Leia a seguir artigo do Acadêmico Virgilio Almeida e Francisco Gaetani para o jornal Valor Econômico, publicado em 6 de maio de 2019:

Fora do radar das pessoas que dirigem o Brasil, toda semana um acontecimento atrai a atenção – e o dinheiro – de milhões de brasileiros e brasileiras. As filas são sempre enormes, em geral maiores quando prêmios se acumulam. Quem não conhece a Mega-Sena, uma das instituições com maior credibilidade no país? O pano de fundo é a crença na seriedade e integridade de um algoritmo que seleciona aleatoriamente o conjunto de números que os sorteados precisam “adivinhar”. A Caixa Econômica Federal é sujeita a permanente escrutínio e nunca se levantou nenhuma dúvida sobre a lisura do certame. Esse é um caro exemplo brasileiro de “confiança” nos processos automatizados.

Na outra extremidade da vida pública nacional o país utiliza um algoritmo opaco no Supremo Tribunal Federal para sortear o juiz encarregado de posicionar-se em substituição à Corte ou às turmas em determinados tipos processos sensíveis à opinião pública nacional. Trata-se um exercício simples – afinal de contas são apenas onze juízes que integram o STF. Mesmo assim, a despeito da provável trivialidade da solução digital, o algoritmo não é público.

O entendimento do Judiciário torna-se cada vez mais importante para a democracia brasileira. Mas sua complexidade e frágil política de comunicação junto à sociedade não facilitam uma aproximação amigável. Esse é claro exemplo de uma característica cada vez mais necessária aos meios digitais, a “transparência”.

Os carros autônomos, sem motorista, ou semi-autônomos estão chegando às ruas. Atribuir a responsabilidade em caso de acidentes não vai ser tarefa fácil para futuros gestores. Não sabemos ainda como pensar essas questões. Mas a sociedade mais cedo ou mais tarde vai se posicionar. Se ela se antecipar aumentam as possibilidades de escolhas melhores e mais aderentes ao interesse público. Esse é um típico exemplo de uma característica crítica dos chamados sistemas técnico-sociais, que é a dificuldade de determinar a “responsabilização” em casos de falhas ou problemas nesses sistemas.

Algoritmos começam a substituir autoridades governamentais em séries de ficção científica – casos de “Travellers” ou “Person of Interest”. Em vários filmes a autoridade governamental já não é mais a Presidência, o Congresso, uma figura autoritária, ou uma assembleia que exerce a democracia direta. Uma pesquisa realizada no Reino Unido indicou que um em cada quatro britânicos acredita que os robôs fariam um trabalho melhor do que os humanos como políticos.

Isso não é motivo de surpresa por exemplo, para quem já faz compras na Amazon, participa da comunidade profissional do Linkedin, usa o Uber para transporte ou recorre ao Tinder para a busca de relacionamentos amorosos. Estes serviços são importantes para seus usuários que confiam o suficiente nos algoritmos que regem a lógica destes aplicativos, a ponto de delegar-lhes gostos, currículos, meio de transporte e preferências afetivas.

O governo chinês, por exemplo, está trabalhando para atribuir aos seus cidadãos uma “pontuação social” até 2020, onde um algoritmo classificará os cidadãos como um funcionário desejável, inquilino confiável, cliente valioso – ou um caloteiro, esquivo ou improdutivo. Como consequência, benefícios e recursos sociais estarão associados a essa pontuação.

A substituição de humanos por algoritmos ou uso de algoritmos para decisões sobre os cidadãos têm necessariamente de passar por amplas discussões na sociedade. As questões são várias. Incluem a transparência dos algoritmos e as razões para a delegação de decisões a um sistema automatizado ao invés de humanos. Incluem também os impactos sociais da automação, o significado dos processos decisórios individuais e coletivos estarem se desumanizando e a definição de responsabilidades dos sistemas automatizados.

Todas têm implicações que vão muito além do escopo possível deste artigo, mas que cada vez mais deverão fazer parte dos debates sobre o avanço das tecnologias digitais e as formas e mecanismos de controle da sociedade.

A regulação do mundo digital e a atuação das gigantes tecnológicas estão em xeque. O duelo entre as visões europeia – mais atenta para os direitos individuais e para a importância da competição – e a americana – menos intrusiva e mais laissez faire – está acontecendo agora. O Brasil ainda encontra-se confuso sobre si mesmo e sobre que rumo seguir. Os marcos regulatórios da era digital e a agência encarregada de regulá-los ainda não saíram do chão.

Governos estão migrando para o mundo digital. Não se trata mais de uma opção, mas de um imperativo. Por um lado, precisam acompanhar a sociedade e o mercado. Mas não podem se dar ao luxo de deixar para trás gerações e segmentos sociais desconectados. E estes grupos não param de crescer. Alguns setores, como a área de gestão do Ministério da Economia e os militares estão atentos para os desafios tecnológicos, como governo digital e ciber-segurança.

Isso é um fato promissor. Mas o assunto é maior do que isso. Precisa perpassar todo o setor público, em diálogo intenso com a sociedade, com a academia, com o mercado e com o ambiente internacional. O futuro está passando. Entre perdas e danos, nossos governos estão fazendo as escolhas que modelarão nossas próximas décadas, com e sem a nossa participação.

Os custos de oportunidade de nossa eventual desatenção podem comprometer o desenvolvimento econômico e social do país. A hora é agora e o país precisa se mover sem depender da dinâmica do governo do dia para integrar-se nesta jornada dos países líderes globais.

Francisco Gaetani é professor da Ebape/FGV e ex-secretário executivo dos Ministérios do Meio Ambiente e Planejamento.

Virgilio Almeida é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.