Realizada na tarde do dia 27 de março, no Museu do Amanhã, a segunda sessão da Conferência IAP-Spec abordou o tema das políticas de ação afirmativa. Cada palestrante focou em um grupo social vulnerável e, a partir disso, protagonizaram um debate sobre a importância das ações afirmativas para a redução das desigualdades, medida que figura na lista dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).

Participaram da discussão Alex Shankland (IDS – Instituto de Estudos do Desenvolvimento), Jacqueline Pitanguy (Cepia: Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), Adilson José Moreira (Universidade Presbiteriana Mackenzie) e Aishah Bidin (Universidade Nacional da Malásia), como moderadora da mesa.

Jacqueline Pitanguy, Alex Shankland, Aishah Bidin e Adilson Moreira

Porque a saúde indígena importa

Membro sênior do IDS, no Reino Unido, Alex Shankland lida com dinâmicas de gestão transparente no Programa de Equidade em Saúde do Grupo Sussex-Brasil. O pesquisador trabalhou por mais de 20 anos em sistemas de saúde, populações indígenas, sociedade civil, movimentos sociais, gestão transparente, representação política e governança local, especialmente no Brasil e em Moçambique.

Em sua palestra, Shankland tratou sobre a saúde dos povos indígenas e como este tema está diretamente relacionado com cinco ODS em particular: erradicação da pobreza, fome zero e agricultura sustentável, água potável e saneamento, vida terrestre e redução das desigualdades.

Os territórios indígenas e de povos tradicionais protegem as mais importantes reservas de biodiversidade e fontes de água doce do mundo. Assegurar que eles retenham o acesso e o controle desses territórios e sejam capazes de ter vidas saudáveis dentro deles é uma chave para o requerimento da redução das desigualdades.

Hoje, estima-se que 370 milhões de pessoas indígenas ocupem 70 países diferentes ao redor do mundo. Para atingir as metas contra a pobreza e a fome, é importante assegurar que as comunidades indígenas não sejam deixadas para trás. Mas, como mostrou um estudo de 2015, comissionado pela revista científica The Lancet, os piores resultados em saúde e sociedade continuam a prevalecer nos povos indígenas.

O que é necessário para transformar essa situação até 2030? No caso brasileiro, o ponto de partida está na Constituição de 1988, que determina a saúde como direito de todos e dever do Estado, e a autodeterminação como um direito dos povos.

Em busca da igualdade na área de saúde para povos indígenas, em 1999, o Brasil criou os Subsistemas de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (SasiSUS), como parte do Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar do investimento massivo de recursos, indicou Shankland, o desempenho do programa tem sido decepcionante. A questão virou alvo de um intenso debate político, onde tem sido proposto cortes no orçamento, distribuição das responsabilidades para departamentos de saúde municipais e até mesmo o fim do SasiSUS.

O pesquisador apontou que, para além do problema da corrupção no país, é preciso reconhecer que a saúde indígena reúne desafios complexos, que superam o pacote modelo de implantação. Os territórios indígenas são geralmente remotos, a epidemiologia e as sociedades indígenas são pouco compreendidas, e suas relações políticas com outras sociedades são marcadas por desigualdade de poder e conflitos. Por esses motivos, o custo para a saúde indígena será sempre maior do que o gasto com a saúde até dos grupos urbanos mais pobres.

Portanto, é necessário comprometimento político e também novas parcerias entre cientistas biomédicos, cientistas sociais e os detentores do conhecimento indígena. Desenvolver modelos de prestação de serviços de saúde mais diversos, descentralizados e adaptáveis que possam responder de forma flexível às realidades epidemiológica, social e cultural dos povos indígenas incentiva a reinvenção de todos os sistemas de saúde para beneficiar a todos. Além disso, trabalhar com especialistas em saúde indígena para melhorar a saúde de seus povos permitirá que agentes externos possam aprender novas práticas que beneficiem também as sociedades de onde vieram.

 

Os direitos da mulher brasileira

Socióloga e cientista política, Jacqueline Pitanguy é docente do curso de graduação Gênero e Direito da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro. Fundadora e coordenadora executiva da Cepia, Pitanguy é fundadora e membro do Conselho da Comissão de Cidadania e Reprodução e membro da Assembleia de Associados da Action Aid Brasil. Em nível internacional, é membro do conselho da Parceria Aprendizado de Mulheres para Paz, Desenvolvimento e Direitos da ONG Diálogo Inter Americano.

Pitanguy focou nos ODS 5 (igualdade de gênero) e 10 (redução das desigualdades) durante sua apresentação. Ela afirmou que o medo e insegurança gerado nas mulheres pelo modelo de sociedade patriarcal, provoca não só o sofrimento psíquico e emocional, como origina a desigualdade no desempenho na educação, no mercado de trabalho e na gestão familiar das mulheres. Esses fatores estão diretamente ligados ao desenvolvimento social e econômico do país: “medo, insegurança e vulnerabilidade caminham juntos com a pobreza”, pontuou a socióloga.

Ao longo da história do Brasil, sempre foi negado às mulheres o acesso universal a direitos, ao mesmo tempo que foi instituído um sistema de discriminação positiva e de ação afirmativa para os homens. Pitanguy lembrou que, até os anos 90, nos tribunais de júri, advogados usavam frequentemente o argumento de legítima defesa da honra para buscar – e frequentemente conseguiam – a absolvição ou condenação irrisórias de assassinos confessos de suas esposas, amantes ou companheiras.

Mas, desde os anos 70, o movimento feminista brasileiro tem atuado em defesa de ações afirmativas para a igualdade de oportunidades de acesso a justiça, segurança e poder político entre homens e mulheres. As feministas, em cooperação com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (presidido por Pitanguy de 1986 a 1989), estabeleceram na Constituição um parâmetro de igualdade de gênero, levando a reformulações nas legislações ordinárias como a civil, penal e leis de trabalho.

Desde então, foram criadas delegacias especializadas de atendimento a mulher vítima de violência; a Secretaria de Políticas das Mulheres; o Ministério das Mulheres; casas de abrigo para mulheres vítimas de violência; o número 180 para mulheres em situação de violência; a Lei Maria da Penha; e a Lei do Feminicídio, incluída na legislação brasileira em 2015.

Foram retiradas a categoria de “mulher honesta” do Código Penal; o requisito de virgindade antes do casamento, válido apenas para mulheres; e a extinção de crime de estupro por casamento do agressor com sua vítima.

A cientista política indicou que a presença das mulheres no mercado de trabalho é mais intermitente, sazonal, parcial e informal que a dos homens, reduzindo a possibilidade feminina de contribuição. Ainda assim, elas acabam acumulando tempo de trabalho realizando as tarefas domésticas. E, por essas razões, Pitanguy defendeu que, no debate recente sobre previdência social, deve-se manter a discriminação positiva com relação as mulheres.

 

Racismo: o crime perfeito no Brasil

Doutor em Direito Constitucional Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, Adilson José Moreira é bacharel em direito e psicologia. Como pesquisador, tem atuado em áreas como o Direito Constitucional, Direito Antidiscriminatório, Compliance e Governança Corporativa, Sociologia do Direito, História do Direito e Psicologia Jurídica.

Em sua apresentação, Moreira defendeu o sucesso das ações afirmativas como políticas de inclusão racial. No Brasil, programas de ação afirmativa já vinham sendo implantados por universidades públicas desde 2002, até que, em 2012, o Congresso Nacional promulgou as ações afirmativas a partir da raça e da classe social como lei federal. Essas mudanças, apontou o pesquisador, têm sido extremamente benéficas para a sociedade brasileira, com o número de pesquisas sobre desigualdade racial tendo se tornado significativo, mas, em contrapartida, a reação daqueles contra os programas de ação afirmativa tem sido tremenda.

Moreira listou três conceitos chave para se entender o sistema de discriminação racial no país: racial color blindness, a ideia de uma sociedade em que as classificações raciais não limitam as oportunidades de uma pessoa com base em sua raça ou cor; racial transcendence, o estado em que alguém está acima de qualquer definição de raça ou identidade racial, passada ou presente; e racismo recreativo, quando uma ofensa é tratada como engraçada, e não violenta, o que faz com que raramente as pessoas sejam condenadas pelo crime de racismo no Brasil.

Esses aspectos são consequência da imensa miscigenação do povo brasileiro, o que para muitos significa a assimilação estrutural da população negra no país. O argumento é utilizado por muitos juristas brasileiros, afirmou o pesquisador, para indicar a inconstitucionalidade das ações afirmativas, alegando que não há racismo no Brasil e as desigualdades raciais são sempre produto de desigualdades de classe.

Mas, Moreira reforçou: “Nós, que temos um compromisso mínimo com a Constituição brasileira, com a civilidade e a igualdade, precisamos a qualquer custo manter essas políticas que têm sido extremamente benéficas, por terem aumentado o conhecimento científico necessário para resolver os problemas de saúde da população indígena, do encarceramento em massa, das discriminações e das doenças que afetam especialmente a população negra”.

 

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