A série de webinários “Conhecer para Entender” da Academia Brasileira de Ciências (ABC) chegou ao fim, no dia 15/12, com sua 31ª edição. O tema “Povos tradicionais, saúde, educação, meio ambiente: avaliando 2020 e preparando 2021” mobilizou Acadêmicos e convidados a fazerem uma retrospectiva do ano, sob os impactos da pandemia de COVID-19 e de políticas públicas no Brasil para ciência, educação, meio ambiente e sociodiversidade. Nesta edição, foram convidados cientistas e Acadêmicos que integram também a Coalizão Ciência e Sociedade.

Mercedes Bustamante apresentou e coordenou o evento, com a colaboração do jornalista do O Globo, Rafael Garcia. Os outros participantes, de diferentes áreas do conhecimento, foram Bruno Gualano e os acadêmicos Maria Teresa Piedade e José Alexandre Diniz Filho. A insegurança alimentar, a espera por vacinas, o fechamento de escolas e os incêndios que afetaram o Pantanal e a Amazônia foram alguns dos acontecimentos mais marcantes do ano, lembrados pelos webinaristas durante o evento.

Ciência e saúde na crise de COVID-19

Falhas de gestão, desatenção à saúde pública e suas consequências para a sociedade. Estas foram questões graves, trazidas pelo Dr. Bruno Gualano, sobre a pandemia no Brasil. Professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador na área de fisiologia com foco em COVID-19, Gualano discutiu uma nova perspectiva para a crise provocada pelo coronavírus: uma “sindemia”, crise capaz de afetar diferentes segmentos sociais.

“Precisamos agir à luz da ciência e com investimentos massivos no Sistema Único de Saúde (SUS)”, disse Gualano, após lembrar dos então mais 180 mil mortos por COVID-19 no país. Segundo ele, é preciso estar atento à possibilidade de encolhimento dos investimentos para o SUS no próximo ano, que podem chegar a mais de 35 bilhões de reais. “Há uma desassistência e uma desatenção em relação à saúde muito grandes no país”.

Esses, porém, não foram os únicos problemas que, segundo o pesquisador, atrapalharam o enfrentamento da pandemia no Brasil. A falta de políticas públicas, a adoção da cloroquina e da hidroxicloroquina como falsos elixires para COVID-19, mudanças de gestão do Ministério da Saúde e, recentemente, posições de negação da vacina e de seus benefícios para a prevenção de novos casos e mortes marcaram a atuação do governo federal. “Em 2021, o que nos espera são pacientes que precisarão do sistema de saúde para tratarem as sequelas deixadas pela COVID-19, com danos fisiológicos e psicológicos”, disse Gualano. “Precisamos lidar com esses pacientes com base no número de casos que já aconteceram, serão novas ondas de pacientes, materializadas posteriormente”.

Educação e o futuro da sociedade brasileira

Enquanto os primeiros casos de COVID-19 eram notificados no Brasil, a pandemia se instalava num cenário de sucateamento da educação pública brasileira. Isso refletiu problemas de conscientização sobre a importância de medidas de prevenção à infecção pelo vírus SARS-CoV 2, como o uso de máscaras, ou até a ideia do que seria um vírus. O Acadêmico José Alexandre Diniz Filho, professor na Universidade Federal de Goiás (UFG), onde foi pró-reitor de Pós-graduação, destacou a série de inseguranças e problemas provocados pela paralisação da educação para muitos brasileiros durante a pandemia.

Um histórico de desvalorização acadêmica e educacional marcaram, segundo o Acadêmico, gerações que, hoje, encaram problemas de inclusão digital e acesso à internet, ferramentas que se tornaram essenciais durante a pandemia. “Em 2019, vimos cortes de recursos imensos na educação e tentativas de fragilizar a liberdade acadêmica e as universidades públicas brasileiras”, disse Diniz Filho. “Hoje, vemos o quão importante a escola e a educação pública são, por questões que vão além do ensino, como a promoção da segurança alimentar, física e psicológica de muitas pessoas”.

A pandemia escancarou o que, antes, parecia ser velado sobre a educação brasileira: o valor do conhecimento. “Governantes optaram por abrir todos os serviços essenciais no Brasil, menos as escolas. Enquanto isso, vemos uma melhoria nos índices de credibilidade da ciência entre a população”, lembrou Diniz Filho.  Para 2021, ainda há questões que deverão ser resolvidas e que foram elencadas pelo Acadêmico, como a obrigatoriedade de voltar às aulas sem, ainda, um planejamento de segurança sanitário do Governo, cortes nos orçamentos do Ministério da Educação e no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e as novas resoluções do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação (Fundeb). “Precisamos escapar do negacionismo e isso só vai acontecer com uma sociedade educada e preparada para lidar com todos esses problemas”, disse.

Um triste balanço para o meio ambiente brasileiro

Os incêndios que atingiram o Pantanal e a Amazônia ocuparam os noticiários brasileiros e internacionais ao mostrarem a perda acelerada da vegetação nativa, com retrocessos na proteção ambiental pelo afrouxamento da legislação sobre temas relacionados. A Acadêmica Maria Teresa Fernandez Piedade apresentou dados e estatísticas mostrando quão grave foi a degradação ambiental no Brasil em 2020.

“2020 foi o ano da flexibilização ambiental e da volta da preocupação com o ponto de não retorno”, disse Piedade. De janeiro a novembro deste ano foram registrados mais de 21 mil focos de calor na região pantaneira, o que corresponde à perda de cerca de 30% da área nativa do Pantanal.

Na Amazônia, o desmatamento e outros casos de incêndios afetaram cerca de 1,1 milhão de hectares e 9,5% de seu território, respectivamente. “Alterações no ciclo hidrológico e de carbono podem fazer com que o sistema natural da floresta não suporte mais a degradação”, afirmou Piedade. Uma realidade que não afetará, segundo ela, apenas a Amazônia, mas que deve afetar o clima e o sistema de chuvas em outras regiões brasileiras e países vizinhos.

A Acadêmica também lembrou a situação atual do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), um conselho governamental que visa à fixação de normas ambientais. O órgão, que passou por uma tentativa de desestruturação de suas normas que protegiam mangues, poderia ser, na verdade, a solução para os problemas ambientais. “Deveríamos simplesmente cumprir as leis ambientais de forma democrática e equânime e proteger os direitos dos povos indígenas, além de cumprir as metas nacionais e internacionais de preservação”.

Ciência e povos tradicionais 

Os povos indígenas representam cerca de 6% da população mundial, mas cuidam do manejo de cerca de 28% da área global. Muitos desses territórios apresentam ecossistemas preservados graças às ações desses povos originários. Os dados apresentados por Mercedes Bustamante também revelaram o quanto o ano de 2020 foi difícil exatamente para aqueles povos e comunidades, com a intensificação de ameaças e perdas de direitos.

Integrante da Coalizão Ciência e Sociedade, Bustamante, que pesquisa temas relacionados ao uso da terra e mudanças ambientais globais, deu destaque a um incremento do desmatamento em terras indígenas no Brasil. “Enquanto houve um aumento de 34%  do desmatamento geral na Amazônia em 2019, nos territórios indígenas o desmatamento aumentou em 80% no mesmo ano. Considerando a média da série histórica (2008-2018), houve um aumento de 114% do desmatamento em terras indígenas em 2020”, disse. Bustamante. “Ao perdermos os territórios indígenas, também perdemos diversidade, conhecimentos e inovações preciosos de grupos que têm um sistema de conhecimento ancestral”.

Para a Acadêmica, a colaboração com os cientistas, além de promover uma troca necessária, poderia assegurar a equitativa repartição de benefícios e respeito aos direitos de propriedade intelectual destas populações. Bustamante ressaltou o papel da ABC neste cenário, com a eleição de Davi Kopenawa, um importante líder Yanomami, como membro colaborador da Academia Brasileira de Ciências. “A valorização dos povos originários é, muitas vezes, a segurança do meio ambiente”, disse Bustamante. Ela relatou que apenas a Rede de Sementes do Xingu, a maior rede de sementes nativas do Brasil uma iniciativa de restauração florestal com grupos formados por agricultores familiares e indígenas, já foi capaz de recuperar cerca de 6 mil hectares de áreas degradadas.