Leia a seguir reportagem de Renato Grandelle para o jornal O Globo, publicada em 15 de junho:

RIO — Oito anos atrás, a ciência brasileira vivia um momento de pujança. Os laboratórios vibravam com o resultado dos investimentos conquistados desde o início do século. O gasto interno bruto em pesquisa e desenvolvimento chegou a ser maior do que o da Itália e Espanha. À época, O GLOBO fez uma enquete com cem dos 112 membros mais jovens da Academia Brasileira de Ciências, que reiteraram sua satisfação em trabalhar na área no país.

Hoje, o cenário é outro. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações chegou a perder 42% de seu orçamento — o ministro Marcos Pontes tenta negociar o retorno da verba bloqueada. A reportagem procurou dez dos cientistas entrevistados em 2011 e ouviu um diagnóstico mais sombrio sobre como é o trabalho no setor em 2019.

O que aconteceu com a qualidade da produção científica brasileira nos últimos anos?

Camila:  Aumentou. Veja, por exemplo, o conhecimento gerado em tão pouco tempo para enfrentar a epidemia de zika. Isso foi possível porque nossa base científica é sólida, com bons cientistas, equipamentos, alunos.

Dario:  Houve um progresso, mas isso se deve a investimentos que já estavam garantidos no passado. Agora, diante dos cortes, é possível que a qualidade seja comprometida.

E a qualidade da pesquisa, foi atingida pela crise econômica?

Úrsula:  Sim. A força de trabalho são os estudantes, que estão extremamente desmotivados com o corte de bolsas. As universidades estão sucateadas, ninguém tem certeza se haverá financiamento para continuar a pesquisa por muito tempo. Além disso, os problemas que tínhamos antes, como a dificuldade para importação de reagentes, não foram resolvidos.

Marcelo:  Tudo conspira contra o cientista brasileiro. Para a minha pesquisa, preciso de ácido fluorídrico. Um litro custa R$ 1.000, e só posso importá-lo com licença do Exército. Um pesquisador americano consegue cinco litros da substância em poucos dias por menos de US$ 100 (cerca de R$ 388). Também é comum ver o roubo de equipamentos. A porta do meu laboratório, além de trancada, tem um cadeado, a sala tem câmera.

Estamos perdendo força e credibilidade no exterior?

Jorge:  Não, mas corremos esse risco, caso não haja recursos. A perda de credibilidade pode ocorrer quando os acordos bilaterais não puderem mais ser mantidos, o que vai estancar as missões científicas, a realização ou participação em eventos internacionais, o intercâmbio de doutorandos e pesquisadores visitantes.

Cecilia:  Sim. Os estrangeiros perceberam a nossa fragilidade orçamentária e vêm nos “sondar” com migalhas e pegar nosso material de pesquisa — por exemplo, as plantas da Amazônia. Como eles são os responsáveis pela verba, ficam com todo o crédito do resultado obtido com estas colaborações. Para muitos cientistas de países desenvolvidos, quanto pior for a situação brasileira, melhor para eles.

É possível evitar a “fuga de cérebros”?

Flávia [membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências (ABC), 2016-2020]:  Sim, desde que haja uma política de investimento em pesquisa e formação de recursos humanos, com estratégias concretas e duradouras para a fixação dos estudantes, especialmente os mais jovens, no Brasil. Nossos alunos são muito bem formados e têm grande chance de se encaixarem no exterior, e eles estão cada vez mais procurando estas alternativas.

Ado [membro titular da ABC]:  Sim. Nosso astral está baixo, diante da promessa de novos cortes orçamentários e da falsa noção de que quem faz pesquisa no Brasil está concentrado na iniciativa privada. É fundamental dar oportunidades para os jovens recém-formados. Ninguém quer ficar em um país para ver sua vida profissional acabar.

Conhece algum jovem que, por falta de incentivo para o setor, desistiu da carreira científica?

Dario:  Acontece muito, principalmente entre aqueles que não têm vocação tão forte para pesquisa. Ou vão para indústria, ou universidade, ou concursos públicos. Na época de maior investimento, o (aluno) mediano conseguia se inserir no mercado de trabalho, mas, agora, a competitividade é enorme.

Cecília:  O contingenciamento de verbas para bolsistas desestimula os jovens a ingressarem na carreira científica. É uma perda imensa quando pessoas qualificadas abandonam sua pesquisa. Não é de um dia para o outro que se treina um aluno a operar um equipamento ou a realizar um ensaio biológico.

Jorge:  Há uma geração de jovens doutores que se acomodaram em não seguir pesquisando, ou, mesmo quando mantêm a pesquisa, têm posturas pouco aguerridas para conseguir recursos, contatos nacionais e internacionais e gerir seus laboratórios. É um certo comodismo que não havia em gerações anteriores.

De quem é a culpa pela crise na ciência brasileira?

Antônio:  Dos governos, da iniciativa privada, da própria academia. Somos cientistas majoritariamente financiados pelo contribuinte e precisamos esclarecer a população em geral e, em particular, as autoridades sobre a relevância da ciência e tecnologia para a construção de um país desenvolvido.

Milton:  O governo atual está contribuindo para acentuar a crise, mas ela não começou agora, e a ciência não é encarada como um meio que pode nos levar, no futuro, à prosperidade. Mas precisamos dar maior visibilidade ao nosso trabalho, mostrá-lo à sociedade. Não adianta falar só que falta dinheiro e que o poder público não é eficiente.

Concorda com quem fala que existe um “marxismo cultural”, uma doutrinação ideológica, nas universidades?

Úrsula:  Este tema deveria estar fora da discussão sobre a ciência no Brasil. A universidade é o local de desenvolvimento do pensamento crítico, sem doutrinação. Ciência não tem ideologia.

Marcelo:  Infelizmente, os professores direcionam os estudantes como massa de manobra para questões políticas, especialmente nas Ciências Humanas. A meta do docente deve ser formar engenheiro, geógrafo, historiador. Esta deve ser a prioridade, cumprir a ementa do curso.

Cite um ponto forte da ciência brasileira.

Antônio:  O Brasil montou um sistema de ciência e tecnologia que, mesmo não sendo ideal, conseguiu criar centros de excelência competitivos em várias áreas. Temos grupos que se destacam por ideias inovadoras.

Milton:  Temos um diferencial em relação aos países desenvolvidos: a produção científica em região tropical. Podemos ser uma liderança mundial em estudos que usem recursos da floresta.

E um ponto fraco?

Camila:  É errado só financiar pesquisas aplicadas. O país tem que incentivar não apenas as áreas que podem gerar produtos, mas todas as que fazem a ciência avançar no conhecimento. Precisamos de gente pensante em geografia, história, letras, filosofia… O que fazer num país onde há apenas químicos, físicos, matemáticos? Nossos problemas são plurais.

Ado:  Falta melhorar a educação básica, para que ela se transforme em um fornecedor de mão de obra para a ciência. Enquanto isso não acontecer, teremos dificuldade para competir como uma potência mundial. Não adianta pensar apenas em financiamento.