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Leia artigo dos Acadêmicos Carlos Joly e Mercedes Bustamante, em parceria com o pesquisador Helder Queiroz, para o jornal Valor Econômico, em 23/1/2019:

Os primeiros dias de 2019 trouxeram mudanças nas áreas de meio ambiente e em órgãos associados aos povos indígenas e populações tradicionais.

Embora a avaliação de políticas e de formas de gestão seja sempre necessária, e certamente na área ambiental há muito a ser aperfeiçoado, tais mudanças, com a restruturação de órgãos entre ministérios e a alteração na priorização de pautas indicam uma grave miopia sobre o tema meio ambiente e a sua relevância para o Brasil e o mundo.

“Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”, disse o jornalista americano H.L. Mencken. Orientadas pelo forte apoio do setor ruralista ao governo federal empossado, as mudanças na gestão ambiental concentraram-se no que esse setor considera como empecilhos às suas atividades. Questões complexas inerentes ao meio ambiente foram reduzidas, de forma simplista, a uma discussão sobre o uso do solo. Várias interações, humanas e ecológicas, entre ecossistemas terrestres e aquáticos e populações rurais e urbanas passaram ao largo das preocupações daqueles com a responsabilidade de governar para todos os brasileiros.

O modelo atual de uso dos recursos no Brasil deveria estar no cerne das preocupações da nova equipe econômica

O setor do agronegócio não é homogêneo. Produtores que respeitaram a legislação ambiental e trabalhista, produzindo com qualidade e alta produtividade não podem ser confundidos com grupos que se utilizam de grilagem, corrupção, violência e que prosperam na especulação fundiária.

A agricultura é uma atividade econômica altamente dependente dos recursos naturais e serviços ecossistêmicos. É também multifuncional (produz mais do que alimentos, fibras ou energia) com forte impacto em muitos elementos da economia e em nossos ecossistemas.

As mudanças recentes que agradaram a parte do setor ruralista constituem uma vitória de Pirro, prejudicial ao vencedor e obtida por alto preço, a ser pago por toda a sociedade brasileira. Tais ações enfraquecem as políticas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, de controle do desmatamento, e de demarcação de terras indígenas e territórios quilombolas com potenciais prejuízos irreparáveis.

Tais posições não surpreendem, mas é fundamental lembrar as conexões com duas áreas-chave no novo governo – Economia e Justiça e Segurança Pública – que não podem estar alheias aos temas meio ambiente, os povos indígenas e outras populações tradicionais.

A degradação ambiental impõe custos de longa duração à economia, que resultam em perdas de produção e de capital humano. A poluição do ar e da água representam um pesado tributo, acarretando sérios problemas de saúde e até mesmo mortalidade prematura. Os impactos da poluição são particularmente adversos para os jovens, os idosos e os pobres.

Se houve recuo no discurso oficial sobre a saída do Brasil do Acordo de Paris, a falta de prioridade para as Mudanças Climáticas na nova estrutura do Ministério do Meio Ambiente e a sua negação pelo titular do Ministério das Relações Exteriores são extremamente preocupantes.

A agricultura em larga escala, tão importante para a nossa economia, depende de chuva na quantidade, no momento e no local adequados. Variações atípicas de temperatura prejudicam a sua produtividade. Cerca de 65% da eletricidade produzida no país, um dos motores da economia, tem origem hídrica e também dependente de um regime adequado de chuvas.

O modelo atual de uso dos recursos no Brasil deveria estar no cerne das preocupações da nova equipe econômica, pois gera enormes passivos que comprometem a capacidade de proteger a população, e sobrecarregam as futuras gerações com escolhas que reduzem as opções de desenvolvimento.

Do lado da Justiça e Segurança Pública, é preciso lembrar os fortes laços entre corrupção, crime, desmatamento e degradação ambiental. O suborno abre portas para atividades ilegais associadas ao uso dos ambientes naturais e seus recursos. São notórios os casos de corrupção em obras de infraestrutura de duvidosos benefícios socioambientais. O sucesso do Brasil no controle do desmatamento em passado recente envolveu ampla concertação de atores públicos e privados. São essenciais o monitoramento das regulamentações florestais e o uso de novas tecnologias que possam coibir o comportamento ilegal.

No campo da segurança pública, estudos apontam que a qualidade ambiental e a saúde humana estão ligados à redução do crime. Direitos não podem ser garantidos em um ambiente degradado. O direito fundamental à vida é ameaçado pela degradação do solo, desmatamento, exposição a resíduos tóxicos e água potável contaminada. Mais justiça poderia ser alcançada por meio do incentivo a arranjos apropriados de governança local, ampliando a capacidade dos envolvidos para avaliar as opções de gestão do meio ambiente e dos recursos naturais e apoiar a participação informada nas decisões.

É preocupante a saída da Funai do Ministério da Justiça e o esvaziamento de suas funções entre três pastas diferentes. Hoje, minorias indígenas e defensores ambientais e de direitos civis enfrentam o perigo da injustiça e do abuso dos direitos humanos.

O Brasil é a casa de centenas de povos indígenas e outras populações tradicionais. Estudos reconhecem a importância de seus conhecimentos e práticas para o controle do desmatamento, conservação da biodiversidade e segurança alimentar.

O gozo dos direitos desses brasileiros pressupõe o exercício de atividades tradicionais em territórios protegidos por lei, com garantia de sua participação efetiva nas decisões que os afetam, O atraso nas demarcações de terras indígenas e quilombolas gera conflitos inerentes à insegurança jurídica de lado a lado o que só amplia a violência que já grassa no Brasil.

O retorno da concepção assimilacionista dos povos indígenas fere o ordenamento jurídico nacional e o direito internacional. A Constituição Federal de 1988 acolheu o respeito à multiculturalidade. O direito à diversidade cultural é um direito fundamental.

Em um projeto de governo que se colocou para a sociedade como o retorno da ética à política, cabe recordar as bases éticas do Desenvolvimento Sustentável: satisfazer as necessidades humanas, garantir a justiça social e respeitar os limites ambientais.

Restringir a questão ambiental a um gueto delimitado pelas demandas de parte de um setor específico, elude da sociedade brasileira a possiblidade de crescimento econômico com sustentabilidade, a garantia de direitos constitucionais, e a redução das desigualdades com respeito à diversidade.

Sobre os autores

Mercedes Bustamante é professora titular da Universidade de Brasília e membro titular da Academia Brasileira de Ciências

Helder Queiroz é pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá

Carlos Joly é professor titular da Universidade Estadual de Campinas  e membro titular da Academia Brasileira de Ciências

O artigo é subscrito também pela Coalizão Ciência e Sociedade, que reune cientistas de instituições de pesquisa de todas as regiões brasileiras.