A Diretoria da Academia Brasileira de Ciências homenageia seu ex-presidente, Oscar Sala, recentemente falecido, com a publicação de texto e entrevista realizados pela Profª Amélia Império Hamburger, do Instituto de Física da USP, para o livro Os Cientistas, publicado pela SBPC em 1997.

“As realizações de Oscar Sala são muitas e marcam, pela natureza pioneira e pela fertilidade de desdobramentos, um significado social persistente.

Sala foi um dos primeiros alunos de Gleb Wataghin, que o introduziu, ainda estudante, na pesquisa em física. Formou-se na primeira turma de física, juntamente com Elza Gomide. A convivência na Faculdade de Filosofia formava um ambiente animado e propício a fazer emergir a criatividade dos jovens recrutados por Wataghin na implantação do Departamento de Física da recém-fundada Universidade de São Paulo.

Já assistente de Marcelo Damy, em 1946, Sala foi para os Estados Unidos onde realizou suas primeiras pesquisas em reações nucleares com aceleradores de partículas. Com bolsa da Fundação Rockefeller, trabalhou inicialmente com M. Goldhaber, na Universidade de Illinois, realizando vários trabalhos sobre núcleos isômeros. Foi depois, em 1948, para a Universidade de Wisconsin, onde, com R. Herb projetou o acelerador eletrostático, tipo Van de Graaff, para São Paulo.

Nos Estados Unidos casou-se com Rosa Augusta Pompiglio, Dona Rosinha, que conhecera em Campos do Jordão quando realizava pesquisas em raios cósmicos. Têm os filhos Luiz Roberto, Regina Maria e Thereza Cristina, e seis netos.

A construção e organização de laboratórios experimentais de pesquisas em física nuclear, desde o fim dos anos quarenta e começo da década de cinqüenta, tem sido uma atividade constante de Sala até hoje, aos 76 anos de idade. Nas palavras de seu filho, é sua segunda família.

A orientação desses centros de pesquisa é sua contribuição direta e profícua para a física nuclear no Brasil, para a formação de pesquisadores, muitos dos quais diversificaram, mais tarde, seus campos de trabalho. Uma idéia norteadora dos projetos de Sala é que os laboratórios experimentais são centros de uso e inovação da tecnologia do país e, portanto, núcleos de inserção da pesquisa científica nos setores produtivos da sociedade. Assim tem mantido contatos com indústrias e firmas comerciais específicas, e, a partir do aproveitamento, nos laboratórios, de conhecimentos técnicos especializados disponíveis, promove-se seu aperfeiçoamento.

Entretanto, é importante notar que essa atividade de tempo integral do professor Sala se alimentou e foi alimentada por participações em instituições fundamentais para a comunidade científica brasileira. Por exemplo, a Sociedade Brasileira de Física, para a qual contribuiu na idéia original e na redação dos estatutos. Foi eleito primeiro presidente, na assembléia de fundação, em Curitiba, 1966, e promoveu, em 1967, a primeira eleição geral.

Foi eleito presidente da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência em 1973 e reeleito, exercendo até 1979. Foram gestões que compreenderam anos de intensa atividade intelectual que se desenrolava como arena política em defesa da educação, da ciência e da consciência crítica do país, que estava sob regime militar. Cercado de cientistas representativos da ciência brasileira, Sala mostrou disposição para o diálogo, ao mesmo tempo que rejeitou o arbítrio e a interferência nas questões da ciência.

O desenvolvimento da ciência em São Paulo e no Brasil sempre foi seu lema de atuação. Em suas palavras, nunca se ligou a partido político, nem pertenceu à esquerda ou à direita. Essa posição neutra facilitou a mediação, muitas vezes difícil, com vários governos militares, em defesa da produção científica e na solidariedade a colegas que ficaram em situações de constrangimento.

Dona Rosinha juntou um dossiê de recortes de jornais das reuniões anuais da SBPC, principalmente daquela em 1977, que foi proibida pelo governo militar de se realizar em Fortaleza, e que aglutinou toda a comunidade científica em firme, coesa e decisiva atuação para conseguir realizá-la em São Paulo. São documentos para muita reflexão e apreensão do significado dessas ações coletivas conscientes, em que os mais significativos cientistas brasileiros fizeram juz à sua própria tradição de construção e defesa das condições para a realização e divulgação do trabalho científico no país.

A entrevista de Sala à imprensa, apoiado publicamente pelas variadas manifestações dos cientistas de todo o país, vista de hoje, parece perfeita em sua serenidade e precisão frente às forças da violência e do obscurantismo. Está reproduzida abaixo. Ainda hoje as notícias e as fotos são emocionantes, e é muito provável que aquelas reuniões dramáticas que mantiveram viva e forte a sociedade representativa dos cientistas brasileiros, em nome do direito e da liberdade de se fazer a melhor ciência no Brasil, tenham alicerçado uma abertura política que vinha em curso.

A atuação de Sala na Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo, tem também significado destacado. A Fapesp é uma instituição cuja existência tem ressaltado a vitalidade da comunidade científica paulista. Em 1947 foi votada pela Assembléia Legislativa de São Paulo a criação de fundos para a pesquisa com dotação de 0,5% da arrecadação do imposto sobre o consumo. Em l960, foi implantada por lei, e em 1962 iniciou suas atividades numa estrutura original de poderes autônomos e interdependentes. Em 1969, a Fapesp foi atingida pelo Ato Institucional n° 5, e Sala conta que, atendendo a chamado do professor Ulhoa Cintra, reitor da Universidade de São Paulo e presidente do conselho da Fapesp, assumiu a diretoria científica no sentido de garantir a continuidade da fundação. Sala entranhou-se à estrutura da fundação, tendo passado por vários dos cargos, exercitando sua capacidade administrativa e seu poder de decisão. Foi diretor científico de 1969 a 1974 e presidente do Conselho superior de 1989 a 1993 e sobre essa prática discerne os papéis das várias instâncias de decisões e uma visão sobre a política científica que define como pragmática.

Sala teve papel importante na ligação da comunidade brasileira às redes digitais academicas internacionais, precursoras da atual internet. Segundo Demi Getschko, diretor-presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) , o professor Sala foi fundamental em todo o processo de conexão do Brasil à Internet por meio da FAPESP. A própria parceria com o Fermilab (Fermi National Accelerator Laboratory, nos Estados Unidos), que viabilizou a ligação, só foi possível graças aos contatos do professor. Foi ele que bancou todo o projeto, quem montou a equipe, quem apoiou tudo aquilo.*

Sala foi catedrático da cadeira de Física Nuclear da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e titular, e Professor Emérito do Instituto de Física. Por mais de quinze anos dirigiu o laboratório do acelerador eletrostático Van de Graaff. Participou do projeto e dirigiu a montagem do acelerador Pelletron, inaugurado em 1972. Foi orientador de muitas teses de mestrado e doutorado, nas áreas de espectroscopia e reações nucleares com feixes de partículas pesadas, aceleradores nucleares, ultra alto vácuo e instrumentação. Sobretudo proporcionou condições de trabalho para bolsistas e pesquisadores de outros Estados brasileiros e de outros países. Os laboratórios que conduziu mantiveram sempre atividades de colaboração nacional e internacional, além de ser um lugar de saudáveis interações entre físicos teóricos e experimentais.

Entre os primeiros estudantes que trabalharam na construção do acelerador eletrostático e seus sistemas de controle, encontramos Moysés Nussenzveig, Ernesto Hamburger, Ewa Cybulska, Newton Bernardes, Amélia Império, e, logo depois, Olácio Dietzsch, Betty Pessoa, Fernando Zawislak. Tivemos formação diversificada e disciplinada com Sala, Phillip Smith, John Cameron, Ross Douglas e fomos o grupo pioneiro na montagem da máquina, do equipamento e nas primeiras pesquisas. Sempre vimos Sala trabalhar dez horas por dia no laboratório, acompanhando todos os detalhes de organização, administrando impecavelmente as oficinas, o almoxarifado, as compras, a secretaria, os estudantes, os professores visitantes. Sempre prestigiou o trabalho dos funcionários, administrativos e técnicos, que dão apoio à pesquisa tanto no laboratório como na secretaria, e essa é uma postura que garante a qualidade dos serviços e assegura o ambiente de equipe de trabalho.

Também participou ativamente do CNPq. Sala fundou, em 1974, em Recife, e foi primeiro presidente da Associação Interciência das Américas (1975-1979). Foi ainda presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (1985-1987) e vice-presidente (1981-1991) e presidente (1991-1993) da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu muitas medalhas e prêmios, inclusive da SBPC (1973), o “Moinho Santista”, em 1981, CNPq (1981), Comissão Nacional de Energia Nuclear (1987), e a Grã Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1994).

Como construtor e organizador de laboratórios experimentais de física nuclear, Sala interagiu nas esferas da indústria e comércio que participaram dessas iniciativas. Essas interações trouxeram desenvolvimentos recíprocos inesperados. Um deles é a origem da máquina que está sendo construída atualmente no Instituto de Física. Como contou Sala, há poucos dias, começou com sua viagem à União Soviética no início dos anos 80, como físico e assessor da firma produtora de nióbio no Brasil. A viagem tinha por motivação o interesse dos russos em fazer aço de qualidade especial, contendo esse metal. Estreitaram-se as relações com a firma brasileira e, juntando as idéias da necessidade de outra máquina e de observações em outros laboratórios, se configuram as características de um novo acelerador.

Este perfil de Oscar Sala se encerra com seu depoimento sobre a construção dessa máquina. Uma história que mostra hoje, a surpreendente vivacidade do homem que sofreu sério derrame cerebral há sete anos e se recuperou, com sorte, apoio familiar sem reservas e outros apoios importantes, e sua grande força, determinação e inteligência frente à própria vida.”