Os webinários da Academia Brasileira de Ciências (ABC) chegaram a sua 30ª edição, no dia 8/12, com o tema “CRISPR e edição de genomas”. A tecnologia, que permite modificar genes com precisão e possibilitou grandes avanços para a pesquisa científica e para a biotecnologia, foi apresentada pelas Acadêmicas Marie-Anne Van Sluys e Santuza Teixeira, e pelos especialistas Lygia da Veiga Pereira e Paulo Augusto Vianna Barroso. Santuza e Luiz Davidovich, presidente da ABC, foram os coordenadores do evento.

CRISPR e a história da manipulação de genomas

Desde os anos 60, o conhecimento científico sobre a composição e a função do DNA em diferentes organismos já era conhecido. A partir dos anos 70, cientistas começaram a pensar em como essas moléculas com instruções genéticas poderiam ser manipuladas para diferentes fins, como para a produção de medicamento e para melhoramento na agricultura. Em 1987, esse conhecimento avançou e começaram a ser publicados os primeiros estudos indicando a possibilidade de gerar animais transgênicos, ou seja, com características modificadas para servirem em experimentos de pesquisa sobre saúde humana.

Todo esse desenvolvimento científico ao longo de décadas, descrito pela Acadêmica Santuza Teixeira, professora titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi precursor da mais avançada tecnologia de edição genética conhecida até hoje. “Com o CRISPR, há possibilidade de atuar precisamente em genes defeituosos em um grande número de células-alvo”, explicou a Acadêmica. Essa técnica mais sofisticada foi desenvolvida pelas pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna, ambas laureadas com o prêmio Nobel de química em 2020.

O mecanismo foi descoberto a partir do estudo de bactérias e foi aplicado a outros organismos pluricelulares, como os humanos. “Organismos geneticamente modificados já fazem parte da vida das pessoas. São fármacos, alimentos, produtos para o controle de pragas e vetores”. Com o avanço da genética e o advento da tecnologia CRISPR, a manipulação genética em animais passou a ser feita com muito mais eficiência e polêmicas tentativas de editar o genoma humano também começaram a ser desenvolvidas, de acordo com Teixeira.

Em 2018, durante a II Conferência sobre Edição do Genoma Humano, o cientista chinês He Jiankui apresentou o resultado de um experimento que gerou os primeiros bebês geneticamente modificados do mundo – teoricamente, segundo o Dr. Jiankui, resistentes ao vírus HIV. O cientista foi fortemente criticado pela comunidade científica mundial ao assumir os riscos de fazer uma modificação genética em embriões sem cuidado científico e análise de trabalhos prévios. “Esse acontecimento resultou em um movimento dos cientistas propondo uma moratória para experimentos envolvendo a edição de genomas em células humanas da linhagem germinativa até que saibamos os reais efeitos desses métodos para toda a humanidade”, relatou Santuza Teixeira.

CRISPR e as doenças humanas

A formação de um zigoto, a célula principal para a criação do organismo humano, e as primeiras divisões celulares seguem as ordens do genoma e dos conjuntos de moléculas de DNA. Segundo Lygia da Veiga Pereira, é essa receita que permite que uma única célula se multiplique e seja capaz de formar órgãos especializados, como exemplo, o sangue, os olhos e a pele. Quando algum erro ocorre nesse processo, aparecem as doenças genéticas.

Coordenadora do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE), Pereira destacou como a ideia da terapia gênica surgiu para ajudar na recuperação de pessoas que vivem com essa realidade. É o caso de pessoas diagnosticadas com a Distrofia de Duchenne, uma doença capaz de degenerar o sistema muscular humano. “Descobrimos que a injeção de CRISPR para a correção dessa mutação ajudou a melhorar os músculos de alguns animais tratados”, disse a pesquisadora. “Sempre houve um sonho dos cientistas de ‘consertar’ mutações gênicas. Se uma criança nasce com uma cópia de um gene defeituoso, seria possível, no futuro, trocá-la por uma cópia normal”.

Avanços como esses ainda não foram suficientemente estudados e alguns métodos podem não ter uma boa eficácia em humanos. Foi o que aconteceu quando um grupo de pesquisadores tentou, pela edição genética, alterar o genoma de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro gerados com os gametas de pais com problemas cardíacos. O resultado foi que nem todas as células embrionárias testadas apresentaram a modificação do DNA como planejada. “Seguindo o padrão científico, o método CRISPR ainda não pode ser visto como eficiente nem seguro”, afirmou Pereira.

Apesar de tecnicamente não oferecer segurança para edição gênica em células germinativas, ou seja, modificações que seriam transmitidas para as gerações futuras, o método CRISPR foi eficaz em tratamentos alternativos, como no transplante de medula óssea entre pessoas com várias doenças. Um doador com medula óssea mutante e resistente à infecção do vírus HIV, a partir do método de edição, beneficiou um paciente portador de leucemia e que vivia com HIV. “Foi relatado em um estudo que, com a ajuda da tecnologia CRISPR, o paciente que recebeu a medula modificada foi capaz de zerar a carga viral de HIV”, ressaltou Lygia Pereira.

Edição de genes na agricultura

A agricultura é uma área que muito pode se beneficiar da utilização da edição genômica, considerando a produção de alimentos, o uso de energias e matérias-primas. Na atividade agrícola, que acompanha o homem há mais de 10 mil anos, a tecnologia CRISPR pode promover mudanças estruturais no ambiente de produção de alimentos para a humanidade. segundo a Acadêmica Marie-Anne Van Sluys.

“O método CRISPR tem origem em um sistema simples herdado de bactérias e arqueias”, disse Van Sluys, professora titular do Departamento de Botânica da Universidade de São Paulo (USP). “Essa técnica, que utiliza uma proteína e um RNA-guia, pode modificar todas as células com genomas conhecidos”. Para a engenharia genética, esse é um avanço considerável em relação aos organismos geneticamente modificados (OGM), que utilizam materiais genéticos de espécies distintas. O CRISPR permite um trabalho mais preciso tanto que as variedades naturais não podem ser distinguidas daquelas modificadas por edição de genes.

Segundo a pesquisadora, o processo de edição gênica poderá contribuir enormemente para que possamos resolver o grande desafio de produção de alimentos no mundo. “Devemos conseguir reposicionar esse sistema agrícola, talvez por meio dessa tecnologia, para que possamos ter um mundo mais sustentável”.

Legislação para edição genética

“No Brasil, o uso de OGMs tem mais de 25 anos e sabemos que quase todo brasileiro se alimenta deles”, disse Paulo Vianna Barroso, presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Segundo Barroso, que também é pesquisador da Embrapa, esse cenário se estende para a alimentação de animais e a produção de fármacos.

O cientista acredita que a chegada do método CRISPR deve permitir a introdução de tecnologias menos invasivas e com possibilidade de produzir alterações mais controladas. Para isso, porém, é necessário que a técnica se adeque às condições da Lei 11.105/2005 , a chamada Lei da Biossegurança que, no Brasil, regula o uso de edição de genes. “Há princípios éticos que precisam ser observados, como a proibição do uso da engenharia genética em células germinativas humanas”, disse. Outro importante texto é a normativa número 16 da CTNBio, uma resolução que introduz o conceito de técnicas inovadoras de melhoramento de precisão, ou seja, técnicas utilizadas para gerar modificações no genoma em regiões específicas e pré-determinadas – como o próprio CRISPR.

“O uso dessas tecnologias e sua expansão sobre a vida das pessoas não deve gerar nenhum problema de saúde a humanos ou ao meio ambiente”, destacou Barroso. O conhecimento de edição de genomas e sua importância para a vida de milhares pessoas ainda avança pelo mundo e encontra nas legislações e na ética, a segurança para não sejam fonte de problemas e que não interfiram de maneira negativa na vida das pessoas.