Dentro da programação da Reunião Magna Virtual da ABC 2020, a Academia Brasileira de Ciências convidou o médico Peter Hotez para proferir a Conferência Magna no dia 25/9. Sua apresentação foi intitulada “Prevenindo a próxima pandemia: diplomacia em vacinas em tempos de anticiência”.

Hotez é médico, reitor da Escola Nacional de Medicina Tropical e professor de virologia e microbiologia molecular pediátrica no Baylor College of Medicine, onde também chefia o Centro para Desenvolvimento de Vacinas do Hospital Infantil do Texas. Ele lidera parceria de desenvolvimento de produtos para novas vacinas contra ancilostomose, esquistossomose, doença de Chagas e SARS/MERS.

Graduado em medicina pelo Weil Cornell Medical College e em biofísica molecular na Universidade de Yale, onde obteve seu PhD na mesma área, Hotez é membro da Academia Nacional de Medicina (EUA). Ele recebeu o Prêmio Abraham Horwitz da Organização Pan-Americana da Saúde da OMS (2011) por sua liderança em esforços nacionais contra a crescente ameaça do movimento antivacinas. Atuou como representante dos EUA em iniciativas de diplomacia de vacinas com diversos países.

Ele abriu a Conferência Magna lamentando o fato de não ter podido vir conhecer o Brasil e agradecendo o convite aos seus dois grandes amigos brasileiros, os Acadêmicos Carlos Morel e Rodrigo Correa de Oliveira, ambos da Fiocruz, um no Rio e o outro em Belo Horizonte. “O Brasil tem excelentes pesquisadores. O trabalho que o país fez com a zika, entre 2015 e 2017, foi impressionante”, ressaltou.

Segundo Hotez, antes da COVID-19 o cenário em relação à saúde global já estava complicado. “Nas regiões com instabilidade política somada às mudanças climáticas, urbanização, desmatamento e anticiência, há grande prejuízo aos programas de vacinação. Estes são os inimigos que temos que enfrentar para prevenir a próxima pandemia”.

Em sua análise, considera que uma nova estrutura para a política científica global deve ser desenhada, considerando a associação da pobreza com as doenças negligenciadas. “Isso acontece especialmente nos bolsões de pobreza dos países do G-20, os mais ricos do mundo. No Texas, as comunidades mais pobres estão sofrendo fortemente”, apontou Hotez.

Para o médico, o desenvolvimento da vacina contra a COVID-19 não é algo muito difícil, basta fazer a indução da resposta imune contra a proteína S da espícula (spike) do vírus. Há muitas formas diferentes de se fazer isso, ele explicou, com proteína recombinante, usando o vetor viral, com nanopartículas, com vírus vivo atenuado ou imunização genética, para que o organismo aumente suas defesas. “Parece que estamos acelerando demais o processo, mas existem diversos ensaio clínicos sendo realizados”, ressaltou.

Ele listou as empresas que estão atuando nos EUA, identificando uma primeira onda de vacinas e uma segunda onda. Na primeira estão a Moderna (mRNA), a Pfizer (mRNA) e a AstraZeneca-Oxford (adenovírus); na segunda, Novovax (partícula da proteína) Johnson e Johnson (adenovírus), Sanofi Pasteur (proteína recombinante em célula de inseto) e a Merck (vírus vivo).

“É algo muito caro para produzir, temos que ter certeza e cuidar da gestão de risco”, alertou Hotez. Uma das preocupações dos programas de vacinas inovadores é serem arriscados, por lidarem com tecnologias que nunca foram utilizados. Porém, na opinião de Hotez, “não há muito espaço para vacinas tradicionais e sim para a inovação.”

Diplomacia de vacinas

O conceito de “diplomacia de vacinas” foi criado por Albert Sabin, que levou sua vacina contra a pólio para ser testada em 10 milhões de crianças soviéticas. “Não precisa haver uma concordância ideológica entre os países para que haja essa diplomacia”, disse Hotez. “Vimos pessoas morrendo nas ruas no Equador, Fortaleza, Belém, Manaus e agora no continente indiano, onde as áreas muito populosas impedem o distanciamento social. É preciso que os países com piores condições econômicas tenham acesso igualitário às vacinas”, defendeu o especialista.

Prevendo a competição entre vacinas e considerando a pobreza que impera mundialmente, uma coalizão foi criada, com o nome de COVAX. A iniciativa reúne ao menos 165 países interessados em garantir acesso, de forma justa, a uma vacina que funcione. Hotez diz que, nos EUA, além da COVID-19 existe o presidente Trump. “Temos mais esse problema que é o Trump, que se recusou a inserir o país na COVAX. Alguns países estão fazendo acordos bilaterais com a China, com a Rússia”, relatou o médico.

Os países em desenvolvimento criaram a Rede DCVM (Developing Countries Vac Manufacturers Network), que está sendo um caminho alternativo. A China tem parcerias com o Brasil (Instituto Butantan) e com a Indonésia; a Fiocruz, brasileira, e o Serum Institute (Índia) com a AstraZeneca-Oxford. A própria Índia está desenvolvendo a sua vacina na empresa Bharat Biotech e tem parceria também com os EUA, pela Johnson e Johnson, de acordo com o palestrante.

Com um grande portfólio de vacinas para doenças negligenciadas, o Centro de Desenvolvimento de Vacinas (CVD, na sigla em inglês), chefiado por Hotez, está desenvolvendo uma vacina contra esquistossomose e outra contra doença de Chagas. Para COVID-19 está trabalhando numa vacina baseada numa proteína recombinante de uma levedura. Hotez disse que a produção de vacinas de baixo custo contra a COVID-19 é uma meta para ele e que os países que já fabricam a vacina para hepatite B, como Bangladesh, Brasil, Cuba Índia e Indonésia, já tem parte do conhecimento necessário para desenvolver uma vacina contra o SARS CoV 2.

O movimento “antivaxx”

Hotez contou que há uma grande preocupação nos EUA com a reação antivacina. “Vários jornais norte-americanos fizeram levantamentos e a argumentação dos movimentos anticiência é que os pesquisadores estão indo depressa demais com essa vacina, questionam a relação de interesses entre o governo e a indústria farmacêutica, apelam para a liberdade na saúde, afirmam que vacinas causam autismo e outras doenças e apelam para os direitos parentais, afirmando que pais e mães t~em o direito de decidir o que vai fazer com o seu filho”. Ou seja: o direito coletivo e a noção de cidadania passam longe desses “pensadores”. Hotez lamentou que esse movimento anticiência esteja se ampliando pelo mundo, especialmente entre a extrema-direita. “Na Alemanha, o movimento é apoiado pelos neonazistas, que fizeram um grande protesto em Berlim esse ano”, relatou.

Especificamente em relação à COVID-19, os grupos anticiência manifestam-se contra o distanciamento social, a obrigatoriedade do uso de máscaras e contra o controle de contatos sociais. No Texas, especialmente, estão atacando Peter Hotez pessoalmente, dizendo que ele é “comprado” e pago para defender as vacinas por interesses políticos.

“São pessoas agressivas, usam roupas de camuflagem e andam armados. Por isso, muitos pais não estão levando as crianças ao pediatra e não estão vacinando contra sarampo, rubéola e as outras doenças infantis. Mesmo durante a pandemia, é fundamental manter as vacinas das crianças em dia”, alertou o cientista.

Assista a palestra completa, com tradução simultânea (abaixo, no You Tube) ou em inglês