Leia artigo do professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Felipe Klein Ricachenevsky, membro afiliado da ABC para o período 2021-2025, publicado no blog Ciência Fundamental, do Instituto Serrapilheira, na Folha de S. Paulo, em 4 de maio:
 
A maioria de nós já teve essa experiência: fazer uma trilha e no caminho encontrar um mamífero, um réptil, uma ave inesperada. Apesar de ter completado o percurso outras vezes, aquele dia foi diferente: o animal deixou tudo melhor. O que quase nenhum dos trilheiros nota, no entanto, é a presença de árvores, arbustos e pequenas plantas, muitas vezes igualmente raras, tão (ou mais?) importantes quanto os animais, e com propriedades diferentes e interessantes. É o que chamamos de cegueira botânica.

Ao vermos um animal em seu ambiente natural, cercado de plantas, nosso cérebro o destaca, porém transforma as plantas em uma massa verde amorfa. É compreensível: nos conectamos facilmente com o comportamento animal, enquanto os vegetais, com seu crescimento lento, movimentos pouco perceptíveis e organização corporal muito diferente, parecem quase alienígenas. O diretor Steven Spielberg, em conversa com o astrofísico Neil de Grasse Tyson, diz ter pensado o personagem E.T. como planta, mas acabou fazendo alterações para gerar empatia, tornando-o mais parecido conosco.

Plantas têm uma intrincada relação com a história da humanidade. No livro Plantas e civilização, o biólogo Luiz Mors Cabral, professor da Universidade Federal Fluminense, relata como elas participaram de alguns eventos históricos. A descoberta do rio Amazonas (pelos europeus, pois os povos nativos o conheciam havia tempos) ocorreu porque exploradores buscavam valiosas “árvores de canela”, embora essas plantas não existissem na América do Sul (havia apenas uma cujo casco cheirava a canela). No século 19, a massiva migração da Irlanda, em especial para os Estados Unidos — não à toa Boston tem uma das maiores festas de St. Patrick’s Day do mundo, e o time de basquete da cidade é o Celtics —, foi motivada por uma doença nas batatas, tubérculo então crucial para a alimentação dos irlandeses.

Já em Sob o efeito das plantas, Michael Pollan sugere que o café – a cafeína, especificamente, nosso vício quase universal – pode ter acelerado o Iluminismo e o desenvolvimento da ciência moderna. Como água potável era difícil de armazenar sem ser logo contaminada, consumia-se cerveja e vinho, pois o álcool impedia o crescimento de bactérias. O efeito adverso era a dificuldade em enfrentar um dia de trabalho e estar bem hidratado. O hábito do café, bebida fervida (e, portanto, estéril) ofereceu uma alternativa, com a vantagem de aumentar a energia e o foco, e sobretudo manter os indivíduos sóbrios. Talvez não por acaso os coffee shops britânicos eram locais onde vários expoentes intelectuais da época se encontravam para discutir ideias que contribuíram para o Iluminismo.

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Como explica Yuval Noah Harari no livro Sapiens, a domesticação de algumas plantas permitiu que alimentássemos um número maior de pessoas, ainda que com uma nutrição mais restrita. Enquanto modificávamos plantas de trigo, milho, arroz, batata, tomate, ervilha, feijão – até que produzimos novas espécies, agora dependentes de nós, e nós delas –, criamos vilarejos e posteriormente cidades. A domesticação de plantas ocorreu entre 10 mil e 3 mil anos atrás, e hoje são os vegetais que sustentam nossa segurança alimentar.

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A fotossíntese também produz como subproduto oxigênio (O2), essencial para grande parte da vida na Terra. Na verdade, quando esse tipo de fotossíntese surgiu na Terra, há cerca de 2 bilhões de anos, os organismos que a utilizavam foram tão bem-sucedidos que se multiplicaram rapidamente, causando um excesso de O2 na atmosfera. O acúmulo levou à extinção em massa, e apenas aqueles organismos que sabiam lidar com o O2 sobreviveram. Ou seja, o Grande Evento de Oxidação mudou a história evolutiva, e sem ele talvez nós, que dependemos de oxigênio, não estivéssemos aqui.

As plantas estão no centro de uma das principais questões que ameaçam a mesma civilização que ajudaram a criar. As mudanças climáticas são em grande parte causadas pelo uso massivo de combustíveis fósseis. A origem deles? Fotossíntese antiga. Estamos devolvendo rapidamente para a atmosfera o CO2 capturado na biosfera ao longo de milhões de anos, causando aumento da temperatura do planeta. Em How Light Makes Life, o biólogo Raffael Jovine sugere que a fotossíntese, o mecanismo de captura de carbono mais eficiente da natureza – e por enquanto mais eficiente do que os artificiais –, é a solução. Ou seja: para combater as mudanças climáticas, precisamos de mais plantas que vivam muitos anos, acumulem muito carbono em seus corpos e custem barato. Pensou numa árvore? Então talvez você tenha diminuído sua cegueira botânica. Plante, e contribua.


Leia o artigo na íntegra na Folha de S. Paulo


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