A série de Webinários da ABC sobre o mundo a partir do coronavírus teve sua sexta edição sobre o tema “Fármacos e a indústria farmacêutica no Brasil”.

Para discutir as diversas questões envolvidas, a Academia Brasileira de Ciências convidou o Acadêmico Jorge Guimarães, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii); o Acadêmico e vice-presidente da ABC para a região Sul, João Batista Calixto, diretor do Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP); e o médico infectologista Esper Kallas, professor titular do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Falta investimento da indústria farmacêutica brasileira em biofármacos

Médico veterinário e bioquímico, Jorge Guimarães é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, como professor, pesquisador e coordenador do Laboratório Temático de Bioquímica Farmacológica. Ele destacou que o Brasil é um dos maiores mercados do mundo para medicamentos e que a indústria farmacêutica no Brasil é um setor capitalizado, que tem sido estimulado financeiramente por vários anos, pelo BNDES, Finep e pelos incentivos da Lei do Bem. O setor é ocupado por grande número de empresas de capital nacional e cerca de 50 multinacionais. Dez indústrias nacionais disputam o mercado em pé de igualdade com as multinacionais. “Mas há um grande gargalo, que é a dependência do setor de importação de fármaco-químicos, os princípios ativos para produzir os medicamentos”, relatou o Acadêmico. “Esse gargalo gera um elevado déficit na balança de pagamentos.”

Os apoios recebidos do governo estimularam reconhecidos avanços na produção de medicamentos, principalmente nos genéricos, mas não houve equivalente avanço na inovação, especialmente na área de biofármacos. Essa área, que gera custos elevadíssimos para o SUS, não foi priorizada pela indústria brasileira, nem mesmo pelos sucessivos governos. “Houve um grande erro estratégico”, avaliou Guimarães.

Jorge Guimarães, que presidiu a Capes por onze anos, mostrou como a Embrapii vem apoiando a indústria desde sua criação, há seis anos. “A maior parte da nossa indústria não tem centros de pesquisa e desenvolvimento. O papel da Embrapii é fazer uma ponte entre as Unidades Embrapii, que são laboratórios de pesquisa das universidades e de outros institutos de ciência e tecnologia, e as indústrias, com foco no desenvolvimento de produtos e processos”, explicou. Nesse período, já apoia 920 projetos e tem 630 empresas parceiras. A Embrapii financia até um terço do valor de cada projeto, com recursos não reembolsáveis provenientes do Contrato de Gestão que mantém com o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Saúde (MS).

“Os projetos estão funcionando muito bem, atraindo empresas de todos os setores, inclusive as de grande porte, como a Siemens, Toshiba, Petrobras e Embraer. Mas a gente não vê a indústria farmacêutica presente nessas iniciativas.” Guimarães diz que apenas a Aché e a Eurofarma, dentre a enorme quantidade de empresas farmacêuticas que temos no Brasil, atuam com a Embrapii.

Nesses últimos dois meses, a empresa abriu uma linha de financiamento exclusivamente para projetos relativos à COVID-19. Foram selecionados 40 projetos, nas áreas de monitoramento de pacientes, desenvolvimento de sanitizantes, de equipamentos de suporte para hospitais projetos de kits diagnósticos e apenas dois projetos envolvendo fármacos e biofármacos. “De novo, não vemos a indústria farmacêutica presente numa crise desse tamanho que estamos vivendo agora”, apontou Guimarães.

A área de pesquisa biomédica brasileira, em sua avaliação, dispõe de excelentes grupos de pesquisa que podem dar suporte a uma política de desenvolvimento de tais produtos, inclusive vacinas. E Guimarães alerta: depois da COVID-19 vamos enfrentar um quadro perigoso. “Os países que não estiverem preparados para novas pandemias vão estar em situação muito difícil. Há muitos vírus candidatos a se tornarem novos coronavírus, assim como as super bactérias, na medida em que antibióticos vêm sendo cada vez mais usados, com menos eficiência. Os medicamentos têm que ser produzidos no próprio país. Esse é o grande desafio que temos no Brasil e, em especial, nos biofármacos. Temos 20% da biodiversidade do mundo, que precisa ser utilizada em benefício do país.”

Medicamento é questão de segurança nacional

João Batista Calixto é professor titular aposentado de Farmacologia da UFSC e trabalha há mais de 30 anos em parceria com as principais indústrias farmacêuticas nacionais e internacionais. Ele apontou três premissas básicas para qualquer processo de inovação tecnológica, em especial para a indústria farmacêutica.

A primeira delas, que é muito discutida, mas pouco compreendida, na percepção de Calixto: não há desenvolvimento tecnológico de ponta possível sem ciência básica de igual qualidade. “Não dá pra pular a etapa da ciência básica e querer inovar. Em medicamentos, isso certamente não é possível”, afirmou o Acadêmico.

A segunda premissa é achar que quem tem ciência e conhecimento garante o monopólio da inovação industrial. “Estamos sentindo na pele agora como o Brasil é dependente da China, sobretudo, e que não basta ter dinheiro para comprar os produtos necessários, se eles não estão disponíveis para muitos países.”

E a terceira premissa, ressaltada por Calixto, é que o conhecimento científico, em todo o mundo, é gerado nas universidades e nos institutos de pesquisa, mas a inovação ocorre nas indústrias. “Aqui temos essa situação complicada de não haver a ligação entre as instituições que fazem pesquisa e as empresas inovadoras”, apontou.

E é essa lacuna, que a Embrapii preenche como pode, que tem que estar no foco dos formuladores de políticas públicas brasileiros. Calixto destaca que é essencial uma mudança na política da ciência e tecnologia no Brasil.

Calixto salientou que o Brasil depende 90% de importação dos medicamentos acabados e dos princípios ativos que são fabricados na China e na Índia, principalmente. “Se a crise se estender nesses países, dificilmente nós teremos acesso a medicamentos de primeira linha, o que vai agravar enormemente a situação no Brasil.  A falta de produtos pode matar tanto quando a pandemia da COVID-19”, alertou.

O problema do Brasil, em sua visão, é que embora seja a 8ª economia do mundo, esteja em 14º lugar na produção científica mundial e detenha cerca de 2,7% dessa produção, o país não conseguiu transformar esse conhecimento em inovação. “Nosso percentual das exportações mundiais baseadas em commodities é de apenas 1% – e se deve quase totalmente à Embrapa, que modernizou o sistema da agroindústria no Brasil. Tudo que nós exportamos vem da natureza, principalmente minérios, grãos e carne”, relatou o webinarista.

Ele valoriza o sucesso do Brasil na exploração de petróleo em águas profundas, na produção de aviões e lista outros exemplos de parcerias bem-sucedidas com universidades, mas ressalta que os números relativos a essas ações estão muito abaixo do que seria esperado de um país com a pujança na formação de recursos humanos e nas publicações científicas como o nosso.

“Medir a inovação é difícil”, ele afirma. Mas diz que a referência mais utilizada no mundo é o número de aprovação de patentes pelo USPTC. Apresentou, então, dados de 2014, que não mudaram muito, pelo menos a nosso favor, desde então. “A Coreia estava em 4º lugar no mundo, tendo registrado 16 mil patentes. Taiwan estava em 5º lugar e aprovou 11 mil patentes em 2014. A China registou 3 mil patentes e estava em 11º lugar. Já o Brasil registrou apenas 334 patentes e ficou em 26º lugar naquele ano. Precisamos corrigir essa contradição, ao menos pela necessidade de reduzirmos a importação de insumos farmacêuticos.”

O processo para chegar a um medicamento, segundo Calixto, é longo e caro, e tem baixo sucesso em todas as etapas do processo. “Desde o início da pesquisa básica até o lançamento de um produto, leva aí uns dez anos. Poucos países conseguem cumprir todas as etapas, mas cumprir algumas das etapas é mais fácil e pode diminuir a dependência. Um produto aprovado paga todo o processo – e por isso os medicamentos são cada vez mais caros”, explicou.

O Acadêmico apresentou algumas sugestões, dentre as quais o estabelecimento de um projeto governamental estratégico de Estado para apoiar a pesquisa básica de alta qualidade para inovação tecnológica, priorizando as empresas inovadoras startups. Também incluiu esforços de curto prazo para melhorar o nível de nossas publicações científicas, com foco em ciência translacional, ou seja, aquela que transforma conhecimento em inovação. “E é preciso promover mudanças no atual sistema de treinamento de recursos humanos na pós-graduação, de modo a formarmos pessoas com a cabeça aberta para a inovação.”

Outra recomendação que Calixto reforçou foi a aprovação de leis que facilitem aos pesquisadores e empresas ter acesso ao conhecimento genético de nossa biodiversidade para fins científicos e inovação tecnológica. “E de leis que estimulem a participação do setor privado em parcerias com universidades e institutos de pesquisa para o avanço da inovação tecnológica de elevado risco. Tem que haver mais investimento e comprometimento com o país.”

Ciência oferece boas perspectivas de tratamento, ainda em fase de pesquisa

Esper Kallas comentou a grande evolução no tratamento farmacológico da COVID-19, revendo as intervenções farmacológicas promovidas até o momento, incluindo antivirais e uso de anticorpos no tratamento da doença. Também abordou aspectos importantes da pesquisa clínica no Brasil.

Ele apresentou a estrutura genética do novo coronavírus, o SARS-CoV-2, e explicou que a doença é caracterizada por uma dicotomia. A maior parte das pessoas contaminadas desenvolve uma resposta imune e essa defesa acontece muitas vezes sem o aparecimento de sintomas. Porém, um número menor de pessoas, que concentra pessoas mais idosas e com outras comorbidades, pode desenvolver um quadro grave. “Há produção de grande número de partículas virais, o que provoca um processo inflamatório muito mais intenso na segunda fase da doença”, explicou o médico.

Kallas esclareceu que, por isso, se considera que há mais de uma doença e elas vão se acumulando. Ele relata que, nos primeiros sete dias, a COVID-19 pode parecer uma doença viral banal, com febre, mal estar, tosse e em muitas das pessoas acometidas, os sintomas passam sozinhos. “Mas há pessoas que entram na segunda fase, a chamada fase pulmonar, com comprometimento inflamatório e com insuficiência respiratória. Muitos vão para a ventilação assistida e alguns passam para uma terceira fase, onde há um processo cicatricial que pode acabar levando à fibrose pulmonar, com comprometimento muito significativo da função respiratória”, resumiu o especialista.

Com relação aos tratamentos, o caminho mais imediato envolve o desenvolvimento de medicamentos que bloqueiem a replicação do vírus, os antivirais. Kallas explica que esses produtos podem ser úteis na primeira fase. Hoje, o medicamento com ação antiviral direta mais conhecido é a cloroquina.  Infelizmente, os estudos mundiais verificaram um efeito positivo pequeno e sinais de malefícios significativos em pacientes em fase aguda. “No Brasil há pelo menos 14 estudos com cloroquina e, no mundo, mais de 60. Acreditamos que em breve teremos resultados mais consistentes”, observou Kallas. Ainda no campo dos antivirais, o médico relatou que há também estudos em desenvolvimento em diversos países com o favipiravir, o remdesivir e o arbidol (umifenovir),que até agora também apresentaram resultados parciais modestos, e o galidesivir, que ainda não apresentou resultados.

Kallas informou que as combinações lopinapir/ritonavir e atazanavir/ritonavir não apresentaram bons resultados nos estudos. Ainda estão tendo seus mecanismos investigados a ivermectina e a nitazoanida. Outras combinações de antivirais, como é feito no coquetel contra o HIV, estão sendo pesquisadaos.

Ciência oferece outras linhas de tratamento promissoras

Esper Kallas referiu-se a um artigo do Acadêmico Paulo Saldiva e colegas, que observaram grande presença de trombos nos pulmões de pessoas que morreram de COVID-19. Alguns grupos de pesquisa, como o da Acadêmica Helena Nader, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estudam o uso de anticoagulantes, como a heparina, para evitar as tromboses. “Um estudo nos EUA já mostrou que a sobrevida das pessoas contaminadas e tratadas com anticoagulantes é maior e melhor, então esse parece ser um caminho promissor no tratamento da COVID-19”, apontou o webinarista.

As condutas adotadas para o tratamento da doença, portanto, variam. Em muitos centros, é feita profilaxia para todos os pacientes com doença moderada, mas não há unanimidade sobre o protocolo, assim como há discussões sobre os critérios para a anticoagulação terapêutica.

Outra dimensão é o tratamento do processo inflamatório que acontece depois da infecção viral. Segundo Kallas, há vários remédios com este foco que estão sendo estudados, como corticoides, que indicam algum benefício, e do uso de inibidores de anti-interleucina 6, como outras estratégias para diminuir o processo inflamatório.

O impedimento da ligação do vírus à célula humana é outra ação estudada. Para dar anticorpos já formados aos pacientes, há duas estratégias principais sendo estudadas. Uma é a utilização de plasma convalescente. Nesse procedimento, identifica-se pessoas que tiveram COVID-19 e verifica-se se elas têm anticorpos circulantes. Em caso positivo, coleta-se o plasma, que é injetado em pessoas com a doença. Segundo Kallas, essa estratégia não é nova, foi usada pelo primeiro Prêmio Nobel de Medicina, contra difteria, quando foi eficiente. “E pode ser eficaz também no caso da COVID-19, vários estudos nesse sentido estão sendo desenvolvidos no Brasil.”

Também em fase de pesquisa, o uso de anticorpos monoclonais neutralizantes é outra forma para que pacientes recebam anticorpos já formados. Um estudo holandês in vitro, ou seja, em laboratório, com hamsters, foi publicado no dia do webinário e apresentou resultados positivos.

Para o tratamento de pacientes que estão internados em UTIs, em estado mais grave, com ventilação mecânica prolongada, está sendo estudado o uso de células tronco mesenquimais para restabelecer um processo de cicatrização mais saudável para o hospedeiro. A ideia é reverter os casos mais grave, que envolvem fibrose pulmonar. Três estudos brasileiros estão sendo desenvolvidos com empresas brasileiras nesse sentido, de acordo com o médico.

A despeito de todas as tentativas de tratamento, a “saída de ouro”, na visão de Kallas, será o desenvolvimento de uma vacina. Já existem pelo menos oito vacinas candidatas, em fase 1 de testagem. “Deveria ser prioridade para nós, aqui no Brasil, desenvolver ao menos a parte clínica em parceria com as empresas produtoras de vacinas do país, porque é a forma de se induzir a imunidade de rebanho de forma artificial. Há grupos brasileiros envolvidos no desenvolvimento de vacinas, que estão ainda em fase pré-clínica, mas que devem ser estimulados, porque essa é a única forma de sairmos dessa confusão”, concluiu o pesquisador.

 

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