Antonio Galves é matemático, Professor Titular da Universidade de S.Paulo e coordenador do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (CEPID NeuroMat), financiado pela FAPESP. As atividades do CEPID NeuroMat podem ser acompanhadas através das páginas www.neuromat.numec.prp.usp.br e www.facebook.com/ neuromathematics.

1a. parte: Um projeto científico desprezado.

Vou-lhes contar uma história ocorrida há pouco mais de cem anos. Nela um projeto científico de grande originalidade se choca com a incompreensão da maioria das autoridades científicas da época. Essa história começa com ofensas e chacotas.

– Projeto absurdo, ilógico, imbecil, maluco!

A quem se dirigiam esses insultos? Ao projeto científico do físico e matemático Ludwig Boltzmann.

Ludwig Boltzmann

Por que tanta agressividade? Ouçamos o que diziam os detratores de Boltzmann.

– Como os senhores bem sabem, graças ao trabalho de jovens brilhantes como Clausius, a Física foi recentemente enriquecida por uma nova área de pesquisa que recebeu o nome de Termodinâmica. A Termodinâmica foi criada para descrever o funcionamento das máquinas a vapor.

Murmúrios de aprovação na assistência.

– Pois bem, vem agora nosso “colega” Boltzmann com um projeto estapafúrdio: derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo de sistemas de
moléculas como as da água que, ao ser aquecida e evaporar, aciona turbinas e faz funcionar as máquinas a vapor.

Gritos de espanto e incredulidade na assistência.

– Mas isso meus senhores é um absurdo, uma impossibilidade lógica! Só mesmo um maluco ou um idiota poderia propor um tal projeto de pesquisa.

Talvez algum pesquisador mais jovem e ousado levantasse o dedo e pedisse explicações sobre aquele julgamento. E a resposta já estava na ponta da língua dos detratores de Boltzmann.

⁃ Esse projeto é absurdo, porque Boltzmann quer derivar as leis da Termodinâmica a partir do estudo da evolução de sistemas de moléculas. Ora, as moléculas que compõem, por exemplo, a água estão sujeitas às leis da Mecânica derivadas no século XVII por nosso eminente colega Isaac Newton.

O jovem pesquisador atrevido pergunta, espantado.
– E que mal há nisso?!
O grande professor, do alto de sua cátedra responde.

⁃ Isso é absurdo, porque os movimentos descritos pela Mecânica são por sua própria natureza reversíveis. Todo movimento mecânico pode ser invertido no tempo. Essa é a reversibilidade característica das leis
da Mecânica.
E daí? parece perguntar o olhar do jovem atrevido.

⁃ Já os fenômenos descritos pela Termodinâmica são irreversíveis. Irreversíveis! Irreversível, por exemplo, é o processo de evaporação da água ao ser aquecida, transformando-se em vapor que servirá para empurrar os pistões de uma máquina a vapor. Logo o projeto científico de nosso “colega” Boltzmann é absurdo, porque ignora essa contradição básica.

De novo algum jovem talvez levantasse o dedo e pedisse mais explicações sobre essa suposta contradição. Já irritado, o grande professor, autoridade científica incontestável, responderia condescendente.

– Meu jovem, vou lhe dar um exemplo simples para ilustrar o que estou afirmando.

Dois botijões de gás ligados por uma mangueira.

– Meu jovem, imagine o seguinte experimento. Dois compartimentos iguais estão conectados por um tubo no qual foi instalado um registro. No início da experiência um dos dois compartimentos contém um certo volume de gás e o outro está vazio. E o registro instalado no tubo está fechado, impedindo o gás de passar de um compartimento para o outro. O jovem consegue imaginar esse dispositivo experimental?

O jovem, intimidado, balança a cabeça, afirmativamente.

– Muito bem. Agora a experiência vai começar. Abrimos o registro no tubo que conecta os dois compartimentos. Diga-me, meu jovem ouvinte, o que acontece quando abrimos o registro.

Timidamente o jovem responde:

– O gás flui pelo tubo de conexão indo de um recipiente ao outro.

Paternal, o grande professor aprova.

– Muito bem, meu jovem! Diga-nos agora o que acontecerá ao cabo de um certo tempo.

– O gás se distribuirá nos dois recipientes. Ao cabo de um certo tempo, os dois recipientes conterão quantidades aproximadamente iguais do gás.

Satisfeito, o professor prossegue.

– Muito bem, meu jovem pesquisador, você descreveu perfeitamente o que se observa experimentalmente. Deixe-me fazer-lhe uma última pergunta.

O jovem se prepara para a pergunta.

– Você já observou alguma vez o gás refluir do segundo para o primeiro compartimento, de forma que o segundo compartimento fique de novo totalmente vazio e o primeiro volte a conter todo o gás, como acontecia no início da experiência?

E a resposta saiu como esperada.

– Não, nunca observei essa evolução levando todo o gás de volta ao primeiro compartimento.
Do alto da sua cátedra o grande professor confirma.

– Você nunca observou isso, e não só você. Na verdade, ninguém nunca observou o gás que tinha ido para o segundo compartimento, refluir em seguida totalmente de volta para o primeiro compartimento. Sua observação confirma que estamos diante de um fenômeno irreversível. As coisas acontecem ao longo do tempo numa certa direção e não na direção inversa. O gás flui de um compartimento para o outro, ocupando os dois compartimentos uniformemente. E o fluxo oposto nunca foi observado.

Rumores de concordância na assistência.

– Ora, se o programa de Boltzmann fizesse algum sentido, esse fluxo contrário deveria poder ser observado experimentalmente. Como isso nunca aconteceu é claro que essa reversão é impossível. E consequentemente o programa proposto pelo nosso “colega” é absurdo e ilógico. Tenho dito!

Uma salva de palmas coroou a conclusão do grande professor que agradeceu satisfeito. Mas um observador
atento teria notado que nem todos aplaudiram. Num canto da sala um jovem casal assistia consternado a cena. Esses jovens se chamavam Paulo e Tatiana Ehrenfest. Os dois eram matemáticos e tinham entendido o que Boltzmann estava propondo. E iam mostrar ao mundo científico que reversibilidade e irreversibilidade podiam coexistir.

Como isso se deu é a história que vou lhes contar na semana que vem.

Confira os outros artigos da série:

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 2ª parte

A angústia do matemático Ludwig Boltzmann – 3ª parte