Leia o artigo enviado por Rodrigo Stabeli* e René Beleboni**, em 18/1/2021, para as Notícias da ABC:

A antecipação e a previsão de causas e consequências têm sido chaves-mestras para o sucesso de diferentes sociedades em diferentes tempos, incluindo os contemporâneos. Assim deve ser a campanha de vacinação contra o SARS-COV-2 nos meses vindouros. Esta será uma campanha sem precedentes, em tamanho e, sobretudo, em desafios. É preciso ciência antecipada para enfrentar este que será um dos maiores eventos de natureza médico-epidemiológica de todos os tempos, correspondente ao tamanho da própria Covid-19, o Golias do início do século.

Estar preparado para a campanha significa alinhar discursos e esforços em torno de uma causa nobre, a saúde pública, de modo que cada população distinta seja devidamente respeitada e atendida. Os beliscões políticos entre as esferas municipais, estaduais e federal são, ou ao menos deveriam ser, miudezas bizarras em tempo tão anuviado quanto o de agora. Mais de 200 mil brasileiros tiveram as vidas ceifadas e outros tantos aguardam, apreensivos, a sua sorte, de acordo com o que nosso David contemporâneo, o SUS [Sistema Único de Saúde], possa dar conta. Muitos desses brasileiros falecidos integravam a linha de frente na saúde e, portanto, desfalcam a força-tarefa que lida dia e noite com o controle da pandemia.

Para além do alinhamento político e estratégico, é gritante a necessidade de preparação informacional para a campanha, primeiro a de orientação e depois a de convocação vacinal. Sem a obrigatoriedade, é preciso que a prévia e urgente conscientização para a campanha seja disposta de modo a tornar a população desejosa da vacina, estimulada a buscar as vacinas oficiais que lhe estejam ao alcance, confiantes e em segurança.

Caso não limitada por barreiras sanitárias ou da perturbação de ordem pública, deveríamos, numa fotografia hipotética, ver pessoas comemorando com gritos e buzinas, como em comemoração a um gol. Ver carros em drive-thru, não para os hamburgueres do cotidiano, mas para promoção de saúde coletiva. Ver pequenas filas, guardando o devido e importante distanciamento físico, com uso de máscara e álcool em gel, seguindo a ordem das populações prioritárias a cada etapa da vacinação.

No panorama ideal, e este é certificado e garantido pelas agências de regulação nas contrapartes brasileira e mundial, teríamos mais de uma vacina, todas seguras e eficazes, se complementando em casos e situações específicas, como deve ocorrer na prática. Teríamos amplo investimento para que a saúde pública e coletiva tivesse total prioridade, ao menos desta vez.

Considerando que a COVID-19 afeta ricos e pobres em países com diferentes gradações em IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], sem muita distinção, teríamos célere produção de insumos e de vacinas em solo brasileiro, sempre certificadas com as boas-práticas de fabricação a cada lote, como de costume. Teríamos a ampliação da frente de vacinação para um contingente populacional cada vez maior em tempo breve. Seríamos amplamente apoiados por decisões de comitês especializados e câmaras técnicas, sendo respeitadas as recomendações. Teríamos doses suficientes para todos no menor tempo possível, ou assim que os alinhamentos operacionais permitissem, na medida ideal entre a pressa e a sensatez.

No contexto histórico da experiência em campanhas de vacinação, a despeito de contratempos de toda sorte, o Brasil é um “país vacinante”, como mostrou em anos anteriores e em diferentes campanhas para doenças diversas. Para tanto, é preciso que não faltem seringas, agulhas, algodão e demais apetrechos básicos, comprados transparentemente, além de pessoal qualificado e competente na aplicação das vacinas. Veríamos os agentes e as instalações de vacinação bem-preparadas e treinadas, como de costume, seguindo cada preceito de orientação técnica e da ética, orientados por cronogramas e organogramas bem planejados e estabelecidos.

Apesar das dificuldades operacionais, teríamos nossa cadeia de frios e os sistemas de transporte e armazenamento de insumos biológicos ampliados e adequados às diferentes demandas técnicas e urgências. Para o transporte e distribuição, contaríamos com os selos de certificação para cada lote de vacina, rápida entrega, dispositivos tecnológicos para rastreamento de lote e proteção contra fraude/falsificações. Toparíamos com vacinas devidamente armazenadas e utilizadas dentro de seu prazo de validade, otimizando os esforços financeiros que cada país suporta ao enfrentar uma pandemia sem paralelos anteriores.

Ao longo da vacinação em massa, teríamos robusta proteção oferecida aos agentes de vacinação e à própria população vacinada, tendo em vista sabermos que o vírus ainda não “conhece” a vacina nem os nossos planos, ao menos por enquanto. E por isso a urgência.

É preciso salvaguardar os ditames da Constituição Federal, que garante a saúde a todos os brasileiros, de todas as latitudes, cores, ideologias e condições sociais, como num esforço de guerra, com as Forças Armadas atuando na distribuição dos imunobiológicos para áreas de difícil acesso. Teríamos ainda mais sedimentada uma plataforma de produção e, possivelmente, desenvolvimento de vacinas próprias, com investimento sólido e perene na logística para garantir total capilaridade para locais remotos.

Vislumbraríamos, por fim, um programa de farmacovigilância ativo e robusto, acompanhando eventos relacionados a cada indivíduo vacinado e a cada tipo de vacina. Veríamos uma boa e transparente gestão epidemiológica dos dados e o acompanhamento de resultados para provar a proteção da população e prever o fim da pandemia, ao menos no seu pico mais intenso de transmissões e/ou letalidade.

Finalmente, veríamos o triunfo da ciência e a merecida demonstração prática de seu poder, soberania e importância. A Ciência ainda é um bem humano – e pretendemos que seja sempre.

Que não despertemos de nosso delírio. O ano de 2021 será o ano da CIÊNCIA.

*Rodrigo Stabeli, Pesquisador titular/Especialista em saúde pública e diretor da Plataforma de Pesquisa em Medicina Translacional da Fiocruz/SP, professor associado do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos e professor visitante da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). É consultor do  Departamento de Vigilância, Preparação e Resposta a Emergências e Desastres (OPAS/OMS). Atualmente integra o Grupo de Trabalho para Enfrentamento da COVID-19 em Ribeirão Preto e o Grupo de emergência da Organização Mundial de Saúde (OMS) na Amazônia. Foi membro afiliado da ABC no período 2009-2013.

**René Beleboni, Professor titular-pesquisador da Unidade de Biotecnologia da Escola de Medicina da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).