Os participantes do webinário promovido pela Aciesp: Vanderlan Bolzani, Marcia Barbosa, Débora Foguel, Adriano D. Andricopulo, Paulo Artaxo e Soraya Smaili.

No dia 29/7, a Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) promoveu mais uma edição do Aciesp Webinars, série de eventos online que reúne grandes cientistas para debater assuntos das áreas de ciência e tecnologia. Essa edição, intitulada “Mulheres e o Fascinante Universo da Ciência”, contou com a participação de Marcia Barbosa (UFRGS, diretora da ABC), Débora Foguel (UFRJ, membro titular da ABC), Soraya Smaili (Unifesp). A mediação ficou por conta da presidente da Aciesp Vanderlan Bolzani (Unesp, membro titular da ABC), do vice-presidente Paulo Artaxo (USP, membro titular da ABC) e Adriano D. Andricopulo (USP, membro afiliado da ABC no período 2008-2013).

Bolzani apresentou as palestrantes e os outros mediadores, comentando a importância de valorizar a presença feminina na ciência e enaltecendo as participantes. A Acadêmica também lamentou as mais de 500 mil vidas perdidas em decorrência da COVID-19.

Novas tecnologias para obtenção de água potável

A Acadêmica Marcia Barbosa fez uma apresentação sobre água no planeta Terra. Apesar de 70% da superfície do planeta ser de água, apenas 0.3% dela está disponível para uso dos seres humanos. Os outros 2.2% de água doce está congelada. Atualmente, a maior parte da água consumida é para a produção de alimentos. “Precisa haver um consumo inteligente”, alertou a física.

Seu grupo de pesquisa parte do princípio de que a água possui mais de 70 comportamentos estranhos. O objetivo é entender as anomalias para tentar utilizá-las na produção de água potável.

Uma dessas anomalias é a capacidade de a água em estado sólido (gelo) flutuar em um copo com água em estado líquido, o que não acontece com outros materiais sólidos, como a parafina, que afundam. Essa característica torna possível o congelamento de superfícies e a manutenção da água líquida nas camadas mais profundas.  “É por isso que, ao buscar indícios de vida fora da Terra, a primeira coisa que procuram é por gelo”, explicou a Acadêmica.

Essas propriedades tão específicas da água só são possíveis por conta do formato da molécula de H2O, em “V”, caracterizada pela ligação de hidrogênio com as moléculas vizinhas.  Esse formato permite que a molécula faça coisas fascinantes, tais como: ao comprimir água em temperatura baixa, as moléculas se comprimem menos e se movem mais, ligando-se umas às outras.

Fazendo uso dessas ferramentas, o grupo de pesquisa de Barbosa começou a pensar em novas estratégias para a dessalinização. Um dos testes incluía pegar uma folha de um único material, como o grafeno, e fazer furos manométricos. Ela explica: “É um método eficiente. Se você começa a colocar furos um do lado do outro com grandes pressões para água passar não provoca efeito de turbulência e sim um efeito totalmente aditivo. Nessa nanoescala, as moléculas de água não se importam com os buracos de água laterais. O fluxo é igual.”

E se no local não existir água salgada? Como obter água potável? Segundo a física, a saída é recorrer aos animais e plantas hidrofílicos – que possuem a capacidade de transformar vapor em água. É possível fazer um mecanismo similar ao da dessalinização, fazendo com que o vapor de água que se aproxime de entradas hidrofílicas vire água. Para isso, Barbosa ressaltou o uso de nanocones com superfícies hidrofílicas e o uso da nanoescala.

Por fim, Marcia Barbosa apresentou um panorama sobre igualdade de gênero na ciência e na física no mundo. Em uma visão global,  23% dos estudantes de física em nível de graduação são mulheres, sendo que no doutorado já são apenas 18%  e 13% na área profissional. No Brasil, 57% dos graduandos em física são mulheres – número que cai de acordo com a evolução dos estudos. “Temos muito a avançar no poder e temos um imenso caminho a avançar na área de física”, destacou a Acadêmica.

A cientista apresentou também dados sobre a ABC, que no momento conta com 16% de membros mulheres; 4% dessas mulheres estão na área da física. A área da biologia conta com 25% de Acadêmicas do gênero feminino. A diretora destacou também os esforços que estão sendo feito dentro da ABC para reverter essa situação e promover mais igualdade de gênero. O fruto desse esforço será a publicação futura de um código de conduta para Acadêmicos(as).

Outros dados relevantes apontados por Barbosa mostram que 36% de bolsas de pesquisa são destinadas a mulheres, número que se mantém estático desde 2015. A Acadêmica chama atenção para o fato de que onde não há nenhuma política, raramente há alguma mudança.

Barbosa destacou ainda que em locais onde a água é mais escassa a coleta de água é toda feita por mulheres, ainda que não sejam elas quem desenha as políticas de divisão dos poços. “Diversidade faz com que as políticas sejam melhores e mais eficientes”, destaca a Acadêmica.

Marcia Barbosa encerrou sua apresentação com uma frase que mostra como ela tem se mantido firme, apesar das grandes perdas causadas pea COVID-19: “Luto, para mim, é verbo.” E  continuamos juntas na luta por uma ciência mais justa, igualitária e acessível para todos.

Doenças amiloidogênicas: o lado sombrio do enovelamento proteico

A pesquisa da Acadêmica Débora Foguel é mais um exemplo de que os seres humanos devem respeitar a natureza. A professora da UFRJ contou um pouco mais sobre o seu projeto de pesquisa, desenvolvido no Laboratório de Agregação de Proteínas e Amiloidoses (LAPA). Seu estudo foca nas doenças associadas ao mau enovelamento de uma proteína originada nas nossas células – mais precisamente, nos ribossomos. Quando essas proteínas não formam a estrutura nativa da qual a célula precisa, tornam-se estruturas malformadas que dão origem a agregados de diversas formas e tamanhos, dentre eles a fibra amiloide. “Os amiloides são fibrilas proteicas complexas que podem ficar depositadas em vários tecidos, prejudicando a função de órgãos como rins, coração e cérebro. As fibras amiloides estão presentes em pacientes portadores de doenças degenerativas como Huntington, Alzheimer e Parkinson. Esse conjunto de doenças é caracterizado pela formação de depósitos proteicos em diferentes regiões do cérebro”, explicou a pesquisadora. No entanto, as proteínas causadoras das enfermidades são diferentes: no caso da Alzheimer, é um peptídeo chamado betamiloide; no caso do mal de Parkinson, a alfa-nucleina produz a queda de dopamina, a morte dos nossos neurônios e os consequentes tremores. Quando as fibras malformadas ficam reunidas em um tecido específico, geram amiloidoses sistêmicas, como a catarata. Nenhuma destas doenças é transmissível, exceto pelas causadas pelo príon, agente infeccioso que quebrou vários paradigmas da saúde.

Segundo a Acadêmica, as Encefalopatias Espongiformes Transmissíveis (EET) são os exemplos de que devemos respeitar a natureza, para evitar outras zoonoses e pandemias no futuro. “As doenças que tem os príons como agentes infecciosos são as únicas amiloidoses transmissíveis, podendo passar de um animal ou ser humano acometido para outro animal ou homem saudável”, apontou Foguel. O príon é o agente da Scrapie, doença da vaca louca e da Creutzfeld-Jakob – uma EET que atinge os humanos. A Acadêmica explicou que a principal característica dessas doenças é a transformação do cérebro em uma superfície similar a uma esponja, repleta de buracos nos locais onde antes ficavam os neurônios. Esses buracos são depósitos da proteína do príon.

Foguel relatou que agentes infecciosos como vírus, bactérias e protozoários são inativados quando submetidos à luz ultravioleta. O vírus inativado, quando injetado no cérebro de um animal doente, faz com que ele apresente melhoras. “Com esse teste, foi provado que o príon é um patógeno desprovido de ácido nucleico (RNA/DNA) – o que torna inviável sua extinção através dos raios UV. Até agora, a única forma de tratar de EETs é com agentes que alteram a estrutura das proteínas e conseguem diminuir a infecciosidade do agente”, avaliou a Acadêmica.

Uma dúvida que permeou as pesquisas sobre príon por muito tempo foi sobre como esse agente era transmitido, já que não possui ácido nucleico. O cientista Stanley Prusiner, vencedor do Nobel, identificou essa proteína na membrana das células, inclusive de neurônios. “Todos os seres possuem essa proteína saudável;  quando entram em contato com a forma alterada, ocorre um fenômeno de conversão natural no qual as células saudáveis se transformam na cópia das células doentes e geram estruturas agregadas” mostrou a cientista.

Débora Foguel contou que a doença da vaca louca teve início em Sussex, Reino Unido, na década de 80. A doença surgiu após a introdução de uma dieta enriquecida com extrato do cérebro de ovelhas para o gado, que transmitiu a Scrapie, doença de origem ovina. O resultado foi o extermínio do gado e uma alta taxa de mortalidade de seres humanos que consumiram a carne do animal infectado. “Quando se transforma um herbívoro num animal carnívoro, se cria um problema de saúde pública. Sim, precisamos nos preocupar com o nosso planeta”, destacou a Acadêmica.

O primeiro amor

Soraya Smaili fez uma apresentação diferente das demais. A reitora da Unifesp aproveitou seus minutos de fala para contar a origem da sua paixão pela ciência em sua infância. Ela lembra, então, de seu primeiro amor: o microscópio. Ele, junto da série de livros “Os Cientistas”, despertaram sua paixão pela ciência. Além disso, a pesquisadora falou sobre seu gosto por MPB, festivais de música e leitura. “Acredito que a cultura e a arte expandem nossas percepções e nos levam à ciência”, disse.

Smaili contou sobre a sua trajetória na Faculdade de Farmacologia da USP Ribeirão Preto, sempre na companhia de grandes mulheres cientistas, e categorizou seus pós-doutorados em diversas universidades dos Estados Unidos como “divisores de águas”. “Houve até um convite para eu permanecer no NIH [Institutos Nacionais da Saúde, conglomerado de centros de pesquisa que formam a agência governamental de pesquisa biomédica do departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos], mas eu queria voltar para o Brasil e ter meu próprio laboratório.”

Em 2000, a farmacêutica inaugurou seu laboratório em microscopia de fluorescência em tempo real, pioneiro na área. Logo deu início aos estudos sobre o uso de cálcio e mitocôndrias em doenças degenerativas, envelhecimento e doenças degenerativas em animais idosos e o processo de autofagia (mecanismo de limpeza das células). Com seus conhecimentos, deu sequência nos estudos sobre remoção de proteínas malformadas em doenças degenerativas como Huntington, Parkinson e Alzheimer. Ela destaca o grande número de mulheres e meninas que compõem seu laboratório, que preza pela igualdade de gênero.

Em 2013, teve início uma fase desafiadora na vida de Smaili: a posse como reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para o período 2013-17 e, em seguida, a reeleição. A reitora está no último ano de mandato, com muito orgulho de seus feitos: atualmente, a Unifesp ocupa um dos primeiros lugares em termos de número de mulheres na graduação e na ciência, dado que 41% dos bolsistas de produtividade nível 1 da universidade são mulheres;  sob comando de Smaili, a Unifesp se tornou a primeira universidade brasileira a cumprir o quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, que destaca a igualdade de gênero.

Sobre os planos para o fim do mandato, Soraya já sabe exatamente o que irá fazer: “Volto ao meu eterno amor”, contou a pesquisadora, que nunca se afastou de seu laboratório. Além disso, ela afirmou estar envolvida com os compromissos do eixo de desenvolvimento sustentável e com a iniciativa SOU_Ciência. Saiba mais sobre o projeto aqui.

Debate

Vanderlan Bolzani convocou Paulo Artaxo e Adriano Andricopulo para o debate com as expositoras. Ela elogiou a organização do evento, mais uma iniciativa de compromisso para atingir o 5º ODS até 2030, o da igualdade de gênero. “É um momento assustador da vida no planeta, em especial no Brasil. Diariamente, são vistas cenas assustadoras de violência e discriminação”, disse a presidente da Aciesp. Bolzani enalteceu as mulheres presentes e defendeu a importância dessas grandes pesquisadoras para inspirarem meninas a seguirem a carreira científica. Além disso, essas mulheres devem estar na linha de frente na luta pela criação de políticas públicas de incentivo para que outras mulheres se tornem cientistas.

Bolzani afirmou que em muitos lugares do Nordeste a situação da seca, ao contrário do que é dito, é científica e não política. Ela questionou Marcia Barbosa sobre como fazer com que o conhecimento da molécula da água, tão importante, pudesse servir de base para resolver as questões da região  nordestina do país. Barbosa relatou que metodologias internacionais de dessalinização são caras. Ela destacou que não é ideal trocar as plantas de dessalinização de grandes áreas por nanotubos, mas sim buscar metodologias que não pretendam ser usadas em grande escala para solucionar o problema de regiões como o Nordeste.  “O ideal é criar ferramentas pequenas, que auxiliem quem possui, por exemplo, poços com água salgada. Quem tem poço com água salgada não precisa de planta de dessalinização como as que existem na Califórnia e na Arábia Saudita, mas sim de estruturas pequenas. É hora de pensarmos em esquemas de pequena escala. Mas isso não é para depois de amanhã, é um processo longo, que demanda a montagem do protótipo, estudos, entre outros fatores.” Essa situação também demanda avaliação de possíveis alterações no regime de chuvas e testes em locais pequenos, segundo a pesquisadora.

Paulo Artaxo perguntou para Débora Foguel se é apenas uma impressão ou se a incidência de doenças degenerativas está aumentando nos últimos anos. Um dos efeitos da COVID-19 não esperados é perda da capacidade cognitiva; recentemente, um estudo feito no Reino Unido com 1800 voluntários mostrou que após contrair a doença, as pessoas tiveram drástica queda de QI. “Como isso pode acontecer?”, questionou o vice-presidente da Aciesp.

Foguel destacou que a incidência da doença é de curso muito lento, com um processo de agregação que pode demorar décadas. A Acadêmica explicou que “quando a pessoa começa a esquecer onde estão objetos pessoais, por exemplo, é porque o cérebro já está detonado. O processo começou muito antes dos sintomas.” Apesar de muitas tentativas de associar essas morbidades com alguma novidade da nossa vida moderna – como uso de inseticidas, pesticidas e até mesmo panelas de alumínio –, a grande relação das doenças amiloidogênicas é com o aumento da expectativa de vida; ou seja, quanto mais tempo os seres humanos viverem, maior será a janela de tempo para manifestação dessas doenças.

“São doenças de curso longo e a gente ainda não tem biomarcadores para saber se o processo já começou. Mesmo que haja um procedimento para ser administrado em alguém que tenha Parkinson, quando identificmos a doença o cérebro já está muito devastado”, relatou Foguel. 

Andricopulo estava monitorando as redes sociais da Aciesp e enviou perguntas dos espectadores para as palestrantes. Ele elogiou as apresentadoras e uas palestras. A primeira pergunta lida foi: “Como o aquecimento global pode afetar no fornecimento de água potável?”

Marcia Barbosa respondeu, explicaando que as mudanças climáticas alteram os locais têm seca e os locais com maior incidência de chuvas. Uma vez que o problema não é evitável, é necessário buscar novas formas de continuar mantendo a vida terrestre. Para contornar essa situação, a diretora da ABC ressaltou que uma alternativa é encontrar novas formas de produzir alimento, com iniciativas menores. “O uso de pequenos coletores nanométricos para fazer a captação de vapor d’água em algumas regiões onde há vapor em excesso, através de pequenos coletores hidrofílicos que fazem captação de água, poderia auxiliar.

Outra pergunta, agora direcionada à Débora Foguel, foi sobre quais aspectos comportamentais da vida moderna, incluindo hábitos alimentares e altos níveis de estresse, poderiam interferir no desenvolvimento de Alzheimer. A Acadêmica relatou que o Brasil é pioneiro nos estudos sobre a relação entre exercício físico e Alzheimer, principalmente sobre o hormônio irisina, que é liberado apenas durante exercícios físicos e entra em queda durante o desenvolvimento da doença. Além da prática constante de exercícios físicos, não fumar é importante.

Artaxo encerrou o debate dizendo que, quando Vanderlan Bolzani sugeriu a temática do webinário, ele pensou que não havia qualquer necessidade de debater o papel do homem ou da mulher no cenário científico pois eles seriam iguais. Na visão do Acadêmico, as equivalências hoje estão de “igual para igual” em muitos lugares: muitas coordenadoras científicas mulheres, o fato de que na eleição da SBPC havia dois homens e sete mulheres concorrendo… Para ele, é necessário “centrar fogo na luta” em alguns nichos, como a Academia Nacional de Engenharia, que teve apenas uma mulher eleita entre 14 novos membros. “O que interessa é a produção de ciência de qualidade”, defendeu Artaxo.

Bolzani rebateu afirmando que, se for para analisar a progressão desde o início da civilização, muita coisa mudou, mas ainda não é o suficiente.  “Quando se analisa a pirâmide de afunilamento para lideranças, vemos uma mudança muito sutil. Quantos presidentes da Organização Mundial de Saúde, da Fapesp, do CNPq, por exemplo, foram mulheres?”

A Acadêmica ressaltou ainda que essa disparidade é impossível ser mudada em um curto espaço de tempo. “Hoje essa questão vai além do papel das mulheres. É uma questão do papel dos homens também. Só teremos um mundo igualitário,aquele que sonhamos para os nossos netos e bisnetos, quando homens e mulheres derem as mãos e trabalharem juntos com o mesmo objetivo”, encerrou a cientista.

Assista ao webinar da Aciesp completo aqui.