Rosana Pinheiro-Machado, palestrante do evento

 

Em 28 de maio, ocorreu mais uma edição do Programa de Mentorias da ABC, organizada pelos membros afiliados, intitulada “Vaidades Acadêmicas”. O evento, voltado para membros e ex-membros afiliados da ABC, ocorre mensalmente, sempre na última sexta-feira,  e tem como objetivo contribuir para o progresso profissional dos Acadêmicos através do debate de diversos aspectos da vida científica com profissionais renomados.

A palestra foi ministrada por Rosana Pinheiro-Machado, doutora em antropologia social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela é a investigadora principal do projeto global “No longer poor, not middle class”, desenvolvido entre quatro instituições de ensino localizadas no Brasil, Canadá, Filipinas e México. Em seu último livro, “Amanhã Vai Ser Maior” (Editora Planeta, 2019), Pinheiro-Machado analisa a crise brasileira, a ascensão da extrema-direita e as possíveis rotas de fuga.

Pinheiro-Machado deu início a sua fala contando sua trajetória acadêmica, quando teve que lidar com colegas competitivos e professores agressivos desde o início da graduação – uma experiência ainda muito comum para grande parte dos universitários. A então graduanda de ciências sociais lembrou dos preconceitos que teve que enfrentar naquela época, com professores que se achavam “proprietários” dos autores – como o “dono de Foucault”, que ela menciona em seu popular artigo para a Carta Capital – e deslegitimavam suas citações pelo pouco tempo de vida acadêmica.

Ela destacou pesquisas apontando que, para estudantes de todo o mundo, o maior gatilho para suicídio ou depressão é advindo do momento da escrita. “Existem novos estilos de estudantes que muitas vezes já não conseguia mais lidar com o modelo institucional da academia”, afirmou. Visando melhorar a qualidade de vida dos estudantes, em 2020, Rosana lançou um curso de escrita acadêmica dividido em 13 módulos, que pode ser conferido aqui. 

Fetichização do ethos acadêmico e saúde mental

A pesquisadora sugeriu que os professores que integravam o público levassem esse debate sobre saúde mental para a sala de aula, visando o estabelecimento de um diálogo com os alunos. “Muitos vão ficar surpresos com a quantidade de jovens com depressão, querendo abandonar o curso ou tirar a própria vida”, disse. Conversar com os alunos sobre isso e dar apoio e orientação pode ser uma maneira interessante de aplacar esse sentimento.

Ela ressaltou que a universidade possui um modelo estrutural próprio que, para ser debatido, precisa incluir também a ameaça de desmonte e o capitalismo racial. “A opressão acadêmica é reflexo de opressões maiores.” Rosana completou afirmando que o sistema se modificou, mas o ethos acadêmico, não. “O ethos não mudou, mas os prazos diminuíram. Muitos profissionais estão trabalhando com depressão”, afirmou, destacando a grande pressão pela produtividade (teses, publicações, artigos) e o tempo para entrega, em contraste, cada vez menor.

O que ocorre dentro das salas de aula é a fetichização do ethos, fruto da resistência dos professores aos novos conflitos e necessidades dos alunos. Frases como “sempre foi assim”, “também sofri com isso” e “se não aguenta isso, é porque você é fraco” acabaram sendo normalizadas pelos alunos. Esse tipo de tratamento, somado à falta de perspectiva dos jovens diante do sucateamento de suas instituições de ensino, podem acarretar em graves problemas de saúde mental.

“A academia concentra privilégios desde sempre, por conta do modelo aristocrático, onde carreiras são construídas e destruídas após a defesa de uma tese. É uma opressão específica de deslocamento da sociedade e uma sensação de poder ilimitado de alguns professores”, explicou Rosana. 

Práticas abusivas levam pesquisadores a vivenciar o sucesso e o fracasso e despertarem novos complexos: obsessões por métricas e consultas intermináveis ao Lattes dos colegas figuram entre os novos vícios.

Rosana recordou de quando publicou o artigo na Carta Capital, há cinco anos, e recebeu 311 respostas de alunos retratando suas experiências dentro da academia. Após catalogar todas as respostas, ela observou que 146 delas retratavam experiências em grupos de pesquisa, mencionando práticas como humilhações recorrentes, favorecimento, formação de linhagem e estímulo a competição. O “orientador inimigo” foi também uma figura frequentemente citada: professores estimulam seus orientandos a competirem com os orientandos de seus rivais, gerando mal estar entre os colegas.  

Apesar da rivalidade e dos sentimentos ruins, o ambiente acadêmico é muito fechado. É como se todos os professores se odiassem, mas se protegessem – o que dificulta as denúncias de assédio sexual e moral, piadas racistas e comentários misóginos.

Ser um “idiota” na academia, a princípio, é um caminho que só proporciona vantagens: a longo prazo, ser cruel com os alunos e despertar o medo acaba produzindo respeito e admiração. Professores empáticos e generosos – grupo majoritariamente composto por mulheres – podem acabar sendo vistos como fracos.

A questão é: até que ponto vale a pena colocar a saúde mental dos alunos em jogo para favorecer o próprio ego? 

Desatando os emaranhados

Segundo Rosana, é fundamental que os professores saibam quais são as vivências acadêmicas que mais amedrontam seus alunos. Ela listou alguns: o sentimento de descaso por parte dos orientadores; a dor causada por colegas de classe que se acham melhores, mais inteligentes e mais produtivos e que incorporam essa lógica muito cedo; e o mito da genialidade. Para ela, esses mitos fazem parte de realidades distorcidas: “Gênios são raríssimos. É uma guerra subjetiva e silenciosa, pois alguns acreditam que essa genialidade, essa ‘iluminação’, é herdada, não adquirida.” E a antropóloga aponta que este é um problema com solução técnica: “O nível dos estudantes é em geral, muito parecido. É possível se equiparar treinando todos os dias, escrevendo e reescrevendo textos acadêmicos.” Essa disputa por “poder e coisas intangíveis” prejudica principalmente mulheres, pessoas negras e transgênero.

A pesquisadora lembra que, em momentos como a atual pandemia, é fundamental incentivar os alunos e provocar momentos catárticos e de identificação. “Não é só você que está se achando burro, não é só você que não está conseguindo escrever. O mundo todo está pedindo pela extensão de prazos. Todo mundo está se sentindo assim, não é só no Brasil”, contou. O sonho acadêmico está sendo cada vez mais prejudicado por fatores como a síndrome do impostor, síndrome do pânico, alunos que se sentem culpados por dormir, angústia, falta de apoio da família, entre outros. Atualmente, no mundo, a academia reúne cerca de 30% de alunos com depressão e 50% com saúde mental precária – fator influenciado por demarcadores sociais.

É fundamental que a timidez e a tristeza não sejam mais tratados como tabu ou sinônimo de burrice. Além de os orientadores oferecerem mais suporte aos alunos, é fundamental que fomentem iniciativas inclusivas e de troca, como o #MulheresTambémSabem, além de suporte pedagógico de professores – que devem saber seu papel dentro da academia e a melhor forma de exercê-lo.

Debate

A afiliada Patricia Garcez se questionou se a agressividade do meio acadêmico não está associada à sua composição, majoritariamente de homens – o que talvez acentue a diferença entre as academias brasileiras e as europeias, onde a equidade de gênero vem sendo promovida há mais tempo e de forma mais ampla. O comentário fez todo sentido para a palestrante. Apesar de não ter dados que suportem a opinião da afiliada, Rosana afirmou concordar com ela. 

O debate seguiu com comparações entre o sistema britânico e o sistema brasileiro de ensino, o desafio da busca por respeito dentro do ambiente universitário e relatos de Acadêmicos que fazem parte de programas de acolhimento aos alunos em suas universidades. A pesquisadora Cristiane Leitão relatou já ter sofrido muito com as pressões acadêmicas e contou sobre sua experiência como uma das tutoras do programa de tutoria da Faculdade de Medicina da UFRGS. Semestralmente, alunos do penúltimo semestre elegem professores com perfil de tutores para mentorizar sete alunos durante todo o período da graduação. “A gente não vira pai e mãe, é só para orientar os alunos durante a formação”, relatou Cristiane. 

Fernanda Werneck, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), afirmou ter impressão de que, no Brasil, há um tipo de comunicação mais informal que abre brechas para a construção de relações mais próximas com orientandos, citando como exemplo o seu grupo de pesquisa, que acabou se tornando uma grande comunidade. Ela afirmou que essa ferramenta pode humanizar as relações, mas que há uma linha tênue entre criar um vínculo e acabar virando “mãe”, e pediu dicas para a palestrante sobre como equilibrar essa relação. “Isso é algo que eu me questiono muito até hoje”, disse Pinheiro-Machado, mencionando que, desde os seus tempos em Oxford, os alunos a procuravam para fazer desabafos por ser considerada uma professora “acessível” (approchable, do termo em inglês). “Ainda mais em tempos de pandemia… A gente é serviço essencial, temos um dever pedagógico com esses estudantes. Eu só posso concordar com você, mas ainda não sei como te aconselhar quanto a isso”, completou.

Werneck perguntou se Rosana enxerga alguma perspectiva de, em uma década, as instituições de ensino superior brasileiras incluírem o apoio psicológico em suas agendas. Rosana afirma que, desde que entrou nesta área, os avanços foram gigantescos. “Debates sendo feitos, coletivos falando sobre opressão, surveys sendo realizadas… O cenário mudou radicalmente. Mas acho que a gente tem um problema estrutural, que no Brasil é tabu, que é a formação didática dos professores. A gente precisa institucionalizar o modelo de formação de professores, especialmente da área de ciências humanas, no qual os professores, a menos que tenham feito licenciatura, não foram treinados para dar aulas.”

Raquel indagou como ser gentil e educado mas ao mesmo tempo ter firmeza para lidar com os alunos. Utilizando suas próprias atitudes como exemplo, Rosana destacou que impor regras é importante. No seu caso, ela pede cinco dias úteis para ler qualquer tipo de texto e enviar seu parecer. Ela afirma que, desta forma, é mais fácil conseguir respeito sem se afastar dos alunos.


Gostou do resumo da mentoria? Fique atento ao site da ABC para saber quais serão as próximas pautas a serem debatidas pelos nossos afiliados nos debates futuros!