Primogênito de uma família mineira do princípio do século, Hiss Martins Ferreira nasceu em 1920 e foi criado em São João del Rei, Minas Gerais onde seu pai exercia a medicina, suplementando seu orçamento familiar com um laboratório de análises clínicas, além de ministrar aulas de biologia no Colégio Santo Antônio de frades franciscanos holandeses. Lá freqüentou o ginásio e graduou-se no final de 1935, quando foi mandado para o Rio de Janeiro.

Formado em Medicina pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, atual UFRJ, no ano de 1943, continuou as suas funções de técnico de laboratório na disciplina de Física Biológica, posteriormente transformada em Instituto de Biofísica, onde tornou-se livre-docente em 1954 e permaneceu, lecionando e realizando trabalhos de pesquisa experimental.

O gosto pela experimentação esteve sempre dominante desde os tempos de estudante, estimulado pelas leituras de seu pai que, numa velha cidade do interior do país, assinava os Anais do Instituto Pasteur. Sua grande oportunidade para ser pesquisador ocorreu ao cursar Medicina ao tempo em que Carlos Chagas iniciava, com todo entusiasmo, a construção da sua versão do “Instituto de Manguinhos” na Praia Vermelha. Teve, então, a sorte de conviver com um grupo de pesquisadores brasileiros e internacionais de primeira linha, que Chagas escolheu a dedo para constituir a base sólida necessária ao desenvolvimento do núcleo de pesquisa que começara a formar.

Com o correr dos tempos, focou o sistema nervoso como seu objeto científico. Durante vários anos acompanhou as experiências de Chagas com o poraquê (peixe elétrico). Quando ficou claro que o mecanismo da eletrogênese das descargas elétricas deste peixe era análogo ao das fibras nervosas, dirigiu seu interesse para a atividade elétrica do cérebro em repouso e durante as crises epilépticas.


Aristides Pacheco Leão e Hiss Martins-Ferreira

Nesta época, houve uma nova conjunção feliz em suas pesquisas: iniciou uma parceria científica com Aristides Pacheco Leão, e daí surgiu o primeiro trabalho que publicaram juntos, em 1953, nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, sobre a impedância elétrica do córtex cerebral durante a depressão alastrante. Este fenômeno havia sido descoberto por Aristides em 1944, tornando-se conhecido como “onda de Leão”, assunto de grande interesse internacional em fisiopatologia de síndromes paroxísticas do Sistema Nervoso Central. Tentando entender a depressão alastrante, Hiss Martins-Ferreira e Aristides Leão, junto com Gustavo de Oliveira-Castro, puderam acompanhar de perto todas as idéias e cenários propostos para explicar o funcionamento do sistema nervoso nestas últimas cinco décadas.

Foi Catedrático da Biofísica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde trabalhou entre 1955 e 1970. Também atuou como Professor Titular de Biofísica da Faculdade de Medicina de Petrópolis por 20 anos, de 1969 a 1989.

Membro Titular da área de Ciências Biomédicas da ABC desde 1952, teve participação ativa na Diretoria em diversas ocasiões. Entre as diversas homenagens que recebeu, destacam-se o Prêmio Alfred Jurzykowski, da Academia Nacional de Medicina, em 1967 e o Prêmio Abifarma 1977, da Associação Brasileira de Indústrias Farmacêuticas. Foi condecorado com a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico pelo Presidente da República do Brasil, em 1995, e três anos depois com a Grã-Cruz da mesma Ordem.

Hiss Martins Ferreira faleceu em 2 de setembro de 2009, no Rio de Janeiro.

Nas palavras do Prof. Rubem Carlos Araújo Guedes, Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC), o falecimento do Professor Hiss Martins-Ferreira é uma grande perda para a Neurociência brasileira e mundial.

“Desde o contato inicial com o Dr. Hiss, como o chamávamos, sempre me impressionou o seu dinamismo e o entusiasmo com que falava dos seus experimentos, resultados e idéias a respeito do fenômeno da depressão alastrante da atividade elétrica cerebral (DA)”.

O Prof. Rubem Guedes o conheceu em 1972, quando ingressou no mestrado do Instituto de Biofísica da UFRJ, ainda situado no belo prédio da Praia Vermelha. “Inúmeras foram as vezes em que ao final do dia a conversa se prolongava, em torno dos mais variados temas científicos, dos quais a DA sempre tinha destaque. Vez por outra, o Professor Aristides Leão, já então presidente da Academia Brasileira de Ciências, vinha ao laboratório e a conversa ganhava mais animação e colorido”, relembra Guedes.

Em 1974, ocorreu a mudança do Departamento para a Cidade Universitária, na Ilha do Fundão que prolongou a convivência de Rubem Guedes com o admirável homem de ciência que foi Martins-Ferreira. Retornando a Recife, Guedes conta que teve a oportunidade de convidá-lo para compor a banca examinadora da defesa da primeira dissertação de mestrado que orientou e conta que o Prof. Hiss participou com a mesma alegria e entusiasmo que eram a tônica da sua presença nos laboratórios da UFRJ.

Ciceroneou o Professor Hiss, quando da sua visita ao Max-Planck Institute of Biophysical Chemistry, na Alemanha, onde Guedes cursava um pós-doutorado. “As conferências que ele então proferiu causaram uma impressão muito positiva e contribuíram para divulgar a DA, que naquela época era pouco conhecida por lá.”

Ao longo dos anos, Guedes e Martins-Ferreira continuaram mantendo contato. “Sempre que eu ia ao Rio, passava em seu laboratório, excelente oportunidade para proveitosas conversas sobre as novidades acerca da DA”. Mesmo aposentado, o Prof. Hiss continuou trabalhando diariamente no laboratório; ultimamente, duas ou três vezes por semana.

“Para nós, um exemplo de homem devotado à ciência. Que seu nobre perfil possa servir para nortear as novas gerações de neurocientistas do nosso país”, concluiu o Prof. Rubem Guedes.