Helena Nader e Márcia Castro

“Uma combinação de não fazer o que deveria ser feito e fazer a coisa errada”. Foi assim que Márcia Castro, chefe do Departamento de Saúde Global e População na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Harvard, descreveu a resposta brasileira ao novo coronavírus. A fala ocorreu durante a 1ª Conferência Magna da Reunião Magna da Academia Brasileira de Ciências 2021, realizada neste 8 de outubro, data em que o país atingiu a marca de 600 mil mortos por COVID-19.

Intitulada “Da Febre Amarela à COVID-19: O Papel da Ciência na Saúde Pública Brasileira”, a apresentação começa trazendo um histórico das muitas doenças epidêmicas que o Brasil já enfrentou – e venceu – graças ao trabalho de seus cientistas.

A história epidemiológica do Brasil

A COVID-19 não é o primeiro desafio de saúde pública nacional. Desde o século XIX o país tem registrado surtos de doenças infecciosas, com nuances sociais e políticas que são familiares à crise atual. Contrapontos entre economia e saúde já eram feitos durante as epidemias de febre amarela do início do século XX e resistência a vacinas também foi problema para as campanhas contra a varíola em 1904.

“A Revolta da Vacina é um bom exemplo de quando o conhecimento científico existe, mas não pode ser aplicado por fatores sociais e políticos. Nesse sentido, a revolta foi menos contra a vacina e mais contra a história”, afirmou Castro, destacando que o processo de exclusão do espaço público criava a desconfiança entre as camadas populares. Esse cenário só seria revertido com informação, que posteriormente tornaria a campanha liderada pelo médico sanitarista Oswaldo-Cruz um sucesso no combate à doença.

Oswaldo-Cruz e Carlos Chagas são símbolos da ciência internacionalmente reconhecidos. Este último é até hoje o único cientista na história da medicina a descrever todas as fases do ciclo de uma doença infecciosa, no caso a doença de Chagas, que leva seu nome. Juntos lideraram um movimento sanitário para interiorizar o combate às endemias nacionais, alterando profundamente o quadro de vulnerabilidade que acometia a população brasileira.

“A realidade exposta pela ciência durante essas campanhas trouxe uma mudança na visão sobre nosso próprio povo. Estereótipos de subdesenvolvimento foram superados por uma imagem mais próspera. Isso mostra que não é economia de um lado e saúde do outro, mas que sem os dois juntos nada acontece”, alertou Márcia Castro.

Doenças como febre amarela, malária peste bubônica, gripe espanhola e varíola puderam ser controladas ou mesmo erradicadas por meio de políticas públicas efetivas, que tornaram o país um modelo no combate a epidemias. “O Brasil foi pioneiro em implementar ações para eliminar o Aedes aegypti, que depois foram replicadas com sucesso em muitos países americanos. Esse e outros exemplos só foram possíveis porque existia suporte político, com instituições criadas pelo governo para combater doenças endêmicas, existia respeito à ciência”.

No fim do século XX, o Brasil foi reconhecido como modelo no combate ao HIV pela UNAIDS, programa das Nações Unidas para o combate à doença. Isso só foi possível graças a amplos programas de monitoramento, controle e prevenção, e à capilaridade do nosso Sistema Único de Saúde, que permitiu a chegada desses esforços nas regiões mais isoladas do país. Mais recentemente a ciência brasileira também deu resposta ao vírus zika , realizando o primeiro trabalho que comprovou a relação entre a doença e o desenvolvimento de microcefalia durante a gravidez. As cientistas responsáveis nesse caso foram reconhecidas em editorial da prestigiosa revista Nature. “O Brasil tem cientistas e instituições científicas de ponta que foram fundamentais no combate a todas essas epidemias”, sumarizou Castro.

O Brasil e a pandemia da Covid-19

A pandemia que assola o planeta há quase dois anos trouxe mudanças estruturais para a ciência no mundo inteiro. As respostas precisavam ser rápidas e as colaborações entre cientistas proliferaram. Em pouco tempo o conhecimento sobre a prevenção da doença foi disseminado ao público. Vacinas foram produzidas em tempo recorde – nove meses após a declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Era um cenário em que o conhecimento científico estava sendo produzido de forma muito rápida, para que fosse aplicado ou não”, declarou Castro.

No Brasil, mais uma vez, o contexto social fez a diferença na forma como a pandemia se espalhou. A palestrante destacou que “nosso país tem várias sindemias, que são múltiplas epidemias interagindo e se acentuando, isso num contexto de desigualdade, que potencializa os efeitos negativos”.

O vírus chegou em um momento em que o apoio à ciência recuava, a sociedade estava polarizada e o ambiente comunicacional era assolado pela produção coordenada de desinformação. “As informações erradas foram disseminadas pelo líder máximo do país”, alertou Márcia Castro. “Não tivemos as campanhas em massa de conscientização, que sempre ocorreram ao longo da nossa história. Ficou difícil para grande parte da população entender o que fazer. A ciência não foi apenas contestada, mas totalmente negada pelo nosso próprio presidente”.

Apesar do cenário adverso, foram destacados também os resultados positivos obtidos por cientistas brasileiros. Castro trouxe o exemplo do trabalho das pesquisadoras Ester Sabino e Jaqueline de Jesus, que, apenas 48 horas depois do primeiro caso identificado no país já haviam sequenciado completamente o genoma do novo coronavírus. “No momento em que o recurso era mais escasso, a ciência brasileira foi lá e obteve resultados”.

A palestrante também citou outras iniciativas exemplares, organizadas voluntariamente por cientistas brasileiros que produziram ciência e informação de qualidade e capacitaram profissionais para o combate a pandemia, “mas tudo isso deveria ter sido parte de um esforço coordenado pelo governo federal, e não foi”

Márcia Castro finalizou com uma mensagem. “Desde Oswaldo-Cruz e Carlos Chagas até hoje, o que tem que ser defendido é uma ciência pela saúde e pela sociedade, com forte apoio do poder público. ‘Saúde para todos e dever do Estado’ conforme expresso na nossa Constituição Federal”.

Perguntas

Ao final da palestra, o espaço foi aberto para perguntas dos participantes. Os membros titulares da ABC Vanderlei Bagnato, Glaucius Oliva e Pedro Vasconcelos fizeram perguntas

Comparação entre as respostas a pandemia de Brasil, EUA e outros países

O Acadêmico Vanderlei Bagnato pediu que a palestrante fizesse uma comparação entre a resposta ao coronavírus de Brasil e Estados Unidos. Márcia Castro destacou que em 2020 os dois países atuaram de maneira bem semelhante, com negação do problema, ataque aos cientistas e disseminação de remédios ineficazes. “Os EUA também têm bolhas de informação e uma sociedade extremamente polarizada, então a parte política foi muito relevante. Mas em 2021, com a mudança de governo, o que vimos foi uma campanha de vacinação em massa muito mais rápida do que no Brasil”.

Mas a palestrante acredita que a comparação também deve ser feita com outros países, como Alemanha e Singapura. “Esses países deram muito mais atenção a testagem em massa. Sem testagem é impossível conter o espalhamento. É a partir dessas comparações que começamos a identificar tudo que não fizemos e tudo que fizemos de errado”.

Internet e aumento da desinformação

Glaucius Oliva perguntou sobre o impacto a inda maior das fake news na era da internet. Castro lembrou do papel que as redes sociais têm nos dias atuais, moldando opiniões e definindo eleições. Para ela essas ferramentas devem ser muito mais regulamentadas do que são hoje, de forma a impedir a atuação de grupos empenhados em tumultuar o debate público.

Além disso, a palestrante acredita que falta trabalhar, desde a educação básica, o desenvolvimento de senso crítico, permitindo que as pessoas saibam identificar informações de má qualidade. “O que ocorre é uma mistura de difusão rápida de desinformação, motivada por interesses políticos, e uma falta de senso crítico da população”.

Alta incidência de COVID-19 e outras doenças infecciosas no Norte do Brasil

Pedro Vasconcelos trouxe uma reflexão sobre os estragos causados pela pandemia e também pelas doenças endêmicas na região Amazônica. Castro reconheceu que a Amazônia realmente é um caso à parte, lembrando que vários estudos já mostram que incêndios florestais atuam no agravamento de doenças respiratórias.

Para a palestrante, “epidemias vêm e vão, mas as raízes do problema continuam, que são as desigualdades e a falta de saneamento básico. Se isso não for resolvido, as epidemias continuarão ocorrendo e só mudará o patógeno. Para solucionar esses problemas somente com agenda social com base na equidade”.

Mensagem final para jovens cientistas

Ao final do evento, Márcia Castro fez questão de deixar uma mensagem para os pesquisadores que estão em início de carreira. “Não desistam da ciência ou do Brasil, isso tudo vai passar, nós temos os mecanismos cívicos para fazer isso: o nosso voto”.

Confira o 2º dia da Reunião Magna da ABC, na íntegra, pelo YouTube.


VEJA A AGENDA COMPLETA DOS DIAS 13/10 E 15/10 E INSCREVA-SE!