A Reunião Magna Virtual da ABC teve como tema principal “O mundo a partir da COVID-19”, uma reflexão sobre as novas realidades criadas a partir da pandemia.

Saúde a partir da COVID-19” foi o tema do painel do dia 25/9. Foram convidados três especialistas em epidemiologia e imunologia: as pesquisadoras Anne Johnson e Ester Sabino, e o Acadêmico Cesar Victora. Partindo de suas realidades e áreas de atuação, os pesquisadores mostraram como a pandemia gerou novos desafios para a saúde pública, relacionando-a aos seus contextos locais.

Experiências com a COVID-19 no Reino Unido

O Reino Unido (RU) começou a conviver com a COVID-19 no fim de janeiro deste ano. Uma família de chineses, em Newcastle, foi o primeiro grupo diagnosticado com COVID-19 e, desde então, o RU vem apresentando recordes diários de novos casos. Uma das primeiras estratégias adotadas pelo governo britânico contra o coronavírus, em março, foi a mitigação da pandemia por meio da “imunidade de rebanho”, mas um modelo matemático apresentado pelo Imperial College de Londres mudou a essa perspectiva. Segundo o estudo, além de colapsar o sistema público de saúde (o United Kingdom National Health Service – NHS, o SUS britânico), cerca de 250 mil pessoas morreriam pela doença se essa opção fosse adotada. Foi apenas a partir das evidências científicas que o governo britânico começou a adotar medidas para uma contenção eficaz da COVID.

“Fomos tardios em identificar a transmissão comunitária da doença, tivemos surtos em lares para idosos e hospitais, ausência de monitoramento de novas infecções e demoramos com o lockdown”, contou a epidemiologista Anne Johnson, da University College London, reconhecida por seus trabalhos na área de doenças infecciosas e de investigação da transmissão de COVID-19 entre a população no Reino Unido. Até o momento, apenas na Inglaterra, mais de 36 mil pessoas morreram e cerca de 279 mil foram infectadas. “Poderíamos ter evoluído com menos mortes e uma epidemia menos intensa, mas hoje é muito mais difícil impedir a transmissão”, afirmou.

Agora, a região vem enfrentando um acúmulo de problemas e, por conta deles, uma segunda onda da doença, após a flexibilização das medidas de isolamento social anunciadas a partir de maio. “A falta de clareza do governo, o aumento da circulação de pessoas e o baixo isolamento social estão relacionados ao aumento da taxa de infecções que identificamos entre julho e setembro”, relatou Anne Johnson. “Temos uma lista de espera para tratamentos de câncer e cirurgias eletivas e ainda não conseguimos ajustar nosso sistema de saúde para receber esses pacientes durante a pandemia”, contou a cientista britânica.

“Estamos preocupados com o saldo de efeitos negativos causados pela COVID, como o aumento da desigualdade. Com o longo inverno pela frente, sabemos que temos muitos desafios a enfrentar”, afirmou Anne. Em setembro, após vários meses desde o início da pandemia, o Reino Unido registrou o maior número diário de casos, 7.143 infecções. “Essa é a maior epidemia vista em nossas vidas e durante os séculos XX e XXI”, completou a epidemiologista.

As desigualdades e a COVID-19 no Brasil

O Acadêmico Cesar Victora, professor da Universidade Federal de Pelotas, ajudou a coordenar um dos maiores estudos epidemiológicos do mundo sobre a COVID-19, ao longo da pandemia no Brasil. Logo após o primeiro caso confirmado no Rio Grande do Sul, onde o epidemiologista atua, uma equipe de profissionais da saúde entrava em campo para oferecer testes rápidos nas casas das pessoas. O então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, colaborou para a expansão do programa de testes em cidades espalhadas pelo Brasil, como na Região Norte.

“Ao começarmos os estudos, enfrentamos uma campanha de fake news em municípios, alguns dos nossos pesquisadores foram presos e tivemos testes destruídos pela polícia”, contou Victora. Ainda assim, obtiveram dados bastante significativos. “Manaus, além do turismo, tem indústrias chinesas e europeias que fazem comunicação via aeroporto internacional”, relatou o epidemiologista. Apesar dos entraves causados pela desinformação, as equipes de pesquisadores descobriram uma prevalência incomum de novos casos de COVID-19 em lugares remotos: as cidades ribeirinhas, ao longo do Rio Amazonas. “O transporte predominantemente em barcos lotados para pequenos municípios colaborou para a transmissão da doença. Ficou claro, a partir do nosso primeiro inquérito, que há uma alta prevalência da infecção entre os mais pobres”, afirmou.

As interações do novo coronavírus com o organismo humano e a evolução da pandemia ainda são mistérios para os cientistas. “Essa pandemia é extremamente mutável”, afirmou o Acadêmico. Segundo Victora, há estudos que ainda estão tentando demonstrar padrões na infecção pelo novo coronavírus. “Acreditava-se que os anticorpos contra o vírus duravam por muito tempo, mas tudo indica que há uma queda rápida e aguda dos anticorpos detectáveis no sangue através de distintos tipos de testes”, disse. Independente dos fatores biológicos da doença, Victora observou que a COVID-19 respondeu, sobretudo, à desigualdade no Brasil, sendo prevalente nas populações que não têm acesso a direitos básicos. “Em ambientes com melhores condições de vida, há menos risco. O risco maior está relacionado à pobreza, em especial, na população indígena”, afirmou.

Esforços para compreender a pandemia no Brasil

Em fevereiro deste, logo após o primeiro caso de COVID-19 no Brasil, um grupo de pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz, da Universidade de Oxford e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo divulgaram o sequenciamento genético do novo coronavírus. Coordenado pela médica Ester Sabino, professora do Departamento de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho ajudou a ciência na compreensão do SARS-CoV-2.

“Com o sequenciamento genético, é possível ter detalhes de como o vírus pode infectar hospedeiros, replicar-se, e se está sofrendo mutações. Gera-se informações úteis, inclusive, para o desenvolvimento de vacinas”, detalhou Sabino. Para tanto, contou com a colaboração da biomédica Jaqueline Goes de Jesus. As duas cientistas estavam envolvidas em um estudo sobre a dengue no Instituto Adolfo Lutz quando receberam amostras do primeiro caso de COVID-19 no Brasil em fevereiro. Em apenas dois dias, elas divulgaram o sequenciamento do coronavírus, ganharam destaque nacional e trouxeram luz à contribuição científica liderada por mulheres no Brasil. “Já estávamos prontas, com a tecnologia montada. Nosso sonho era desenvolver uma técnica para que o sequenciamento de um vírus fosse gerado em tempo real com relação à pandemia”, disse Ester Sabino.

“Depois dessa etapa, nosso grupo continuou com os esforços para entender o vírus e investigar sua propagação no Brasil”, disse Ester, que participou da continuidade das pesquisas de 427 amostras coletadas em 84 municípios brasileiros. “Identificamos mais de cem introduções do coronavírus no Brasil, mas 75% delas eram da mesma família”, relatou. Os cientistas também observaram as diferenças da pandemia entre as cidades brasileiras. “Ainda tentamos compreender essa diversidade e porque indivíduos assintomáticos têm apresentado rápida queda de anticorpos contra o SARS-CoV-2”, ressaltou a pesquisadora. Para complementar esses estudos, os pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz também receberam mil amostras de doadores de sangue de diferentes Estados, o que permitiu maior rapidez para a divulgação de resultados. “Com esse outro estudo, comparamos o avanço das epidemias em oito cidades”, disse Sabino.

Uma outra contribuição significativa para a compreensão da pandemia no Brasil foi o lançamento da plataforma “Corona São Caetano”, um sistema que coletou dados de pacientes com uso da telemedicina, através de amostras domiciliares e cadastramento por celulares em São Caetano do Sul, no Estado de São Paulo. “Havia poucos dados sobre epidemias comunitárias e divulgamos informações que ajudarão no desenvolvimento de outras pesquisas nesse segmento”, ressaltou.

Ester Sabino contribuiu para a ciência brasileira com resultados de pesquisas científicas que já ajudaram a compreender variedades de HIV encontradas no Brasil e a doença de Chagas. Com os dados divulgados sobre o SARS-CoV-2, no Brasil, a cientista fortaleceu os esforços de toda a comunidade científica brasileira que vem enfrentando as várias epidemias de COVID que impactam o país.