Confira a matéria de Ana Lucia Azevedo para o jornal O Globo, publicada em 7 de janeiro de 2019:

Cientistas brasileiros descobriram um caminho para prevenir e potencialmente tratar o Alzheimer, a doença neurodegenerativa que mais avança no mundo à medida que a população envelhece e para a qual não há cura. A chave é o exercício físico. A irisina, um hormônio produzido pelos músculos quando praticamos exercícios, protege o cérebro e restaura a memória afetada pela doença, revelou o estudo.

Batizada em alusão à mensageira dos deuses, Íris, a irisina era associada apenas à queima de gordura. Mas um grupo de cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) descobriu que, no cérebro, ela é importante para que os neurônios possam se comunicar e formar memórias.

A descoberta tem duas implicações. A primeira é que já se pode dizer que o exercício, mesmo que ainda exista muito o que estudar, contribui para a prevenção do Alzheimer.

— Ainda não sabemos a dose certa de exercício (para que haja esse efeito). Mas ele certamente é fundamental para o metabolismo do cérebro e das doenças provenientes do desequilíbrio deste, como o Alzheimer. Temos que caminhar, nadar, pedalar ou correr. O tipo de exercício não importa. O fundamental é se exercitar, sempre, tornar isso parte da vida, rotina. Não é fácil, mas compensa — afirma Fernanda de Felice [membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências (ABC), entre 2008 e 2013], uma das coordenadoras do estudo conduzido pelos institutos de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis e de Biofísica Carlos Chagas Filho, ambos da UFRJ, e da Queen’s University, no Canadá.

Possibilidade de remédios

O outro desdobramento mais distante da pesquisa publicada numa das mais importantes revistas científicas do mundo, a “Nature Medicine”, é a possibilidade de desenvolver medicamentos à base de irisina ou de seus mecanismos para pessoas que estão com a doença ou que não podem fazer exercícios, como deficientes físicos.

— O exercício, por liberar irisina, atua duplamente: na prevenção da perda de memória e na restauração da que foi perdida — observa Sérgio Ferreira [membro titular da ABC], que é outro autor do trabalho e professor dos institutos de Biofísica e de Bioquímica Médica da UFRJ.

A origem do estudo está nas pesquisas de Felice, neurocientista da UFRJ e da Queens’s University, no Canadá, sobre a associação entre os hormônios e o Alzheimer. Há dez anos, ela começou a obter os primeiros indícios da relação entre este tipo mais comum de demência e o diabetes. Os diabéticos, especialmente os do tipo 2, têm maior risco de desenvolver a doença, causadora da resistência à insulina, que no cérebro também está associada à comunicação entre os neurônios. O estudo com a irisina, que também atua sobre o metabolismo cerebral, foi um desdobramento dessas pesquisas.

O metabolismo cerebral é uma caixa que a ciência mal começou a abrir. Dentro dela, está a chave para compreender como o cérebro conversa o tempo todo com o restante do organismo.

— Se quisermos entender uma doença com a complexidade do Alzheimer, precisamos compreender a integração entre o cérebro e o corpo. O cérebro não funciona sozinho, não flutua no vácuo — diz Sérgio Ferreira.

O exercício funciona com um gatilho para os músculos liberarem irisina. Ela vai para o tecido adiposo branco, a chamada gordura ruim, e a transforma em bege, uma forma intermediária de gordura menos nociva. A irisina é uma “maestrina” do metabolismo. Ela atua positivamente sobre o equilíbrio de ossos e pulmões, e o grupo de brasileiros comprovou agora que também está ativa no cérebro.

Quem tem Alzheimer tem menos irisina

A primeira descoberta do grupo foi ver que havia menos irisina no cérebro de pessoas com Alzheimer. Isso foi feito com análises do post-morten de tecido cerebral e de líquor de pacientes vivos. O achado foi confirmado no cérebro de camundongos geneticamente alterados para desenvolver a doença humana.

O prosseguimento do estudo com roedores mostrou que a concentração de irisina afeta a memória. Menos irisina, menos memória. E se os animais doentes receberem irisina, a memória é recuperada.

O terceiro passo foi mostrar que a irisina também é produzida pelo cérebro, e não apenas pelos músculos. Isso foi feito com experiências com camundongos levados a nadar uma hora por dia durante cinco semanas. O exercício não só aumentou a concentração de irisina como também tornou os animais mais aptos a aprender.

E então veio a dúvida. Será que era apenas a ação da irisina ou havia alguma outra substância ativada pelo exercício. Camundongos foram mais uma vez geneticamente alterados para se tornarem insensíveis à irisina. Nesses roedores, o exercício não fazia efeito. Foi a comprovação de que sim, era ela a substância ligada ao exercício que atuava sobre a memória.

— O próximo passo será saber o quanto de exercício ao longo da vida é necessário para conseguir uma ação protetora contra o Alzheimer — afirma Sérgio Ferreira.

Os cientistas também não descobriram ainda como a irisina atua para impedir que as placas de beta-amiloide características da doença ataquem os neurônios.

Além da possibilidade de prevenir a demência, o estudo abre uma porta para desenvolver uma nova droga. A classe de drogas mais recente contra a doença têm 15 anos — e não resolve. Seus efeitos são temporários, efetivos apenas para metade dos pacientes, e os remédios podem ser usados apenas  por cerca de um ano e meio.

Risco para 25% dos que têm mais de 75 anos

A necessidade de desenvolver um remédio eficiente aumenta no ritmo em que a expectativa de vida se eleva. Segundo Ferreira, 25% das pessoas com mais 75 anos correm risco de desenvolver Alzheimer. Esse percentual sobre para 40% para quem tem mais de 85 anos.

Esta é uma doença cruel, de evolução lenta, terrível para o paciente e a família, destaca Ferreira, cujo pai morreu devido ao Alzheimer.

— Eu havia começado a estudar a doença quando meu pai foi diagnosticado. Parei essa linha de pesquisa por alguns anos, mas acabei voltando — conta ele, que estuda o Alzheimer há 20 anos.

O trabalho só foi possível porque Fernanda de Felice conseguiu financiamento no exterior. Após amargar quatro anos sem dinheiro para a pesquisa, ela foi para o Canadá, onde conquistou um financiamento de US$ 150 mil — o equivalente a mais de R$ 550 mil — da Sociedade Canadense de Alzheimer. Foi a vitória do mérito, destaca ela. Apenas três bolsas foram concedidas para 200 concorrentes de alto nível.

— Venci mesmo não sendo canadense. Sem esse dinheiro, o trabalho não existiria, mesmo com o pagamento do Brasil a bolsas de alunos(concedidas pela Faperj e pelo CNPq) . Essas não são pesquisas baratas. Medicina custa caro — frisa ela.

Sérgio Ferreira diz que a falta de investimento no Brasil faz com que muitas descobertas não tenham desdobramentos:

— Praticamente não se faz pesquisa clínica no Brasil. Dependemos do que vem do exterior. Isso acontece porque nunca houve apoio oficial para a pesquisa. Ela custa caro, mas, se o Brasil quer inovar e ser independente da área farmacêutica, deveria investir.

Quando escreveu que uma mente sã num corpo saudável (do latin, “mens sana in corpore sano”) era o que se deveria desejar na vida, o poeta romano Juvenal pensava em outras coisas. Dois mil anos depois a ciência prova que ele estava certo.

Doença afeta 35 milhões no mundo

O mal de Alzheimer é uma doença neurodegenerativa incurável e a mais comum causa de demência. Ela provoca perda da memória e da capacidade cognitiva. Os pacientes podem sofrer variações de humor, ficar desorientados e ter delírios.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 35 milhões de indivíduos no mundo têm a doença. No Brasil, há 1 milhão de pessoas afetadas.

A evolução da doença até a morte costuma levar, em média, de oito a dez anos.

No cérebro dos pacientes, há acúmulo de placas de proteína beta-amiloide. Essas placas causam a morte dos neurônios e causam o declínio das funções cerebrais. Os remédios existentes apenas amenizam os distúrbios e fazem efeito por pouco tempo.