Leia artigo do Acadêmico Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq, publicado em 18/1 no Jornal da USP:

Nos últimos tempos, o termo “fascista” foi tão empregado que, para muitos, se tornou uma palavra usada para caracterizar inimigos, quaisquer que fossem. Mas as palavras só servem como veículo de comunicação se o seu significado é aceito e compartilhado por aqueles que pretendem se comunicar. Pensando nessa direção, peço a ajuda do filósofo Umberto Eco (1932-2016) que, além de extensa e extraordinária obra, caracterizou, com a sua sagacidade tradicional, o que é um fascista. Recomendo a leitura da obra original, pois o presente artigo, mais do que uma mensagem, é um convite para a reflexão, a partir da obra de Eco. Fiz uma tradução de parte do seu texto Ur-Fascism, adicionando comentários pessoais. Quase todo o texto que segue provém desse ensaio de Umberto Eco, porém evito usar aspas, pois a tradução não é autorizada (trata-se de tradução livre, portanto). Muitas partes do texto foram omitidas e meus comentários estão inseridos no corpo que segue.

Nas características do Fascismo descritas por Eco, se encontram tantos traços do governo federal brasileiro que acaba de terminar, que bastaria a recomendação da obra citada. Porém, a destruição que presenciamos no domingo, 8 de janeiro de 2023, exige acrescentar comentários à parte do texto original. Não é de se estranhar que, entre as características do fascismo descritas por Eco, apareçam contradições, pois o fascismo nunca possuiu uma doutrina coerente, isenta de agudas discordâncias internas. Muitos fascistas, ou regimes fascistas, podem possuir algumas – ou todas – as características abaixo descritas.

A primeira característica do Fascismo é o culto à tradição. O tradicionalismo é muito mais antigo que o fascismo. Afinal, a verdade já teria sido dita de uma vez por todas, e só podemos continuar interpretando sua mensagem obscura. Basta olhar para o currículo de cada movimento fascista para encontrar pensadores tradicionalistas. O papel de Olavo de Carvalho (1947-2022) na administração passada, sobretudo no seu início, é exemplificador de um pensamento tradicional e reacionário, que influenciou escolhas do regime Bolsonaro.

O tradicionalismo implica a rejeição do modernismo. Mas os fascistas adoram a tecnologia, e isso ficou claro com o uso das redes sociais dos grupos bolsonaristas. Porém, os pensadores tradicionalistas muitas vezes rejeitam a tecnologia como uma negação dos valores espirituais tradicionais. A Idade da Razão é vista como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Fascismo pode ser definido como irracionalismo.

O irracionalismo também depende do culto da ação pela ação. A ação, sendo bela em si mesma, deve ser realizada antes, ou sem qualquer reflexão prévia. Observando em tempo real, ou vendo nos vídeos, na recente invasão destrutiva e terrorista dos prédios centrais da República brasileira, o culto da ação pela ação pura a simples é evidente. Portanto, a cultura é considerada suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas, explicando assim o uso frequente de expressões como “intelectuais degenerados”, “universidades são um ninho de vermelhos”. Os intelectuais fascistas oficiais estão empenhados em atacar a cultura moderna e a intelectualidade liberal por terem talvez traído os valores tradicionais e serem acusados de vermelhos.

O espírito crítico faz distinções, e distinguir é sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica exalta o desacordo como forma de aprimorar o conhecimento. Para o Fascismo, desacordo é traição. Durante os últimos quatro anos, aliados do governo federal viraram inimigos, e outras desavenças explicam o sentimento anticiência, o desprezo aos dados e o ataque às entidades de saúde, ao ensino e defesa da Amazônia. Além disso, desacordo é sinal de diversidade. O Fascismo cresce e busca o consenso explorando e exacerbando o medo natural da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista, ou prematuramente fascista, é um apelo contra os intrusos. Assim, o Fascismo é racista por definição.

O Fascismo deriva da frustração individual ou social. É por isso que uma das características mais típicas do fascismo histórico foi o apelo a uma classe média frustrada, uma classe que sofria de crise econômica ou de sentimentos de humilhação política e amedrontada pela pressão dos grupos sociais inferiores. Quando os velhos proletários se tornam, mesmo que apenas por um período curto, pequenos burgueses e cresce o número dos excluídos, o fascismo encontrará sua audiência nesta nova maioria.

Às pessoas que se sentem privadas de uma identidade social clara, o Fascismo diz que seu único privilégio, e o mais comum, é o de nascer no mesmo país. Esta é a origem do nacionalismo fascista. Além disso, os únicos que podem conferir uma identidade à nação são seus inimigos, pois realizam um contraponto aos nacionais. Assim, na raiz da psicologia fascista está a obsessão por uma conspiração, possivelmente internacional. Os seguidores devem se sentir sitiados. A maneira mais fácil de resolver o enredo é o apelo à xenofobia.

Os seguidores fascistas devem se sentir humilhados pela ostentação de riqueza e força de seus inimigos. No entanto, os seguidores devem estar convencidos de que podem subjugar os inimigos. Assim, por uma mudança contínua de foco retórico, os inimigos são ao mesmo tempo muito fortes e muito fracos. Os governos fascistas estão condenados a perder guerras e eleições porque são constitutivamente incapazes de avaliar com objetividade a força do inimigo. Mas, como continuamos vendo, para fascistas eleições não se perdem, são roubadas.

Para o Fascismo não há luta pela vida, mas sim, a vida é vivida para a luta. Assim, o pacifismo, isto é, negociar com o inimigo, é ruim porque a vida é considerada uma guerra permanente. Como os inimigos precisam ser derrotados, deve haver uma batalha final, após a qual o movimento terá total controle. Mas tal solução implica uma nova era de paz, que contradiz o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa situação.

O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária. O elitismo, aristocrático e militarista, implica crueldade e desprezo pelos fracos. E os fracos podem até ser aqueles que, no meio da pandemia, contraíam covid, sentiam falta de ar ou morriam. O Fascismo só pode defender um elitismo popular. Todo cidadão pertence às melhores pessoas do mundo, os membros do movimento são os melhores entre os cidadãos, todo cidadão pode (ou deve) tornar-se membro do movimento. Mas não pode haver patrícios sem plebeus. Como o grupo é organizado de modo hierárquico (de acordo com um modelo militar), todo líder despreza seus próprios subordinados, e cada um deles despreza seus inferiores.

Nessa perspectiva, todos são educados para se tornarem heróis. Em toda mitologia, o herói é um ser excepcional, mas na ideologia fascista, o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo está de forma estrita ligado ao culto da morte. Não é por acaso que um lema dos falangistas durante a guerra civil espanhola era “Viva la Muerte”. O herói fascista anseia por uma morte heroica, anunciada como a melhor recompensa para uma vida também heroica.

Uma vez que tanto a guerra permanente quanto o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo, que implica tanto desprezo pelas mulheres quanto intolerância e condenação de hábitos sexuais considerados, por eles, fora do padrão. Como até mesmo o sexo é um jogo difícil de jogar, o herói fascista tende a jogar com armas – isso se torna um exercício fálico substituto. Como explicar, de outra forma, a obsessão do governo passado por armar todos os cidadãos?

O Fascismo é baseado em um populismo seletivo, um populismo qualitativo, pode-se dizer. Para o Fascismo, no entanto, os indivíduos como indivíduos não têm direitos, e o Povo é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica expressando a “Vontade Comum”. Como nenhuma grande quantidade de seres humanos pode ter, de fato, uma vontade comum, o Líder finge ser seu intérprete, seu messias. Tendo perdido o poder de delegação, os cidadãos não agem; são apenas chamados a desempenhar o papel de Povo. Assim, o Povo é apenas uma ficção teatral. Onde quer que um político, ou um influenciador, coloque em dúvida a legitimidade do parlamento porque ele não representa mais a Voz do Povo, podemos sentir o cheiro de Fascismo.

O Fascismo se comunica na chamada “Novilíngua”. Novilíngua foi inventada por George Orwell (1903-1950), na obra literária 1984, como um idioma fictício criado por um governo hiperautoritário. Mas os elementos do Fascismo são comuns a diferentes formas de ditadura. Todos os livros didáticos nazistas ou fascistas fazem uso de um vocabulário empobrecido e de uma sintaxe elementar, para limitar os instrumentos de raciocínio complexo e crítico. Devemos estar prontos para identificar outros tipos de novilíngua, mesmo que assumam a forma inocente de um show popular, ou de uma mensagem simplória aparentemente inofensiva em um grupo de WhatsApp.

A reflexão proposta por Umberto Eco, que se pergunta como identificar um fascista, nos convida não só a pensar sobre o significado da palavra, mas a organizar a nossa vida em sociedade para que um sistema com todas ou parte dessas características nunca possa voltar a dirigir os rumos deste país.

Leia a matéria original no Jornal da USP