Leia artigo publicado no jornal Valor Econômico em 27/3/2019:

Muitas foram as mudanças globais nos últimos 50 anos. Dentre elas, a tecnologia é mais visível e de maior impacto na vida das pessoas. Além do mais, permeia todas as áreas da atividade e do conhecimento humano. O atual avanço das tecnologias de inteligência artificial e automação promete acelerar mudanças ainda mais disruptivas e em maior escala.

Pode ser uma aposta do Brasil para acelerar o desenvolvimento e deixar para trás o transe em que se encontra já há alguns anos. É uma agenda portadora de futuro, mobilizadora das pessoas, vital para o setor empresarial e relativamente barata. Depende, no entanto, de uma mudança cultural para ser abraçada e priorizada. Precisamos olhá-la com curiosidade e ânimo, não com medo e relutância.

Não se trata de reducionismo tecnológico. A tecnologia não irá resolver nossos impasses políticos. Nem tampouco mudará nossos valores e preferências individuais. A tecnologia não nos melhorará, mas pode melhorar a qualidade das nossas vidas. Ela pode resolver muitos de nossos problemas: crônicos e agudos. Problemas de governo envolvem grandes números e tipologias. São exatamente aqueles em que a tecnologia é mais barata e aplicável. Com as devidas salvaguardas para inclusão social e proteção dos direitos humanos, a inteligência artificial pode abrir uma janela de oportunidades para o Brasil.

As pessoas adotam novas tecnologias – médicas, bancárias, comerciais, ambientais, sociais, de locomoção, de organização, de comunicação, de lazer e em várias outras esferas do cotidiano – por uma razão muito simples: elas fazem a vida melhor, liberam nosso tempo para outras coisas, são baratas e nos situam no mundo. É simples assim.

Um pequeno país do Báltico – a Estônia – dissociou-se da influência cultural de seus vizinhos regionais do Leste Europeu para tornar-se mundialmente conhecida como a Nação Digital, benchmark global para governo digital e eficiência nos serviços públicos. A Índia, uma grande nação da Ásia Central, país complexo e heterogêneo que abriga 20% da população do planeta – mergulhou em um programa massivo de transformação digital de todas as áreas em que se visualizou um potencial benefício social. Uma revolução vem ocorrendo na provisão dos serviços públicos como saúde, educação, além da modernização do comércio e indústria, visando crescimento econômico, social e inclusivo.

E o Brasil? Continuamos patinando há 20 anos com a identidade digital única. O prontuário eletrônico dos pacientes do SUS é um alvo móvel faz décadas. Uma mistura de medo, com aversão a riscos, tem produzido uma absoluta confusão no trato de temas que cartéis, corporações e repartições públicas teimam em manter reféns de seus interesses. Senso de urgência não é o forte da nossa cultura política. Somos um país conhecido por desperdiçar oportunidades que se sucedem em cascata, como se o futuro estivesse à disposição do Brasil, para quando nos entendêssemos. Esta realidade tem de mudar. Não vai ser com improvisação no último minuto que aproveitaremos o bônus digital e as múltiplas revoluções que a inteligência artificial começa a proporcionar.

Há coisas que não podem esperar e precisam funcionar, faça chuva, faça sol. Muitas coisas. Quase todas as coisas de que os governos se ocupam e de que a sociedade depende: transporte, segurança, educação, saúde, energia, dentre outras. A rapidez e a escala do desenvolvimento tecnológico global não têm espaço para os tradicionais jeitinhos e puxadinhos brasileiros. Precisamos de estratégia, investimentos e ações concretas para não perder o bonde da inteligência artificial e automação.

A demografia do capital humano nacional está transitando da maturidade para o envelhecimento, sem que a sociedade brasileira se dê conta de quão crucial é engajar-se na digitalização social e econômica do país. Estamos falando de pessoas e do desenvolvimento de suas capacidades e habilidades digitais.

No Japão, os assistentes robóticos são a principal companhia das crianças e dos idosos. Ajudam os primeiros a aprender mais rápido e os segundos a terem uma memória auxiliar para compensar a idade. São as novas babás e cuidadores, que antecipam os novos papéis da automação na sociedade.

A inteligência artificial não é uma solução para todos os problemas. Mas seu uso potencializa um cardápio de alternativas inéditas, que pode redefinir a forma de diagnosticarmos problemas, abordarmos a implementação de nossas políticas públicas, modelarmos nossos processos regulatórios, e avaliarmos o gasto público.

O desafio hoje é desenvolver um olhar escrutinador das possibilidades existentes e dos tradeoffs das estratégias para inteligência artificial. Isto pressupõe benchmarking, diálogo internacional, monitoramento da fronteira tecnológica e interação com Google, Amazon, Microsoft, Facebook e Apple. As chamadas “big five” são protagonistas imprescindíveis e inescapáveis deste debate. Elas são a vanguarda de parcela significativa destas transformações.

A questão é que o avanço digital não deveria ser mais assunto do futuro. O avanço digital já transbordou. É mais fácil perceber esse avanço nas grandes empresas multinacionais, nas movimentações de startups ou em produtos de consumo em massa do que nas ações de governo. O fosso que está se abrindo entre as nações digitais e aquelas que funcionam e operam em bases analógicas vem se ampliando de forma virtualmente irreversível. O setor privado e governo precisam abrir a caixa de possibilidades oferecidas pela inteligência artificial e automação na busca da competitividade e produtividade que o país tanto precisa.

*Francisco Gaetani é professor da Ebape/FGV e ex-secretário executivo dos Ministérios do Meio Ambiente e Planejamento.

**Virgilio Almeida é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard e ex-secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. É membro titular da Academia Brasileira de Ciências.