Os avanços na tecnologia e o trabalho árduo de pesquisadores fizeram a compreensão sobre o funcionamento do cérebro dar um salto na última década maior do que todo o conhecimento que se acumulou nos cem anos anteriores. A avaliação é de Ivan Izquierdo, um verdadeiro decano entre os neurocientistas, com mais de 50 anos dedicados à área, durante os quais publicou cerca de 700 artigos em periódicos científicos que tiveram quase 23 mil citações.

Argentino de nascimento e naturalizado brasileiro em 1981, Izquierdo é o grande homenageado da edição deste ano do Congresso Mundial Sobre Cérebro, Comportamento e Emoções, que ocorre em Buenos Aires, na Argentina. O evento, multidisciplinar, visa a unir áreas desde a ciência básica até a prática clínica na busca por mais entendimento e melhores tratamentos de transtornos mentais.
“Descobrimos aspectos interessantes sobre o funcionamento mais fino do cérebro, demonstrando em detalhes o papel de muitas regiões cerebrais, não só em que processos elas participam mas também como participam por vias químicas, elétricas e biológicas. Sabemos bem mais sobre grandes processos nervosos como a memória, a percepção, o sono, as áreas envolvidas neles e seus mecanismos íntimos”, diz Izquierdo, coordenador do Centro de Memória do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (InsCer-PUCRS) e pesquisador do Instituto Nacional de Neurociência Translacional. “Avançamos mais na neurociência nos últimos cinco a dez anos do que nos cem anos anteriores”.
Izquierdo destaca que esses avanços levaram a uma mudança no antigo entendimento de que o cérebro tem regiões dedicadas exclusivamente a funções específicas. Segundo ele, as muitas partes do órgão, na maioria das vezes, atuam em conjunto, apresentando uma grande capacidade de plasticidade, isto é, de mudar de função se necessário, como no caso de danos físicos por um ferimento ou um derrame.
“São poucas as regiões do cérebro responsáveis por uma coisa só, a maioria tem múltiplas funções”, explica o cientista, que se dedica à pesquisa sobre a memória. “Uma memória é construída ao mesmo tempo em vários lugares do cérebro, com cinco, seis ou mais representações de cada memória. Do ponto de vista prático, isto é muito importante, pois assim dificilmente alguém morre ou perde a cognição por completo depois de um acidente vascular cerebral (AVC). É a neuroplasticidade, que nós, neurocientistas, definimos como a capacidade de um grupo neuronal, ou mesmo de uma célula isolada, de mudar sua função, reforçá-la ou diminuí-la conforme a necessidade.”
Apagar memórias

Diante disso, Izquierdo critica sugestões de estudos recentes segundo os quais seria possível “apagar” memórias, especialmente de eventos ruins, como forma de tratar condições a exemplo da Síndrome de Estresse Pós-Traumático. Ou seja, cai por terra a hipótese proposta no filme B rilho eterno de uma mente sem lembranças (2004), no qual personagens curam as dores apagando a memória guardada de seus amores perdidos.
“Não passa de um invento jornalístico-cinematográfico”, afirma o cientista. Supressão de memórias é quase impossível. O que é possível fazer é evitar que uma memória se expresse, inibir a recuperação de uma determinada lembrança. A única forma conhecida de se esquecer de fato uma memória é a falta de uso. Com isso, as sinapses entre neurônios envolvidas numa memória se atrofiam e aquela memória vai desaparecendo com o tempo.
Esse mecanismo de esquecimento, no entanto, não seria de uso prático para memórias traumáticas, explica Izquierdo. Isto porque esse tipo de lembrança, a chamada “memória do medo”, é extremamente forte e facilmente evocável, tanto que é ela que serve de base para os estudos dos processos por trás de sua formação em modelos animais. E foi essencial para a própria sobrevivência de nossa espécie.
“A memória do medo é a que nos mantêm vivos”, explica o pesquisador. “Sem ela, nossos antepassados teriam sido comidos nas selvas africanas, e, hoje, nós morreríamos atropelados por um ônibus ao atravessar a rua”.
Segundo Izquierdo, os problemas surgem justamente quando esse tipo de memória do medo começa a dominar nossas vidas, sendo evocada e provocando sentimentos de pânico em situações que não têm nada a ver com o evento traumático que a formou. Nestes casos, diz, a única opção de tratamento conhecida até agora é a chamada “extinção”. Nesta terapia, o paciente é exposto progressiva e repetidamente aos estímulos que levaram à criação da memória ruim, mas sem o trauma, o que acaba por dissociá-lo da sensação de medo.
“Com a extinção, a memória continua, mas o trauma não está mais lá”, esclarece o especialista. “Isso tudo exige um equilíbrio delicado no tratamento com um psiquiatra”.