hernandes.jpgA microscopia e a biologia celular têm andado de mãos dadas ao longo da história. O desenvolvimento tecnológico que permitiu os avanços dos microscópios permitiu também que as pesquisas em células fossem aprimoradas. “O desenvolvimento da biologia celular deve muito a microscopia e essa, por sua vez, se desenvolveu em função de atender demandas da biologia celular”, explicou Hernandes Carvalho, biólogo e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ao lado de Kildare Miranda, membro afiliado da ABC entre 2013 e 2017 e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele explicou como se deu a evolução da microscopia ao longo da história e citou importantes cientistas que fizeram contribuições para essa área. Hernandes esclareceu que os microscópios surgiram e passaram a ser desenvolvidos no século XVI.

No século XX, a técnica avançou para a microscopia de contraste de fase, na qual a luz atravessa diferentes quantidades de matéria e gera imagens por diferenças nos índices de refração. Além deste tipo, havia ainda o microscópio de contraste interferencial, que também permitiu a observação de células vivas, gerando imagens de alto contraste. Em 1930, o alemão Ernst Ruska chegou à microscopia eletrônica que, utilizando feixes de elétrons, alcançava resolução superior àquela do microscópio óptico e foi rapidamente empregada na área da biologia. “O interessante da técnica é que ela permite segmentar o elemento de interesse. A microscopia confocal permitiu o uso da tridimensionalidade para analisar diferentes células e tecidos.”

kildare.jpgJá no século XXI, foram desenvolvidas e incorporadas nas técnicas de super resolução, a criomicroscopia eletrônica e importantes contribuições no campo da biologia celular, como o transporte vesicular e a autofagia. Miranda lembrou que as invenções foram de extrema importância e renderam o prêmio Nobel aos seus inventores. O biólogo escocês Richard Henderson, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, os biofísicos Joachim Frank, alemão radicado na Universidade Columbia, Estados Unidos, e Jacques Dubochet, da Universidade de Lausanne, na Suíça, levaram o Nobel de Química em 2017 pelo desenvolvimento da criomicroscopia eletrônica, que permitiu enxergar a estrutura atômica tridimensional de moléculas biológicas.

Em 2014, os inventores das técnicas de super-resolução, Eric Betzig, Stefan Hell e William Moerner, já haviam ganhado o mesmo prêmio pelas suas criações. “Com a microscopia, o nível de resolução subiu muito. Ela superou uma série de outras técnicas”, explica Kildare Miranda, reforçando a importância da invenção que foi um marco na biologia celular.

Câncer e o microambiente tumoral

Cientista do A.C. Camargo Cancer Center, Vilma Regina Martins apresentou dados históricos e recentes da comunidade científica que mostram o papel da matriz extracelular no processo tumoral e nas possibilidades de inibi-lo. A matriz extracelular é uma rede estrutural complexa não celular, que envolve e dá suporte às células do tecido conjuntivo. Ela auxilia ainda na ligação das células para a formação dos tecidos e tem uma função importante no controle do crescimento e na diferenciação celular.

vilma.jpgAlém das funções básicas para as células, a matriz extracelular compõe o microambiente do tumor, segundo Martins, interagindo com todas as células que estão neste contexto. Ela explicou que, para que o estudo dessa estrutura traga mais conhecimento, é necessário analisar tecidos provenientes de tumores.

Outro conceito importante para o entendimento do microambiente tumoral foi predito pelo cientista Stephen Paget (1855-1926), que foi chamado de “semente em solo fértil”. Segundo ele, a célula tumoral buscaria um ambiente propício para o seu crescimento e posterior metástase (propagação para outros órgãos do corpo).

Martins mostrou que a célula do tumor primário pode adquirir capacidade de invasão do tecido original, entrando na circulação e encontrando o sitio onde vai se alocar gerando uma metástase. Para a pesquisadora, o estudo do microambiente tumoral tem muito a enriquecer e acrescentar ao avanço da pesquisa em câncer. Ela defendeu ainda que, no país, esse tipo de pesquisa é mais do que necessária. “No Brasil, o câncer é a segunda maior causa de morte, perdendo apenas para as doenças cardiovasculares.”

Por dentro do tecido muscular

milmil.jpgProfessora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Claudia dos Santos Mermelstein é bióloga e chefe do Laboratório de Diferenciação Muscular e Citoesqueleto. Ela pesquisa a formação de tecidos musculares e a diferenciação muscular, com foco na participação do colesterol e das rafts lipídicas (regiões especializadas da membrana plasmática) nesse processo.

Claudia apresentou algumas técnicas que o seu grupo de estudo usa para analisar a contração muscular e o desenvolvimento das células do tecido muscular esquelético. Ela explicou que os mioblastos – células embrionárias do tecido muscular – se fundem no momento de formação dos miotubos formados por elas. “A célula do tecido muscular esquelético é uma célula alongada. As mudanças na membrana dos mioblastos são essenciais para essa fusão’, explicou Mermelstein.

A pesquisadora estuda a influência das proteínas e lipídios da membrana na fusão de mioblastos. O grupo teve como desafio entender qual é o papel dos micro domínios de membrana, chamados de rafts lipídicas. “Essas estruturas têm 50% a mais de colesterol e esfingolipídios do que o restante da membrana plasmática”, pontuou ela.

Ao longo da pesquisa, o grupo liderado pela pesquisadora notou que a desorganização destas estruturas chamadas rafts é capaz de aumentar o número de mioblastos, que proliferam e, em seguida, se fundem. “Por essas análises, nós fomos levados a uma outra hipótese: a de que a desorganização das rafts é também capaz de mudar a expressão gênica durante a diferenciação do músculo esquelético.”

Para Mermelstein, o estudo que se iniciou com a pesquisa da membrana plasmática mostrou a importância de uma análise interdisciplinar. “Iniciamos uma pesquisa sobre o papel das rafts lipídicas com a pesquisa da estrutura da membrana plasmática e acabamos chegando ao papel do colesterol e das rafts na sinalização celular que controla a formação do tecido muscular. Isso nos mostra como os fenômenos celulares devem ser estudados de uma forma integrada.”

Biologia celular e estudo de vírus

amilcar.jpgAmilcar Tanuri é pesquisador do Departamento de Genética do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O cientista coordena um grupo no Laboratório de Virologia Molecular e, durante a crise de zika no Brasil, reuniu esforços para entender como o vírus afetava humanos e, principalmente, fetos em mulheres grávidas infectadas.

Tanuri explicou que o vírus da zika é um flavivírus e que, como a maiorias dos vírus, depende das estruturas de um corpo hospedeiro para se desenvolver e se reproduzir. O intuito do grupo era analisar o efeito do vírus nas células alvo dele para, assim, interpretar a patologia do vírus. “Vírus são parasitas genéticos, eles utilizam toda a maquinaria do hospedeiro para se espalhar.”

Algum tempo após o surto de zika ter começado no país, era sabido pelos cientistas que o vírus era capaz de atravessar a placenta e afetar o bebê em formação, prejudicando o desenvolvimento do cérebro e de funções relacionadas. “Tivemos a ideia de usar células neuronais para mimetizar o que acontece no cérebro das crianças e mostrar a ação do vírus.” A ideia, que, a princípio, para o grupo, pareceu inocente, deu resultados.

Os pesquisadores foram capazes de mostrar, usando a biologia celular, que o vírus de origem africana é altamente agressivo para as células, principalmente quando comparado ao vírus brasileiro. Ainda assim, o segundo é capaz de alterar os sistemas de diferenciação celular. “O que o nosso grupo vem trabalhando e tentando entender agora é como se dá a reprodução do vírus na célula. Para isso, nós usamos células de fígado, que é altamente suscetível ao vírus, e buscamos os genes importantes para a replicação dele.”

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