Leia matéria publicada no Valor Econômico, em 3/6, de autoria do professor da Ebape/FGV Francisco Gaetani, e ex-secretário executivo dos Ministérios do Meio Ambiente e Planejamento, e do Acadêmico Virgilio Almeida, professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação:

Independente da disputa ideológica, há uma questão que o país necessariamente terá de resolver, se quiser ter paz social e desenvolvimento sustentável no futuro. Trata-se da desigualdade que divide o Brasil, que se manifesta em diversas formas, como desigualdade na distribuição de renda, desigualdade racial, desigualdade de gênero e desigualdades sociais e regionais. O reconhecimento da importância deste tema divide o país. Ao olharmos para o futuro, surge nova questão: qual o impacto do avanço digital nas arraigadas desigualdades brasileiras?

Na última década nos países em desenvolvimento, havia o fenômeno chamado “divisão digital”, que separava a sociedade entre aqueles que podiam acessar computadores e internet e os demais, que não tinham essas condições. Como consequência dessa divisão, famílias mais carentes ficavam excluídas das possibilidades, oportunidades e informações disponíveis no mundo digital. No entanto, a popularização dos celulares e dispositivos móveis como fonte primária de acesso à internet aumentou significativamente a inclusão digital.

Segundo estimativas do instituto de pesquisas Pew Research, 70% dos brasileiros usam a internet. Considerando que muitas famílias compartilham o uso de smartphones, estima-se em 120 milhões o número de brasileiros que acessam a internet via celulares. À medida que os dispositivos digitais proliferam, a divisão não é mais apenas sobre acesso à internet via celulares. À medida que os dispositivos digitais proliferam, a divisão não é mais apenas sobre acesso à internet. Incluem novas características do mundo online, que podem criar novas formas de exclusão.

Há pouco mais de vinte anos, praticamente todas as decisões que moldavam a vida das pessoas eram tomadas pelas próprias pessoas ou por outros humanos, como por exemplo o processo de seleção para uma vaga de emprego, a concessão de um empréstimo, o preço de uma passagem aérea, a escolha da notícia a ser lida ou qual o caminho tomar para se chegar a um determinado destino. Hoje, boa parte das decisões do dia-a-dia é guiada, ou totalmente executada, por algoritmos de inteligência artificial, como nos mostram as plataformas do Uber, Facebook, Google e outras.

Embora a conectividade tenha aumentado em todas camadas sociais, os grupos mais vulneráveis da sociedade, como, por exemplo, os desempregados, os subempregados e os analfabetos digitais, estão mais expostos a problemas incipientes, como violação de dados pessoais, ondas de notícias falsas e exclusão de oportunidades. Temas que grande parte da população desconhece e que não está preparada para com eles lidar. Um estudo recente publicado pela revista Science mostra que os americanos mais velhos, especialmente aqueles com mais de 65 anos, foram os mais propensos a compartilhar notícias falsas com seus amigos no Facebook.

No Brasil, casos de fraudes online tem aumentado significativamente, com ofertas falsas de empregos, empréstimos e produtos, que tem como alvo idosos, mulheres e desempregados e que são muitas vezes baseados em vazamentos ilegais de dados pessoais. A desigualdade digital é uma questão política. Políticas públicas devem desenvolver roteiros coerentes para lidar com a complexidade das questões digitais para a sociedade, uma vez que elas afetam a realidade de praticamente toda a população. Ate então, as políticas públicas visavam estimular a construção da infraestrutura de comunicação com acesso a internet. Daqui para frente as políticas públicas deverão ter novos alvos prioritários, capacitação e regulação.

O Brasil apresenta um paradoxo. Por um lado, o país é caracterizado por um profundo abismo social separando pessoas de mundos totalmente diferentes em termos de renda, valores, regiões, costumes e aspirações. Por outro lado, o Brasil é um dos países cujo percentual de participação em redes sociais como Facebook, WhatsApp, Twitter e YouTube é dos maiores do mundo. Em síntese: somos um país profundamente dividido por vários tipos de clivagens, mas somos surpreendentemente integrados – ou integráveis – digitalmente. Este problemático ponto de partida abriga extraordinários desafios e oportunidades para formulação de políticas públicas. A tecnologia pode integrar, incluir e aproximar as pessoas. Pode também o contrário. O caminho a ser seguido dependerá muito da participação da sociedade na formulação de políticas regulatórias para o país.

A raiz da desigualdade digital hoje é intangível. Trata-se do conhecimento e da capacidade de compreensão, discernimento e julgamento do mundo digital. Potencializados pela revolução tecnológica, a visão de uma sociedade digital é capaz de transcender circunstâncias conjunturais e proporcionar ao país um horizonte de longo prazo, mais inclusivo e menos injusto. Não se trata apenas de maior equidade – argumento que não necessariamente sensibiliza a todos. Significa um mercado interno maior e mais robusto, uma força de trabalho mais empreendedora e competitiva.

As tecnologias digitais oferecem poderosas ferramentas que podem mudar a política, a economia, a desigualdade social, a cultura, as artes, os costumes e as relações familiares. Se formos capazes de nos entendermos sobre como aproveitarmos esta janela de oportunidade e arrastarmos para esta travessia o maior número possível de brasileiros, o futuro ficará mais fácil. A democracia – esta forma de governo imperfeita e ineficiente para a qual ainda não foi encontrada melhor substituto – pode ser aperfeiçoada com a canalização das tecnologias digitais para a persecução do interesse público. É isto que empresas, organizações do terceiro setor, governos e políticos progressistas estão fazendo no mundo inteiro.

A  matéria original pode ser acessada em https://www.valor.com.br/opiniao/6288027/novos-significados-da-inclusao-digital