A 26a Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas chegou ao fim na noite de sábado, 13 de novembro. O documento final assinado ficou conhecido como Acordo de Glasgow e foi recebido com um misto de sentimentos pela comunidade científica.

Por um lado, o tratado trouxe alguns avanços, como na regulamentação do mercado internacional de créditos de carbono e na menção aos combustíveis fósseis, citados pela primeira vez na COP26. Sobre este último, os compromissos ainda são vagos, mencionando apenas um esforço na “redução de subsídios ineficientes”.

O Brasil cedeu a pressões internacionais e se comprometeu a zerar o desmatamento até 2028 e a reduzir em 30% suas emissões de gás metano até 2030. O país vem sofrendo com a deterioração de sua imagem ambiental, e viu governos estaduais e municipais, além de setores do empresariado e ONGs tomarem protagonismo nas discussões.

Foto: OLI SCARFF/AFP/Getty Image

Entretanto, cientistas avaliam que os compromissos ainda estão longe de atingirem a meta de limitar o aquecimento médio do planeta em até 1.5°C. É o caso do professor da USP e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, Paulo Artaxo, que participou presencialmente da conferência na Escócia.

Membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Artaxo avalia que o sistema institucional das Nações Unidas ainda é insuficiente para combater problemas globais. O professor compartilhou com a ABC suas impressões sobre a COP26. Confira a entrevista completa:

A COP26 começou promissora, com acordos importantes. Foi inovadora ao mencionar os combustíveis fósseis, porém, essa parte acabou suavizada. O resultado final foi decepcionante?

Não acho que devemos classificar a COP como um fracasso ou um sucesso. A COP reflete o atual sistema geopolítico e econômico do nosso planeta. Uma observação óbvia é a seguinte: em 26 COPs, é a primeira vez que se menciona a possibilidade de não se utilizar mais combustíveis fósseis na geração de energia. Só esse aspecto já mostra o gigantesco distanciamento entre a ciência – que já fala há 30 anos da necessidade de reduzir combustíveis fósseis – e a realidade dos países, que querem continuar usando à vontade, inclusive o carvão. Existe uma disparidade enorme entre a ciência e a política. Então não se trata de ficar ou não decepcionado, mas de constatar esse gigantesco distanciamento. A Rio-92 ocorreu há 30 anos, a Conferência de Estocolmo há 50. Faz meio século que a ciência enfatiza a necessidade de mudarmos nosso modelo de desenvolvimento econômico, e, basicamente, nada acontece.

Então você diria que essa COP manteve a tendência do “nada acontece”?

Sem a menor dúvida. O documento final da COP é extremamente vago, mesmo nos pontos centrais. Veja a questão do mercado de carbono, que foi apontado como uma das vitórias da COP. No mercado de carbono, se um país ou uma indústria emite mais do que poderia, então ele compra certificados de outro país ou indústria que ultrapassou suas metas. Ou seja, você deixa de emitir em um lugar para emitir em outro, não há ganho líquido para o clima do planeta. Isso tem alguma chance de trazer benefícios climáticos? A resposta é não.

Paulo Artaxo, membro titular da ABC

Falando nos créditos de carbono, quais mudanças ocorreram no Pacto de Glasgow?

Antes de Glasgow, não haviam regras explícitas acordadas entre os países sobre como deveria ser feito o mercado internacional de certificados de emissão de carbono. O que temos é uma legislação brasileira, outra americana, outra europeia, e assim por diante. Existiam dificuldades significativas se um país quisesse trocar créditos com outro. Na COP26 isso foi regulamentado. Agora temos regras claras. Visando evitar a dupla contagem, que é quando um país deixa de emitir e registra isso em seu balanço geral do Acordo de Paris, porém um outro país compra esses créditos e também registra a mesma redução. Com a nova regulamentação isso se torna mais difícil de acontecer.

Agora, isso por si só não traz nenhum ganho líquido de redução de emissões, que é o que a ciência cobra. Ajuda o setor privado, abre mais mercados e possibilidades financeiras, mas do ponto de vista de reduzir emissões, não ajuda em nada.

Uma das esperanças que o senhor tinha antes da COP26 era de que compromissos voluntários se tornassem obrigações compulsórias, e isso acabou não se concretizando. Como essa coerção seria possível no contexto da ONU, que atua muito mais por acordos diplomáticos do que por imposições? Que mecanismos poderiam ser adotados?

Esse cenário enfatiza a necessidade de criarmos uma nova governança global para as mudanças climáticas. A ONU não tem mandato e nem foi desenhada para lidar com um problema dessa magnitude, tanto é que todas as decisões devem ser tomadas por consenso entre 196 países. Se algum país tiver restrições não é aprovado, como ocorreu no acordo sobre o carvão, em que a Índia decidiu continuar queimando carvão até 2070. A ONU não tem esse poder. Só que nos desafios das mudanças climáticas, sobre um recurso natural compartilhado por todos os habitantes do planeta, isso é absolutamente necessário. Precisamos de uma nova governança. Se um país não cumpre sua meta de redução, tem que haver punições ou sanções. Atualmente, se o Brasil não cumprir a meta de zerar o desmatamento até 2028, fica por isso mesmo, ele pode dizer que não conseguiu e adiar a meta para 2040. E nada acontece. Vai ser possível resolver o problema com este quadro institucional? A resposta é não.

E é difícil imaginar outro quadro institucional no curto prazo…

Mas é algo que tem que começar a ser discutido. O planeta não tem mecanismos para lidar com questões globais. A pandemia foi um exemplo óbvio, cada país tinha sua própria maneira de enfrentar a pandemia. Cada estado brasileiro tinha uma maneira e cada cidade brasileira tinha critérios diferentes da cidade do lado. Não é possível enfrentar a pandemia com esse sistema de governança, a mesma coisa é com as mudanças climáticas. Sem um novo sistema, que precisa começar a ser discutido agora, não teremos saída. Você olha o Pacto de Glasgow e percebe que não há qualquer garantia, qualquer obrigação, é tudo voluntário, compromissos políticos, nenhuma força jurídica.

Vamos falar do Brasil. O país se comprometeu a zerar o desmatamento até 2028, num acordo que tem participação das 30 maiores instituições financeiras do mundo e prevê a criação de um fundo de US$ 20 bi. É factível que o Brasil cumpra essa meta?

É absolutamente factível acabar com o desmatamento em seis anos. O Brasil já reduziu de 28 mil km² para 4 mil km² de 2002 a 2010 e mostrou que é viável. Não há nenhuma maneira mais barata, rápida e fácil de reduzir emissões do que acabar com o desmatamento de florestas tropicais. Basta cumprir a lei, já que 95% do desmatamento brasileiro é ilegal, é só fazer a Constituição ser válida na Amazônia. Coibir crimes ambientais, invasões de terras indígenas. Seria algo muito estranho acreditar que um país não consiga fazer cumprir sua própria Constituição.

Outro acordo com adesão do Brasil trata da redução nas emissões de metano, o que tem implicações diretas no agronegócio. Como fazer essa redução de emissões, principalmente no setor da pecuária?

Na COP26 estava o presidente da JBS (multinacional da área pecuária). Ele me disse o seguinte: “Paulo, 30% de redução na emissão de metano da pecuária é trivial de ser feito, e com ganho de produtividade”.

Como?

A melhoria da qualidade das pastagens consegue reduzir de 20% a 30% nas emissões, o boi engorda mais rápido e emite menos. Já existem pesquisas bastante avançadas em teste na Embrapa, com aditivos na dieta do gado para diminuir a fermentação entérica, e, consequentemente, reduzir o metano. As duas principais fontes globais de metano são a exploração de gás natural, com vazamentos na produção e no transporte, e emissão na pecuária. Então se as indústrias petrolíferas melhorarem seus procedimentos e impedirem vazamentos, o que é possível com a tecnologia atual, elas têm ganho de produtividade. Na pecuária também é possível reduzir emissões com ganhos de produtividade. É incrível.

As indústrias estão acostumadas com o modelo atual, então acabam se acomodando. Mas se conseguirmos realizar essas reduções, o impacto será muito rápido, a meia vida do gás metano é de apenas 12 anos. Agora, é importante entendermos que essa meta reduz em apenas 0.2 a 0.3 °C. Se reduzirmos o desmatamento, o ganho é muito maior, porque o desmatamento contribui com 17% dos gases de efeito estufa. Ambas são medidas que trazem benefícios econômicos e ambientais.

A participação do setor privado nunca foi tão grande numa COP, muitas empresas foram protagonistas. O senhor viu essa disposição do setor privado como maior até do que de alguns governos para conseguir chegar num acordo?

Muitas empresas não são favoráveis às ações do atual governo brasileiro, então estão atuando por fora. Participaram pelo menos 40 ou 50 presidentes de grandes empresas brasileiras.

Além das grandes empresas, governos municipais e estaduais também tiveram de assumir protagonismo. Quão importante foram essas iniciativas para a imagem do Brasil na COP?

Foram muito importantes, pois mostrou que quem representa nosso país não é só o Governo Federal. Além do setor privado e dos governos locais, as ONGs foram extremamente ativas nas discussões, sobre redução de emissões, sobre povos indígenas. O Brasil mostrou que parte significativa do empresariado brasileiro não se alinha às posições retrógradas do atual governo. Os CEOs da Klabin, Suzano, da JBS e de várias outras companhias estavam lá. Estavam enxergando oportunidades de negócios que poderiam aparecer com a implementação de medidas de redução de emissões, e várias se concretizaram.

E o mercado internacional, está mais atento a agropecuária brasileira?

É evidente que essas empresas perceberam que estava crescendo um movimento de boicote às carnes brasileiras. Supermercados da Inglaterra e da Suécia preferem carnes de países não associados ao desmatamento. O Brasil iria perder mercados de bilhões de dólares, então é bom para eles correrem atrás dessas questões, e deveria ser papel também do Governo Federal enxergar a COP como uma oportunidade de dar a volta por cima.

Como foi a participação do Ministério do Meio Ambiente, representado pelo ministro Joaquim Leite? Houve alguma contribuição concreta?

Acho que temos que olhar o governo como um todo, que não é só o Ministério do Meio Ambiente. A atuação do Itamaraty, por exemplo, voltou a ser muito positiva. Agora, é uma lástima a ausência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação nas discussões. Tem muitas questões científicas envolvidas, mas não se escutou falar do MCTI na COP26.

Sobre o financiamento para que países subdesenvolvidos consigam se adaptar às mudanças e reduzir emissões. O fundo de US$ 100 bi prometido desde o Acordo de Paris ainda está longe de se concretizar. Como está essa questão?

Tivemos um “avanço”, infelizmente. Ficou claro que os países ricos se negam a auxiliar financeiramente os países em desenvolvimento. Esses países se posicionaram contra a estruturação de um fundo e o documento final sequer menciona isso. Enquanto isso, os subsídios dos países desenvolvidos para a exploração dos combustíveis fósseis somam mais de US$ 1 trilhão ao ano. Eles se negaram a ceder 10% desses recursos para reduzir emissões no terceiro mundo.

São os tais “subsídios ineficientes”, conforme ficou redigido no documento final…

O que é um subsídio ineficiente? É incrível a maneira como acabaram contornando essa questão.

Durante a COP26, ocorreram movimentos, principalmente de jovens, simbolizados pela Greta Thunberg, que criticavam duramente a conferência, enfatizando sua ineficácia. Acredita que o que esses movimentos de fato pedem seria justamente uma governança global, com mais poder de transformar promessas em realidades?

Não há a menor dúvida de que a questão das mudanças climáticas mudou muito com o crescimento da pressão popular. Em Glasgow tivemos manifestações de mais de 50 mil pessoas e outras simultâneas em 100 cidades pelo mundo. Em Glasgow, os países desenvolvidos resolveram proteger os interesses das grandes companhias de petróleo e carvão em detrimento de 7 bilhões finais. A resolução final decretou que o mais importante é manter os subsídios aos combustíveis fósseis, e não reduzir emissões imediatamente. O IPCC recomenda reduções de 50% de emissões até 2030 para atingir a meta de 1.5°C

Atualmente, o que conseguiremos atingir seria algo em torno de 2.4°C?

Depende de como a conta é feita, podendo ser de 2.4°C a 2.7°C em média no planeta. Isso significa que no Brasil central e nordeste podemos ter até 3.5°C de aquecimento. Esse cenário inviabiliza o agronegócio, afeta milhões de pessoas, cria migrações em massa em todo o planeta. E tudo isso está sendo feito para proteger o interesse de algumas companhias de petróleo.

Existia uma expectativa na atuação dos EUA, por causa do governo Biden, que tem no combate das mudanças climáticas uma de suas bandeiras. Como o senhor avalia essa participação?

O Biden agiu principalmente em duas medidas, redução de desmatamento e metano. Nenhuma dessas medidas afeta os EUA. Então a disputa geopolítica predominou, foi muito mais forte do que a necessidade de controlar o clima do planeta ao longo dos próximos séculos. O cenário não mudou. Por isso a necessidade de uma nova governança. Enquanto isso não for resolvido, nós vamos ter COP27, 28, 40, 50 sem avançar, e nós não temos esse tempo todo. Já se passaram 30 anos sem medidas concretas e vão se passar mais 30. Enquanto isso o planeta aquece de maneira irreversível.