Leia artigo de Leandro R. Tessler e da diretora da ABC Marcia Barbosa publicado no blog Ciência e Matemática do jornal O Globo, em 

Era 1989. A internet ainda era um bebê. O mundo vivia no temor de mais uma crise de petróleo decorrente da guerra entre Irã e Iraque. Martin Fleischmann e Stanley Pons, da Universidade de Utah, anunciaram que haviam realizado um experimento que poderia garantir a geração de energia limpa: a fusão fria do hidrogênio. A fusão nuclear produz uma enorme quantidade de energia (é o que faz o sol brilhar). Esforços para obter fusão controlada na terra envolvem máquinas enormes e altíssimas temperaturas. O resultado foi anunciado à imprensa como revolucionário no dia em que o artigo contando o feito foi submetido para publicação. O mundo ficou em polvorosa. A notícia era a esperança para uma crise energética que se avizinhava. Imediatamente cientistas de todos os lugares fizeram o que a tradição científica impõe desde os tempos de Galileu: tentaram reproduzir o experimento. Depois de inúmeras tentativas ficou claro que a fantástica descoberta de Fleischmann e Pons havia sido um erro experimental, agravado por uma fraude primária num gráfico de emissão nuclear. O Departamento de Energia do governo americano nomeou um painel de especialistas que mostrou que os resultados apresentados não eram convincentes o suficiente para justificar pesquisas no assunto. O cuidado em esperar a opinião final da ciência economizou bilhões, apesar de muita gente (até hoje) acreditar que os resultados eram bons.Em 2020 a internet já amadureceu. O mundo vive no temor da mais grave pandemia dos últimos séculos. Todos buscam uma droga que combata a infecção pelo vírus SARS-CoV-2, o causador da doença que chamamos de Covis-19. O grupo do Prof. Didier Raoult, do IHU-Marseille anunciou bons resultados com o uso de cloroquina, um medicamento barato para tratar covid-19. O resultado foi publicado primeiro na forma de um preprint, que é como chamamos versões preliminares de artigos científicos que não passaram pelo processo de revisão por pares. O artigo foi revisado e aceito em tempo recorde num periódico editado por um dos autores, o que despertou desconfiança na comunidade científica. Mas nada disso impediu que o artigo chamasse a atenção do ex-presidente Donald Trump, que qualificou a cloroquina como “uma das maiores descobertas da história da medicina”. O presidente do Brasil caiu nessa conversa e determinou a produção de toneladas de comprimidos de cloroquina pelas farmácias do exército, gastando milhões nisso. Recomendou cloroquina para todos, até para as emas do Palácio do Planalto. Os cientistas fizeram o que a tradição científica impõe desde os tempos de Galileu: tentaram confirmar os resultados. Para isso usaram o que tem de melhor nas ciências da saúde: estudos duplo-cego randomizados multicêntricos. Os resultados foram decepcionantes. Cloroquina não tem ação maior que o placebo contra Covid-19. Efeito nulo. Como no caso da fusão fria, havia erros de procedimento no artigo original. Infelizmente, desta vez, a imprudência de políticos e de muitos médicos havia iludido a população com um falso tratamento precoce.

Em 2021 o sistema de saúde de Manaus colapsou. Faltou oxigênio para tratar os pacientes mais graves. Qual a resposta do ministro da saúde e do presidente? Atribuem a gravidade da doença ao não uso de tratamento precoce com cloroquina e outras drogas igualmente ineficazes contra Covid-19 como ivermectina, nitazoxanida e azitromicina. Ao mesmo tempo pressionam os secretários de saúde e médicos locais para que receitem essas drogas como solução para o problema. O governo federal desde o início ignorou e continua ignorando a ciência. Não recomenda o afastamento social e o uso de máscaras, medidas que podem reduzir a pandemia. Não comprou vacinas nem insumos para vacinação no momento certo, porque decidiu deliberadamente contrariar as recomendações dos cientistas. Infelizmente isso tem um custo que poderia ter sido evitado. Ciência salva vidas.

O artigo original pode ser lido on-line em O Globo.

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*Leandro Tessler é professor do Instituto de Física da Unicamp
**Marcia Barbosa é professora titular da UFRGS e diretora da Academia Brasileira de Ciências