Os cientistas brasileiros José Leite Lopes [que foi membro titular da ABC], Nise da Silveira, Ana Maria Fernandes e Elisaldo Carlini [membro titular da ABC] foram homenageados na cerimônia de abertura da 70ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada neste domingo, no Centro Cultural e de Exposições Ruth Cardoso, em Maceió. A SBPC tem a tradição de homenagear, todos os anos, figuras expoentes da ciência brasileira que atuaram dentro da comunidade científica de forma seminal e que tiveram importância para a vida institucional da SBPC.

No ano em que se celebra seu centenário de nascimento, a história do físico recifense, José Leite Lopes, uma das figuras fundamentais para a consolidação da física no Brasil, foi contada pelo presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira. “A gente faz questão de expor, ainda que tão brevemente, uma vida tão variada, porque no Brasil os cientistas são pouco conhecidos. A ciência brasileira tem história. E esse é um exemplo claro disso”.

José Leite Lopes concluiu em 1939 o curso de Química Industrial em Pernambuco; em 1940, iniciou o curso de Física da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), no Rio de Janeiro. Em 1946 recebeu o título Ph.D pela Universidade de Princeton (EUA), sob a orientação de Wolfgang Pauli, prêmio Nobel de Física. “Ele teve uma formação científica de altíssimo nível e era um cientista brilhante”, disse Moreira.

Entre suas muitas contribuições importantes para a física teórica destaca-se o artigo, de 1958, no qual previu existência de uma nova partícula (bóson vetorial neutro), usando uma analogia entre a interação nuclear fraca e o eletromagnetismo. Sua proposição inspirou Weinberg, Glashow e Salam em seus trabalhos de a unificação dessas interações; eles seriam premiados com o Nobel da Física em 1979.

Mas ele fez muito mais que isso. Ele contribuiu para a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e foi fundador da Escola Latino-americana de Física. Ele ainda batalhou para a criação de um ministério de ciência e tecnologia no Brasil, ainda na década de 1960. “Vinte anos do MCTI ser criado, ele e a SBPC já estavam brigando por ele. Por isso que a gente briga também para ele continuar”, ressaltou o presidente da SBPC.

Lopes foi presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), de 1967 a 1971, e recebeu o título de presidente de honra da SBPC, por suas contribuições ao desenvolvimento da ciência e da educação no Brasil. Em 1964, foi preso e, em 1969, aposentado compulsoriamente pela ditadura militar. Exilado, fez carreira de sucesso como professor na Universidade Louis Pasteur, na França.

Entre os muitos prêmios, nacionais e internacionais, recebidos por Leite Lopes estão: Prêmio Nacional de Ciência Álvaro Alberto (1989); Ordre National du Mérite, grau de Officier (1989); e Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1994).

Leite Lopes, um professor brilhante, apreciava a arte e praticava a pintura. Ele foi um cientista que lutou intensamente, ao longo de toda sua vida, pelo desenvolvimento científico e pela educação no País, tendo escrito muitos artigos e livros sobre estes temas. Opôs-se muitas vezes, e de forma corajosa e contundente, aos poderes constituídos e sempre manteve acesa a chama da esperança de ver o Brasil se tornar um país desenvolvido, mais justo e menos desigual.

“Se ele estivesse aqui hoje, ele protestaria contra a atual e repentina destruição do sistema científico e educacional público que levou décadas para ser construído e do qual foi ator e testemunha; protestaria de forma veemente e irreverente contra uma nova ditadura que se evidencia. Depois de ter vivido sua punição pela ditadura militar anterior, através do AI-5, e ter sido separado do país por diversos anos, e também sintonizado com os clamores da sociedade civil a qual sempre se engajou, estaria clamando pela democracia plena, pela justiça social e por Lula livre”, declarou seu filho, o antropólogo José Sergio Leite Lopes, em carta lida pelo Acadêmico Otavio Velho, presidente de honra da SBPC. Velho recebeu a placa alusiva à homenagem da 70ª Reunião Anual da SBPC em nome filho do cientista.

É preciso imaginação e coragem

Corajosa, pioneira e inspiradora, Nise da Silveira introduziu a terapia ocupacional com arte para permitir que pessoas com doenças mentais se expressassem. “Ela era militante do Partido Comunista, era uma libertária por natureza e é uma das maiores cientistas do século 20. Ela enfrentou os tratamentos tradicionais para as doenças mentais, que considerava violentos, e introduziu a terapia ocupacional”, descreveu a sanitarista e especialista em Saúde Pública, Maria Jose Castro D’Almeida Lins, que apresentou a homenagem à psiquiatra brasileira.

Nascida em 1905, em Maceió (AL), cidade que recebe em 2018 a 70ª Reunião Anual da SBPC, Nise da Silveira foi uma das primeiras médicas formadas no Brasil. Foi admitida na Faculdade de Medicina da Bahia aos 16 anos, onde se formou como a única mulher entre os 157 homens daquela turma. Concluiu o curso aos 21 anos, com uma monografia sobre a criminalidade feminina. Logo que se formou, começou a trabalhar com psiquiatria, interessada em novos métodos para tratar a esquizofrenia. Mudou-se para o Rio de Janeiro onde atuou como médica interna do Hospital da Praia Vermelha. Na agitação política dos anos 1930, foi denunciada e presa como comunista por 16 meses na Casa de Detenção da Rua Frei Caneca.

Em 1933, cursando os anos finais da especialização em psiquiatria, estagiou na clínica neurológica de Antônio Austregésilo. Logo após terminar sua especialização, foi aprovada no mesmo ano em um concurso de psiquiatria, e começou a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental do Hospital da Praia Vermelha.

Nise foi reintegrada ao serviço público com a anistia e, em 1946, propôs ao diretor do Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro de Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro, a criação de uma seção de terapia ocupacional naquele hospital. Seu trabalho pioneiro de pesquisa sobre o tratamento da doença mental através da arte-terapia foi reconhecido internacionalmente. Nise ainda foi pioneira ao enxergar o valor terapêutico da interação de pacientes com animais. “A sua história é marcada pela luta pela desospitalização na base da reforma sanitária. E hoje vemos o enorme desmonte da política de saúde mental. Um retrocesso enorme”, lamenta a médica sanitarista, ao declarar sua homenagem.

A produção artística dos internos do Centro Psiquiátrico foi reunida no Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por ela em 1952. Alguns dos artistas revelados pelo trabalho de Nise da Silveira alcançaram renome internacional, o mais famoso deles sendo Arthur Bispo do Rosário. “Nise mostrou que é preciso imaginação, coragem e sonhos para se fazer um outro mundo”, ressaltou Lins.

A psiquiatra faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 30 de outubro de 1999 e deixou como legado uma luta que permanece até hoje, pela ciência, pela arte e pela cultura, como destacou seu primo, Luciano de Carvalho Queirós, que recebeu a homenagem em seu nome. “Como ela dizia sempre, ela não gostava de gente curada, dizia que gente curada é chata”.

Guerreira

A homenagem à pesquisadora Ana Maria Fernandes, que faleceu no dia 2 de maio de 2018, após uma longa batalha contra o câncer, foi feita pela amiga e companheira de Universidade, a professora e conselheira da SBPC, Fernanda Sobral. “Eu defino Ana com três palavras: amiga, colega e guerreira. Um dos maiores legados dela foi ser construtora de instituições: ela constituiu o departamento de Sociologia da UnB e seu programa de pós-graduação, também ajudou na construção do Cepac, que hoje em dia é o Ela – Centro de Estudos Latino-americanos. A direção da editora da UnB foi uma de suas últimas tarefas”, relatou Sobral.

Ana Maria Fernandes graduou-se em Ciências Sociais, Sociologia e Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) em 1972 e recebeu o título de mestra em Sociologia em 1977, na mesma universidade. Em 1987, defendeu sua tese doutorado em Sociologia na Universidade de Oxford, no Reino Unido, e, em 1995 realizou o pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA, no Programa de Ciência, Tecnologia e Sociedade. Na UnB, foi professora titular por trinta anos, de 1974 até 2003. De 1997 a 2002 foi Decana de Pesquisa e Pós-Graduação, quando, em 2001, atuou como Reitora em exercício na gestão do reitor Lauro Morhy. Em seus últimos anos, atuava como pesquisadora associada sênior sobre temas como educação, desenvolvimento científico e tecnológico, pesquisa, tecnologia e inovação.

Sua tese se tornou livro, intitulado “A Construção da Ciência no Brasil e a SBPC” e publicado pela editora UnB em 1990, com relançamento em 2009. Na sinopse da obra, o cientista e divulgador científico José Reis descreve que o trabalho de Fernandes “constitui preciosa contribuição à compreensão da ciência no Brasil e ao papel que a SBPC tem desempenhado”.

“Mas a SBPC não foi apenas seu objeto de estudo. Ela, que nasceu no dia 18 de julho de 1948, dez dias após a SBPC ser criada, também participou ativamente da história desta entidade. Foi secretária regional da SBPC no Distrito Federal, no período de estruturação de criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do DF”, relata a amiga.

Por sua inestimável contribuição, recebeu em 2002 o título de Comendadora da Ordem Nacional do Mérito Científico, e tronou-se membro da Grã-Cruz da ONMC em 2007.

“Acompanhei de perto sua luta contra o câncer, da mesma forma que acompanhei sempre a sua luta pela ciência. Ana era uma guerreira”, disse a conselheira da SBPC, que recebeu a placa de homenagem em nome das filhas de Fernandes.

Ciência para um país melhor

Prolongados aplausos e plateia em pé para o último homenageado na abertura da SBPC Alagoas. Foi uma deferência ao médico Elisaldo Carlini, em solidariedade e respeito, já que, apesar da idade avançada e da reconhecida contribuição na Farmacologia, com pesquisas sobre o uso medicinal da maconha, o pesquisador foi acusado de apologia às drogas, em 2017, o que causou a revolta da comunidade científica brasileira.

A presidente de honra da SBPC e Acadêmica, Helena Nader, prestou as homenagens ao professor. “Carlini foi o responsável pela criação da psicofarmacologia no Brasil e é um dos pilares mundiais dessa área. Recebeu mais de uma centena de prêmios nacionais e internacionais”.

Professor emérito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), membro titular da ABC, diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), primeiro representante da SBPC no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), condecorado pela Presidência da República e premiado internacionalmente, aos 88 anos, Carlini continua sendo o mais respeitado cientista brasileiro com atuação na área de drogas. Já nos anos 1970 ele produziu pesquisas pioneiras que caracterizaram a ação anti-convulsivante da maconha, que apenas nos últimos anos começou a ser amplamente reconhecida no Brasil. Suas descobertas permitiram a formulação de remédios eficazes para tratar doenças como epilepsia e esclerose múltipla, hoje utilizados em diversos países.

Mesmo com as dificuldades de locomoção, já que enfrenta o tratamento de um câncer, o professor Carlini fez questão de subir ao palco receber a homenagem. “É a primeira vez que me sinto tão emocionado com uma homenagem. Uma sociedade do tamanho da SBPC saudar um cientista, e não ser exatamente o contrário, um cientista dizer da importância dessa entidade para ele e para a vida dele, seria algo desproposital”, disse.

Carlini falou, então, sobre sua relação com a SBPC e o primeiro contato com a entidade, por meio de dois professores que eram membros da SBPC, José Ribeiro do Vale e José Leal Prado de Carvalho. “Quem se formava médico naquela época tinha um destino muito mais claro, de abrir um consultório ou trabalhar hospital, ganhando dinheiro. Poucos se dedicavam à ciência. Apanhei o gosto pela ciência com esses dois professores que me levaram a conhecer a Reunião Anual da SBPC. Eu ainda era calouro e foi um encantamento total para mim. Eu fiquei totalmente vidrado pela ideologia da SBPC”, lembrou.

Carlini contou que era um assíduo frequentador da SBPC e ressaltou a longa batalha da entidade, “verdadeiramente interessada em ver um país diferente”. Segundo relatou, ele queria servir com sua profissão muitas outras pessoas, e foi incentivado a fazer ciência. Foi assim que se enveredou para a pesquisa, mais especificamente, a estudar nas riquezas naturais novos medicamentos, como a maconha.

“Estou chegando aos 90, mas eu quero continuar. As pernas me doem mas o coração me encanta. Eu não quero descansar”, disse o professor, recebendo efusivos aplausos.