Como abrir a mente para pensar o futuro da universidade e da ciência num momento em que a realidade atual do setor no País – cortes, ameaças e ataques – se apresenta como um rolo compressor sobre as cabeças acadêmicas? Para o ex-ministro da Educação e ex-reitor da UnB, Cristovam Buarque, não podemos ceder à tentativa de desmoralização. “O que eles estão fazendo agora é nos desmoralizar com estas falas tresloucadas, cortando verbas. Mas é bom saber que já foi muito pior. Alguns dos melhores professores e cientistas chegaram a ser demitidos, presos, exilados no regime militar. Não podemos deixar chegar a este ponto”, disse.

Nesta quinta-feira (28), Buarque e Isaac Roitman comandaram um debate sobre o futuro da produção do conhecimento e dos espaços onde ela se dá. Para quem está no olho do furacão, a tarefa pode parecer árdua, mas ambos enfatizaram momentos de crise como a melhor hora para pensar em transformações. Luís Carlos de Souza Ferreira, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, unidade que organizou o evento, lembrou que a universidade inclui missões que vão além da academia. “Também é nosso dever pensar em como devemos nos posicionar agora para ter um futuro melhor. Falar, sim, dos erros que estão sendo cometidos fora. Mas também olhar para dentro, para o que podemos fazer aqui. Ser elementos ativos, não passivos.”

Educação

Isaac Roitman, que atualmente coordena o Núcleo de Estudos do Futuro da UnB, e já ocupou cargos de liderança em órgãos ligados à educação e à ciência, não poupou críticas ao sistema educacional brasileiro. “A pós-graduação é o [nível] ‘menos pior’. Quanto mais nos aproximamos do nível básico, pior fica. Temos uma verdadeira tragédia educacional. Uma escola que às vezes não tem nem água não pode educar uma criança. Que leva conteúdo inúteis, usando uma pedagogia ultrapassada. Não é à toa que temos uma evasão escolar escandalosa, o desrespeito à escola, a depredação. Ninguém depreda algo que ama.”

Na mesma linha, Cristovam Buarque disse que “dobramos o número de universitários no País sem nos preocupar com a educação de base. Os alunos chegam à faculdade despreparados”. Para o ex-ministro, “continuamos pensando que educação é para brancos e ricos”. Até mesmo definir a educação como direito pode ser problemático, segundo Buarque, porque direito é associado ao indivíduo, que pode inclusive dispensá-lo. “Educação é uma necessidade e um dever porque é um vetor do progresso coletivo, não apenas individual”.

Buarque também acredita que o atual modelo de educação e universidade dá sinais de esgotamento, havendo a necessidade de transformação. “As universidades foram criadas, lá no início, para substituir os conventos como guardiões do conhecimento, quando estes espaços ficaram superados. Agora é a universidade que está ficando para trás na velocidade e capacidade de gerar conhecimento. Quem se forma hoje já sai desatualizado e precisa correr atrás. Diplomas farão cada vez menos diferença no mercado de trabalho do futuro”, prevê.

Além de pensar sobre as transformações na geração de conhecimento e no aprendizado, o ex-ministro acha que merecem entrar nas reflexões para o futuro o aumento da longevidade; o desemprego que virá com a adoção da Inteligência Artificial – que vai trazer consequências psicológicas, além das econômicas; energia e transporte; e a condição humana em relação à natureza.

Isaac Roitman também não se limitou a apontar os problemas, sugerindo reformas para todos os níveis. Ele acredita que iniciação científica deve começar desde o ensino fundamental, e prosseguir na universidade. “Todo curso de graduação deveria ser como a iniciação científica. Provocar o estudante com perguntas, deixando que ele seja o protagonista do próprio aprendizado, como sempre disse Paulo Freire.”

Para ele, trabalho publicado não pode ser o único indicador de qualidade do professor. E a extensão não pode ser o “patinho feio” dos três pilares, ao lado de ensino e pesquisa; é preciso ter mais equilíbrio. Quanto à pós-graduação, Roitman avalia que é preciso mais planejamento. “Há um excesso de doutores que não são absorvidos nem pelo mercado nem pelas universidades”, diz, salientando que planejamento tem que ser em médio e longo prazo, sintonizado com as tendências do País.

Também propôs uma maior flexibilidade dos programas, inclusive no ingresso. “A OMS [Organização Mundial da Saúde] diz que pelo menos 4% das crianças e jovens têm o que se chama hoje de altas habilidades. Aqui no Brasil jogamos esses talentos pelo ralo, pois, com a exceção do IMPA [Instituto de Matemática Pura e Aplicada], que forma alguns doutores que não passaram pela graduação, as instituições não têm flexibilidade para recebê-los”.

Ciência e sociedade

Em relação à ciência produzida no País, Isaac Roitman lembrou que “temos uma história de grandes cientistas no passado, assim como hoje, fazendo ciência de ponta, e podemos nos orgulhar disso”. Mas para ir mais longe, é preciso que as universidades busquem o apoio da sociedade, divulgando melhor a ciência que produzem. E que “se integrem à resistência, como muitas já vêm fazendo”, disse, ao mencionar os ataques e cortes de recursos recentes. Buarque complementou dizendo que, pior que ter pouco recurso, é ter um recurso intermitente. “Quem é cientista sabe que isso desarticula a pesquisa”, disse.

Para o ex-ministro, porém, “o maior corte de recursos que temos na universidade nem é de dinheiro, e sim de inteligência, já que temos no País dois milhões de analfabetos totais, não incluindo os funcionais”, afirmou, se referindo aos potenciais talentos que estão sendo desperdiçados e que nunca conheceremos, simplesmente porque estão excluídos do sistema de educação. “Dos que entram na escola, apenas 40% vão terminar o ensino médio, e mesmo entre os que concluírem, a maioria não terá condições de entrar em uma universidade”, completou.

Debate

Paulo Muzy, ex-pesquisador do Instituto de Física, propôs que “devemos olhar com muita atenção para o quadro político hoje. A universidade se acostumou, nos últimos 30 anos, a ouvir um discurso do governo que, se não fosse de total atendimento ao que ela, a universidade, pretendia, pelo menos era, do ponto de vista semântico, muito próximo ao dela. E o que nós vemos hoje [na política] é um discurso mais próximo do que o que existe na sociedade.” Muzy, que já ocupou cargos em governos estaduais anteriores, lembrou que as universidades passaram recentemente por uma CPI na Assembleia Legislativa. “Eu assisti a todas as sessões e foi uma coisa terrível porque, se por um lado, os deputados não eram pessoas preparadas para dialogar com a academia, por outro, eram as pessoas que foram eleitas. E se você acredita na democracia, esses homens estavam lá dizendo a opinião deles”, ponderou.

A empreendedora do Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec) Leila Lopes Bezerra, contou sua experiência. “Fui professora e pesquisadora durante quase 40 anos e saí da academia para inovar. Meus colegas achavam que eu tinha perdido o juízo, com a minha idade, mas eu não queria fazer mais do mesmo, queria poder abrir o que a gente faz na universidade para chegar até a sociedade.”

Para ela, “ficar encapsulado é um erro enorme que cometemos. Às vezes eu me sinto muito sozinha, mas ouvindo o que foi falado aqui eu me sinto menos só. Inclusive, os professores poderiam ter dito aos alunos que hoje a aula seria aqui neste auditório. Estamos fazendo algo que universidade brasileira faz pouco: autocrítica, e por isso ela não evoluiu.”

“Quando a gente vai para rua em defesa da universidade pública, da ciência e tecnologia, só a universidade está na rua. O pipoqueiro não está na Avenida Paulista nem na Candelária. Por que a gente não sensibilizou essas pessoas? Onde a universidade errou na sua autorreflexão e no seu impacto social?”, questionou Leila Bezerra.

Pegando o gancho da menção de Cristovam Buarque ao momento de desânimo, a professora do ICB Rita de Cássia Ferreira trouxe para a discussão o tema do suicídio. “No seu trabalho, professor pode encantar. E pode desencantar também. Hoje, muitas vezes, o desencanto está vindo de dentro da própria universidade”, disse a docente.

A engenheira recém-formada pela Unesp Thais Cândido Roberto também acredita que os professores devam estimular mais a participação nos debates sobre a universidade. “Às vezes é difícil para quem já saiu há muito tempo da graduação lembrar como era sua cabeça na época. Nem sempre o aluno sabe o que é melhor para ele. Há poucos anos, se me dissessem que haveria este evento, provavelmente eu não viria.” Hoje, ela afirma conseguir ver o enorme valor de uma discussão sobre temas como esses, que não estão no currículo. “Os professores também precisam ser guias”, disse.