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Pouco mais de três anos após o primeiro surto de zika no país, ocorrido entre 2015 e 2016, as crianças de mães infectadas pelo vírus durante a gravidez ainda demandam cuidado, tenham ou não desenvolvido microcefalia. É o que apontam pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que avaliaram o desenvolvimento neurológico de 216 crianças com idade entre 6 meses e 2,5 anos, que nasceram de mulheres diagnosticadas no Rio de Janeiro.

De acordo com os resultados das avaliações, publicados no dia 8 de julho na revista Nature Medicine, os prejuízos relacionados à infecção não se limitam à microcefalia e podem se manifestar bem depois do nascimento. Também há, no entanto, uma boa notícia: em alguns casos, é possível melhorar o neurodesenvolvimento. “O grau do dano pode variar conforme a época da gravidez em que aconteceu a infecção e fatores genéticos também podem estar envolvidos”, conta a pediatra Maria Elisabeth Moreira, coautora do artigo.

O estudo acompanhou 216 bebês. A equipe avaliou o desenvolvimento neural de cada um deles por meio de testes de cognição, linguagem e capacidade motora, além de exames oftalmológicos e auditivos. Nem todas as mulheres avaliadas tiveram bebês com microcefalia, o que acontece com 6% a 12% dos fetos expostos ao vírus. Em estudo publicado no ano passado na revista científica Nature Communications, a geneticista Mayana Zatz e sua equipe do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) listaram 60 genes que, a depender da maneira como se comportam no organismo, podem tornar a criança mais suscetível ao vírus. Os pesquisadores da Fiocruz selecionaram as mães cujos filhos seriam acompanhados logo após as mulheres apresentarem os sintomas de infecção por zika, especialmente erupções avermelhadas pelo corpo, e o diagnóstico ser comprovado por meio de exames de urina e sangue.

Das 244 gestações acompanhadas, todas de mães infectadas por zika e que esperavam um único filho, 11 resultaram em morte fetal, quando o feto morre entre 20 e 28 semanas de gravidez. Dez bebês foram a óbito no terceiro trimestre de gestação e sete após o nascimento – todas as mortes em decorrência de complicações causadas pela infecção. Das 216 crianças que seguiram no estudo, apenas oito nasceram com microcefalia, duas delas do tipo proporcional – quando o comprimento e o peso corporais também estão abaixo do normal, por isso o crânio pequeno não é tão evidente. Mesmo assim, 67 apresentaram desenvolvimento abaixo da média ou anormalidades na visão ou na audição entre 7 e 32 meses de idade. As demais não tiveram complicações relatadas.

“Essas condições se manifestaram em fases distintas, o que reforça a necessidade de acompanhamento individualizado para uma melhor compreensão dos efeitos da infecção por zika”, alerta a médica Patrícia Brasil, da Fiocruz, primeira autora do artigo.

Para a médica e pesquisadora de Campina Grande (PB) Adriana Melo, pioneira na identificação da relação do zika com a microcefalia, o estudo ajuda a ampliar o conhecimento sobre um problema que muitos acreditavam ter sido superado. “Por se tratar de uma doença ainda em grande parte desconhecida, estamos construindo sua história natural, aprendendo a interpretar exames, a identificar novos achados e melhores terapias”, comenta. E alerta que muitas perguntas ainda precisam ser respondidas sobre o zika e suas implicações. “Será que é uma doença evolutiva? Que outros órgãos serão acometidos com a idade?”

Para cada criança, um diagnóstico

Meninas que não nasceram prematuras se mostraram capazes de um neurodesenvolvimento melhor. O estudo também observou um funcionamento neural normal nas duas crianças que tinham o crânio em dimensões abaixo do padrão, assim como todo o corpo. Por outro lado, três crianças desenvolveram transtorno do espectro autista no segundo ano de vida.

Das 49 crianças que apresentaram alguma deficiência no primeiro ano de vida, 24 obtiveram avaliações normais no segundo ou terceiro. Isso inclui aquelas com anormalidades funcionais precoces, como convulsões e hipotonia, quando o tônus muscular está abaixo do ideal. Os dois casos de microcefalia proporcional em crianças que nasceram pequenas para a idade gestacional foram revertidos.

“Essas condições que parecem ‘se resolver’, em geral acontecem em crianças que tiveram crescimento intrauterino retardado de forma relacionada ao vírus. Depois que o bebê nasce e a ele são oferecidos nutrientes e estimulação adequada, caso daqueles acompanhados pelo nosso estudo, o perímetro cefálico chega a um tamanho adequado”, explica Moreira. De acordo com a pesquisadora, a reversão da condição ocorreu em crianças que não aparentavam malformações nem lesões de tecido cerebral.

O perigo não passou

Enquanto metade das crianças com complicações entre 7 e 32 meses evoluiu bem, um quarto das que não apresentaram anormalidades no período desenvolveu alguma alteração após o segundo ano de vida – de acordo com os pesquisadores, possivelmente relacionada à exposição ao vírus na gestação, apesar de ainda não haver dados conclusivos na literatura científica. Embora os exames iniciais feitos após o nascimento não indicassem anormalidade, posteriormente o desenvolvimento dessas crianças não foi considerado adequado, chamando a atenção para a necessidade de acompanhamento de crianças assintomáticas cujas mães foram expostas à doença.

“Em nossas análises, tentamos identificar potenciais preditores de desenvolvimento anormal e encontramos associações significativas entre exames oftalmológicos anormais, prematuridade, sexo masculino e idade gestacional da infecção”, relata Brasil. “Os bebês do sexo feminino são conhecidos por terem melhores resultados após infecções perinatais graves em comparação aos meninos.” Segundo ela, as mulheres infectadas em períodos mais tardios da gravidez tinham menor probabilidade de ter perda fetal ou de dar à luz bebês com problemas cerebrais estruturais ou desenvolvimento abaixo do normal.

Em um trabalho anterior, publicado em 2018 na revista Journal of the American Medical Network Open, os mesmos pesquisadores não encontraram associações diretas entre os problemas de desenvolvimento e a gravidade da infecção por zika durante a gravidez. “Como não há evidências que sugiram que filhos de mulheres com infecção assintomática têm melhores prognósticos, sugerimos acompanhar todas as crianças expostas ao zika no período pré-natal”, defende a pesquisadora da Fiocruz.

Ela explica que os achados relacionados ao neurodesenvolvimento foram corroborados por estudos em animais, incluindo pesquisa recente feita por pesquisadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, que indicou alterações neurológicas funcionais em camundongos após infecção por zika, incluindo transtornos do espectro autista. Os animais tiveram perturbações na interação social e mostraram sinais de depressão, dificuldade de aprendizagem e memória, além de defeitos motores graves.

“Semelhante ao que ocorreu com as crianças em nosso estudo, os camundongos expostos a uma infecção com uma cepa asiática do zika demonstraram comprometimento significativo da função cortical visual e da organização dos circuitos e da plasticidade cerebrais. Os resultados após o primeiro ano de vida e no longo prazo podem ser influenciados por inflamações mais sutis, derivadas de respostas imunes”, considera a pesquisadora.

De acordo com o médico e pesquisador de Belém (PA) Pedro Vasconcelos, cujo grupo de pesquisa no Instituto Evandro Chagas (IEC) isolou, em 2015, o vírus zika do cérebro de um bebê com microcefalia (ver Pesquisa FAPESP nº 274), os últimos achados dos pesquisadores da Fiocruz se relacionam ao que tem sido observado em outras regiões do país. “No Pará, onde temos uma coorte de crianças cujas mães se infectaram durante a gravidez, notamos uma ocorrência significativa do espectro autista – o que mostra que a capacidade do zika de causar danos ao sistema nervoso central de fetos é ampla e essas crianças, mesmo não apresentando alterações visíveis, devem ser acompanhadas por muitos anos”, diz.

“Temos toda uma geração de crianças que nasceram logo após o primeiro surto e estão sem diagnóstico, podendo apresentar condições menos conhecidas relacionadas à infecção”, alerta Patrícia Brasil. “Não podemos abandoná-las. Devemos estar preparados para acompanhar eventuais novas vítimas.” Segundo o Levantamento Rápido de Índices de Infestação pelo Aedes aegypti(LIRAa), conduzido no início do ano pelo Ministério da Saúde, 994 dos 5.214 municípios pesquisados apresentaram alto índice de infestação, com risco de surto para dengue, zika e chikungunya: doenças causadas por vírus aparentados.

Os pesquisadores dispõem de dados sociais das famílias para futuras análises, quando pretendem relacionar os riscos de complicações a condições como renda familiar e moradia. Segundo Maria Elisabeth Moreira, “é provável que aquelas mais pobres e que moram mais longe dos grandes centros tenham menos opções de cuidado – o que, somando-se à precária capacidade da rede pública de saúde para oferecer estimulação com fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional para todos os bebês, pode agravar a situação com o passar dos anos”. Para Adriana Melo, os problemas desencadeados pelo vírus zika descortinaram uma grave situação de assistência inadequada à criança com deficiência no Brasil. “Não sabemos quantas são, qual a gravidade da doença, nem como estão vivendo”, afirma.

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