O pesquisador Danilo Albergaria escreveu um emocionante obituário sobre o Acadêmico Erney Plessmann de Camargo, falecido em 3 de março deste ano. Publicado originalmente na Revista Pesquisa Fapesp:

O parasitologista Erney Plessmann de Camargo pensava o papel do pesquisador para além da contribuição à determinada área do conhecimento. Para ele, o cientista tinha uma função social que não poderia se resumir ao cultivo da própria carreira. A ciência deveria ser uma atividade coletiva e visar o bem de todos. Pesquisador de doenças negligenciadas, Camargo teve atuação relevante no combate à malária e à doença de Chagas na Amazônia e na África. “Erney não foi só um grande cientista”, diz a biomédica Helena Nader, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), atual presidente da Academia Brasileira de Ciências. “Ele tinha uma preocupação com a formação de recursos humanos para a ciência e para que a ciência pudesse melhorar as condições de vida das pessoas.” Camargo morreu aos 87 anos no dia 3 de março em São Paulo, em consequência de complicações de uma cirurgia na coluna.

O pesquisador nasceu em Campinas, no interior de São Paulo. Quando ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), em 1953, era um jovem de esquerda, de origem modesta, em um meio dominado pela elite econômica e intelectual do estado. No segundo ano de graduação, encontrou outros estudantes e professores com quem se identificou no Departamento de Parasitologia, chefiado por Samuel Pessoa (1898-1976). Comunista militante, Pessoa era catedrático desde 1931 e jamais escondeu suas convicções políticas, mesmo durante períodos repressivos, como o Estado Novo (1937-1945).

Camargo formou-se em 1959 e passou por um estágio no Instituto Butantan antes de ser contratado como auxiliar de ensino na FM-USP em 1961. No ano seguinte, começou a pesquisar o crescimento e a diferenciação celular do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas. Para entender a bioquímica do protozoário era preciso grande quantidade deles, mas os meios de cultivo eram muito ineficientes: “Não dava para fazer [a pesquisa] com uma ninharia [de T. cruzi]”, ele contou, em 2013, em entrevista a Pesquisa Fapesp. Depois de tentar muitas combinações diferentes de ingredientes, obteve o meio de cultura ideal. “Foi muito importante, não só para mim, porque possibilitou que todos que viessem a trabalhar com Trypanosoma pudessem produzir o protozoário em escala”, esclareceu na mesma entrevista. Os resultados foram publicados em 1964, em um artigo que virou referência internacional sobre o assunto e é citado até hoje.

No mesmo ano de publicação veio o golpe militar e, com ele, a instauração de um inquérito policial militar (IPM) na FM-USP, na avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo, com anuência da direção da faculdade. Denúncias internas de “subversão” orientavam interrogatórios de seus principais alvos – entre eles, os pesquisadores da parasitologia. Segundo Camargo, a visão social dos membros daquele grupo é o que causava problemas. “Mais do que a política, foi o envolvimento do departamento no combate às endemias brasileiras que lhe deu a fama de comunista, uma vez que o combate a essas endemias envolvia a denúncia da pobreza e das precárias condições sanitárias da população”, relatou em depoimento à Comissão da Verdade da USP em 2015, no volume sobre a FM. Havia também conflitos de opinião sobre temas acadêmicos. “Dentre eles, dois predominavam: um, a necessidade da modernização na pesquisa e incentivo à investigação experimental versus o conhecimento livresco e erudito de muitas disciplinas; o outro, a necessidade de uma reforma universitária que restringisse o poder do catedrático”, contou.

Logo após o IPM, ocorreu a demissão sumária de vários professores e cientistas. Camargo e muitos outros perderam o emprego e o Departamento de Parasitologia foi praticamente desmontado. Pessoa, além de demitido, acabou preso. Ainda em 1964, o zoólogo norte-americano Walter S. Plaut (1923-1990), em passagem rápida pelo Brasil, convidou Camargo para trabalhar na Universidade de Wisconsin em Madison, nos Estados Unidos. O pesquisador, já casado com a professora de literatura inglesa Marisis Aranha Camargo e com filhos, aceitou. A família viveu em Madison até 1968. Nesse ano, o governo militar promoveu um programa de repatriação de cientistas e Camargo foi convidado a voltar. A opção foi pela FM-USP, campus de Ribeirão Preto, onde organizou as pesquisas que havia feito nos Estados Unidos e defendeu sua tese de doutorado. Pouco tempo depois, foi demitido novamente por causa do recrudescimento da repressão política.

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Leia o obituário completo na revista Pesquisa Fapesp, com acesso aberto.