava prevista a participação do ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que não pôde comparecer por questões de saúde.

A moderação do evento ficou por conta do presidente da ABC, Luiz Davidovich, e do membro titular Arnaldo Colombo.

Pandemia: impactos, lições e desafios

Nadine Clausell fez um balanço da atuação do Hospital das Clínicas de Porto Alegre durante a pandemia. Toda a infraestrutura hospitalar teve de ser adaptada para receber o fluxo de pacientes durante os momentos mais críticos. Em meio aos dados, um número traz esperança: o total de pacientes internados em CTI, que chegou a 180 no pico da doença, hoje é menor que 10.

O redirecionamento de esforços para a pandemia, infelizmente, teve custos em outras áreas. Clausell contou que cirurgias nunca pararam, mas que a fila para transplantes desacelerou. O tratamento de doenças cardiovasculares também foi muito afetado e reverteu uma tendência histórica de melhora nos indicadores brasileiros. “Toda essa demanda acumulada gerou perdas irreparáveis, muitas pessoas faleceram em casa sem conseguir internação. Outra consequência foi uma explosão de internações após as ondas da pandemia”, explicou a diretora do HCPA.

A palestrante trouxe o exemplo da insuficiência cardíaca, condição que é complicador para a Covid-19. “A insuficiência cardíaca gera muita reinternação, precisa de acompanhamento, o que diminuiu muito na pandemia. O resultado foi um aumento na mortalidade”. Clausell acredita que uma das formas de mitigar esse problema foi o teleatendimento. “Criamos novos manejos para o tratamento, avaliações remotas por imagem, com resultados positivos”, avaliou.

Para ela, essas novas práticas de atendimento vieram para ficar. Os ambulatórios híbridos criados na pandemia devem permanecer e o HCPA tem meta de manter pelo menos 20% das consultas no formato virtual. O aplicativo Meu Clínicas, criado para o monitoramento de pacientes durante a pandemia, foi outro acerto que deve se consolidar. “O enfrentamento da pandemia foi um desafio, mas trouxe muita inovação”, finalizou Clausell.

Resiliência do Sistema Único de Saúde

Adriano Massuda começou explicando o conceito de resiliência dos sistemas de saúde e as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) nesse sentido. O caminho passa pelo fortalecimento da saúde básica, preparação e identificação de crises e gestão de risco. Passa também pelo investimento perene em educação e pesquisa e pelo combate às desigualdades inerentes do sistema.

Massuda defendeu o formato do Sistema Único de Saúde (SUS), que foi crucial para o enfrentamento a pandemia no país. “O Brasil é um dos únicos países que descentralizaram a saúde para o nível municipal. O SUS é um importante passo rumo a uma saúde universal”, avaliou.

Entretanto, essa abordagem regionalizada gera lacunas quando falta coordenação central. Problemas como governanças locais frágeis, financiamento insuficiente e má alocação de recursos contribuíram para um agravamento das desigualdades regionais. O problema da demanda reprimida foi ainda maior nas regiões menos desenvolvidas do país. “A falta de um plano nacional pulverizou os esforços. Sem uma orientação geral, cada município criava a sua resposta. Isso gerou um ciclo reativo, com erros que se repetiram”, explicou Massuda.

Para o palestrante, o problema mais urgente da saúde brasileira é a austeridade fiscal. Foram apresentados dados que indicam uma relação entre o congelamento dos gastos públicos em 2017 e a piora de diversos marcadores, como a mortalidade infantil. “O teto de gastos ameaça avanços históricos e contribui para o aprofundamento da inequidade”.

Os desafios para prevenção e assistência ao câncer

No tratamento do câncer, a velocidade da resposta é fundamental para a sobrevivência. Gulnar Mendonça, diretora do Concord, programa global de monitoramento da sobrevida de pessoas com câncer, avalia que a pandemia piorou muito o acompanhamento dos casos no Brasil, com queda brusca nos diagnósticos.

Os marcadores brasileiros para a doença ainda refletem as desigualdades regionais. No mundo inteiro, a melhora nos números da doença está sempre associada a prevenção. “O câncer de colo de útero, muito associado à pobreza por causa da capacidade de prevenção com acompanhamento, decresce em todo o Brasil – menos no interior da região Norte”, exemplificou a palestrante.

O Concord avalia que 42% das mortes por câncer no Brasil poderiam ser prevenidas. “A sobrevida no câncer é fortemente influenciada por fatores socioeconômicos. No caso brasileiro, também existe um recorte racial muito explícito”, explicou Gulnar Mendonça.

Debate

Terminadas as apresentações, o espaço foi aberto para perguntas e discussões entre o público e os palestrantes. Os temas abordados giraram em torno da gestão de crises e do fortalecimento do SUS.

Gestão de crises

Nadine Clausell relatou que o HCPA já possui um grupo de planejamento para catástrofes. Criado em 2013 por conta da tragédia na boate Kiss, o grupo, formado por médicos do hospital, planeja a alocação de áreas e recursos do HCPA de modo que estejam preparados em caso de nova crise.

Para Clausell, essa resposta coordenada permitiu, entre outras coisas, que a taxa de contaminação do HCPA ficasse abaixo da média nacional. Segundo ela, “a estrutura do sistema de saúde precisa ser, ao mesmo tempo, forte e maleável, capaz de se adaptar a diferentes cenários”.

Fortalecimento do SUS

Os três palestrantes foram unânimes na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) como o melhor esforço pela universalização da saúde no Brasil. Adriano Massuda considera que a soberania nacional na área está sendo dilapidada, com o país cada vez mais dependente da importação de insumos para medicamentos. “É preciso investir também em transferência de tecnologia e para isso é preciso ter financiamento de longo prazo”, ressaltou.

Massuda acredita também ser necessário restaurar a autoridade do Ministério da Saúde. A coordenação central é necessária para integrar o sistema no pós-Covid, implementando inovações como o teleatendimento e fortalecendo a saúde básica. “O Brasil enfrentou a pandemia com a pior coordenação possível do Ministério da Saúde, isso não pode se repetir”.

Gulnar Mendonça afirmou que o país precisa ir atrás dos diagnósticos que deixaram de ser feitos durante a pandemia e acredita que o SUS é a ferramenta para isso. “O SUS é a melhor forma de atender a população. O Brasil precisa do SUS”.

 

Assista ao webinário na íntegra pelo canal da ABC no YouTube.