Roberta Jansen escreve para O Globo:

A corrupção e as desigualdades sociais remontam ao Brasil império e à formação das próprias monarquias ibéricas, aponta o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho. Nesta entrevista ao Globo, ele fala sobre as raízes profundas de escândalos cada vez mais corriqueiros e banalizados no país.

Membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências, Carvalho acaba de ser agraciado com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto, considerado a mais importante honraria na área de ciência e tecnologia do país.

O recente escândalo das passagens aéreas no Congresso é mais um numa enorme lista de corrupção. Trata-se de algo diretamente relacionado à própria história do nosso país? Ou se tem essa impressão por conta da liberdade de imprensa e do aumento das denúncias? A corrupção é igual em todos os países?

Certamente não é igual em todos os países, sobretudo os protestantes, em que a ética pública é mais rigorosa. Mas é comum aos países de origem ibérica por conta do patrimonialismo, em que a distinção entre o público e o privado é pouco nítida. A distinção que existe é de que ou é meu ou é do Estado, e, se for do Estado, eu posso meter a mão. A ideia de que o público é de todos os que pagam impostos não faz parte da nossa cultura.

Por quê?

Isso ocorre pela própria formação das monarquias ibéricas, caracterizadas por um estado intervencionista e protetor. Uma pesquisa da qual participei há uns anos mostrou que os brasileiros não têm grande consciência de seus direitos civis e políticos, mas conhecem bem seus direitos sociais, que é exatamente aquilo que o Estado provê: saúde, educação etc. É diferente dessa outra tradição, em que o Estado é o produto da ação dos indivíduos, em que há a ideia de um pacto entre o cidadão que paga impostos e o Estado que devolve em serviços. Essa nossa tradição dificulta a criação de uma ética no serviço público.

Mas sempre foi tão disseminada?

Não. Até 1930 era bem mais rigoroso. No Império sem dúvida alguma era mais rigoroso, até porque o imperador estava sempre vigilante.

O senhor acha que no Império realmente havia menos corrupção? Ou ela só não era tão divulgada como hoje?

Havia algum tipo de clientelismo, claro, característico da nossa tradição, mas não grandes escândalos. Até porque era um grupo menor, não havia praticamente povo na política, só elite, não mais que 10% da população tinham direito ao voto

E o que mudou a partir de 1930?

A partir de 1930, e sobretudo depois de 1945, com o fim da ditadura e o processo de democratização, o número de eleitores aumentou muito, e muito rapidamente. Em 1946, para se ter uma idéia, 13% da população votavam. Hoje são 70%. Ou seja, houve uma enorme invasão de povo na política. Nada contra, tudo a favor. Mas foi uma mudança radical. O outro ponto é que 50 milhões de pessoas começaram a votar durante a ditadura militar. Ou seja, estamos ainda nos ajustando ao sistema representativo.

E como isso leva à corrupção?

Boa parte da elite de hoje foi formada durante a ditadura, período em que várias instituições eram democráticas só na fachada, e reinava um clima de impunidade, com a imprensa censurada. A corrupção depende também do tamanho do Estado, e ele cresceu muito nos últimos tempos. Então, de um lado você tem a falta de formação de uma elite política pouco responsável, por conta da ditadura. E, de outro, a imprensa livre de hoje, com mais transparência, mais denúncia.

Mas não estaria havendo uma banalização da corrupção? A impressão que se tem é de que ninguém mais se choca, ninguém se revolta.

O governo Lula tem muitos méritos, mas trata várias dessas práticas com condescendência, o que, de certa forma, as naturaliza e reduz a reação. Ninguém estranha mais o que está acontecendo. A consequência é uma desmoralização enorme, principalmente do Legislativo, mas também do Judiciário e do Executivo. Eu me pergunto como esse sistema pode sobreviver. Não deixa de ser um risco para o amadurecimento democrático.

Mas a reação da população não deveria ser mais raivosa? Sobretudo numa sociedade ainda tão desigual?

Uma das políticas para reduzir a desigualdade, que era o bolsa escola no governo de FH e agora virou o bolsa família, atinge quase um terço da população do país. Isso gera duas opiniões: a pública e a popular. A pública é aquela veiculada na imprensa, por uma parcela da população que tem um nível de escolaridade mais alto e que, em geral, não depende das benesses do governo. Mas para os que dependem diretamente das políticas públicas é diferente. Tenho certeza de que a maioria dessas pessoas nem concorda com essas práticas corruptas, mas age por pragmatismo. O que é totalmente justificável, já que elas vivem num mundo de necessidades. Então é por isso que aquele sujeito (o deputado Sérgio Moraes, PTBRS) diz que está se lixando para a opinião pública. É bem possível que ele se reeleja porque ele é execrado pela opinião pública, mas não necessariamente pela popular. Veja, a democracia é um luxo que funciona bem com igualdade.

O senhor vislumbra solução a curto prazo?

Vai demorar. De um lado, você tem uma impunidade escandalosa. Um Congresso que não pune ou pune de forma inadequada. Esse foro especial é um absurdo. Isso favorece o crescimento das práticas corruptas. Só vai melhorar quando os eleitores passarem a punir com o voto, o que ainda vai levar um tempo. Mas a gente não deve se irritar com isso. É preciso lembrar que o nosso processo de democratização foi muito rápido se comparado ao de outros países, que levaram séculos.

A oposição povo x elite sempre foi uma marca forte da nossa história. Porquê?

No Império, a elite política era “uma ilha de letrados num mar de analfabetos”, conforme uma expressão que usei numa dissertação. Naquele período, 85% da população era de analfabetos, enquanto que toda a elite tinha curso superior. Isso só começa a se alterar a partir de 1930 e, mais substancialmente, a partir de 1945, como eu disse antes, com a democratização e o aumento do número de eleitores. Durante o regime militar, um período de industrialização muito pesada, houve uma grande migração do campo para a cidade o que também ajudou, de certa forma, a reduzir a desigualdade porque a situação no campo era muito precária. Mas o país ainda apresenta um dos mais altos índices de concentração de renda do mundo.

O senhor acha que as cotas poderiam rever desigualdades históricas como a dos negros?

Não acho que cotas sejam a forma mais adequada. Elas engessam muito a situação. Eu defendo ações afirmativas para levar benefícios a setores historicamente prejudicados, como ocorre nas grandes universidades americanas com sucesso. Falar em cotas raciais é ainda mais complicado. Porque se joga fora a grande tradição de miscigenação do país, o que sempre diferenciou o Brasil dos EUA e da África do Sul. Não, a miscigenação não acabou com o preconceito. Mas eu não acho que a melhor forma de combater um preconceito racial seja reforçando a raça.

Do ponto de vista histórico o que levou a essa diferenciação que o senhor aponta?

O ponto-chave, como indica Joaquim Nabuco, é que a escravidão no Brasil foi mais arguta, não obedeceu à linha da cor. Ela conseguiu romper essa linha e fazer com que libertos e mulatos também tivessem escravos. Isso teve um efeito bem ruim, enraizando a escravidão mais profundamente na sociedade. Mas o lado positivo é que não houve a estratificação da linha da raça, que não ficou tão marcada quanto nos EUA.

Até que ponto a chegada de Lula à Presidência rompeu essa tradição histórica da formação da elite nacional?

Quando Lula foi eleito, eu usei a expressão “um grande orgasmo político nacional”. Era gente diferente no poder, gente mais próxima do povo. Era um partido que se diferenciava dos demais por ter uma ideologia e por defender uma ética política. Mas a verdade é que para vencer, para passar daquele patamar histórico de 35% dos votos, Lula teve que assumir determinados compromissos, sobretudo com a manutenção da política econômica do governo anterior. No escândalo do mensalão, ficou claro que a chegada ao poder tinha corroído a tão trombeteada ética petista, e que as posições ideológicas do PT estavam sendo abandonadas. O escândalo o colocou no mesmo saco dos demais. O que, na verdade, é só mais uma evidência dessa nossa forte radição clientelista. Mas há muitos pontos positivos no governo Lula

Quais?

A ampliação do bolsa família e a sua enorme capacidade de comunicação com a opinião popular. Ele hoje é imbatível. E está diante de um teste muito sério para a consolidação democrática. Frente a ameaça à candidatura de Dilma (Rousseff) por conta de sua doença, Lula certamente sofrerá fortes pressões para um terceiro mandato. Vamos ver se ele vai resistir à tentação. Se resistir, ele se firmará como estadista e fará uma grande contribuição à consolidação democrática. Se ceder, será um retrocesso grande. Ele se aproximará dos Chávez da vida.

(O Globo, 23/5)