Como a biodiversidade brasileira pode contribuir para a produção de fármacos? Para construir essa relação, os pesquisadores Spartaco Astolfi, professor e pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Eliezer Jesus Barreiro, Acadêmico e químico do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ICB/UFRJ), Letícia Lotufo, pesquisadora do Departamento de Farmacologia da Universidade de São Paulo (USP) e o professor e pesquisador Norberto Peporine Lopes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da USP, foram convidados a compor o debate sobre a função da biotecnologia e da química na relação com a diversidade biológica.
Guaraná amazônico: genoma complexo e grande potencial comercial
astolfi.jpgO professor Spartaco Astolfi apresentou a grande diversidade de espécies amazônicas e ressaltou a preocupação com a sua destruição. “O sistema fluvial da Amazônia é como o sistema circulatório sanguíneo e as regiões mais afetadas do bioma amazônico pelos humanos, onde ocorrem mais desmatamentos e poluição com agrotóxicos, coincidem exatamente com as cabeceiras e as nascentes do rios. Essa degradação do sistema fluvial equivaleria a cauterização dos vasos capilares do nosso sistema”, comparou. Segundo o pesquisador, a continuidade desse processo de devastação acarretará em graves consequências para o bioma amazônico e seu clima e colocará em risco inúmeras espécies. Apontou ainda a importância do manejo florestal e plantio de sistemas agroflorestais em áreas já degradadas como alternativas sustentáveis para o desenvolvimento econômico e social sustentável da Amazônia.
O biólogo defendeu também a importância do uso da biotecnologia para criar alternativas para a utilização da biodiversidade e apresentou a pesquisa realizada pela Rede da Amazônia Legal de Pesquisas Genômicas (REALGENE) sobre a análise genômica do guaraná, planta domesticada pelos indígenas. O estudo mostrou que o guaranazeiro tem um genoma 3 vezes maior que o humano, 210 cromossomos. “Por causa da grande complexidade do genoma, o trabalho se concentrou em identificar os genes ativos no fruto e na semente dessa planta, local de onde se produz o extrato que possui várias propriedades medicinais”, explicou. Descobriram, dentre outros, os genes responsáveis pela síntese de alcaloides e flavonoides, substâncias antioxidantes responsáveis por algumas de suas maravilhosas propriedades medicinais. Além disso, como tem sido comum em análises genômicas já realizadas em diversas espécies, identificaram também inúmeras sequências gênicas ainda desconhecidas.
Astolfi salientou a importância de se estudar a biodiversidade em nível molecular. “Isto sem dúvida levará a descoberta de novas moléculas e novos genes que terão importantes aplicações biotecnológicas.” “Conservar é preciso pois a cada espécie extinta milhares de genes se perderão e nunca serão conhecidos”, arrematou o biólogo.
Resposta vinda do mar
leticia_lotufo.jpgA diversidade marítima também tem muito a oferecer para a pesquisa química. É o que tem investigado Leticia Lotufo, bióloga e pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Ela foi membro afiliado da ABC entre 2009 e 2013. A cientista conduz pesquisas sobre as propriedades de espécies marinhas e seu potencial anti-câncer, na busca de fármacos que tenham como base essas substâncias. “80% das drogas que tratam câncer têm origem natural e algumas vêm do mar”, destacou Lotufo.
A pesquisa mais recente da bióloga analisa como a seriniquinona, composto presente em uma bactéria marinha, pode se ligar à proteína responsável pela sobrevivência da célula cancerígena, chamada dermicidina. Com pouco conhecimento já existente sobre a dermicidina, a intenção do grupo é averiguar como é possível converter o composto da bactéria marinha em substância anti-câncer, que seria usada principalmente para o câncer de pele, uma vez que a dermicidina é mais presente em células da epiderme.
Fármacos e produtos naturais
norberto_lopes.jpgPesquisador da Universidade de São Paulo (USP), o Acadêmico Norberto Lopes vem se dedicando às propriedades químicas e farmacológicas dos produtos naturais e à espectometria de massas, mais especificamente, ao metabolismo de fase um de xenobióticos naturais e avaliação toxicológica. Essas estratégias buscam dar suporte a extração de substâncias que possam ser revertidas de componentes in natura da biodiversidade brasileira para fármacos.
O farmacêutico foi um dos responsáveis pela descoberta da caramboxina, uma neurotoxina presente na composição da carambola. O grupo responsável pelo estudo percebeu que, em pacientes saudáveis, a substância é eliminada pela urina, mas em pessoas com problemas renais, ela segue para a corrente sanguínea, chegando ao sistema nervoso e causando efeitos como soluços, convulsões, confusão mental e até mesmo morte. A substância aparece em baixa quantidade na fruta, mas os pesquisadores ressaltaram a recomendação de moderação no consumo. Com este conhecimento, o grupo terá um novo material para pesquisar a produção de substâncias antagonistas para a toxina ou novos indutores para estudos de epilepsia.
Produzindo química
eliezer.jpgIndo no caminho inverso da pesquisa em produtos naturais, o trabalho do Acadêmico, farmacêutico e bioquímico Eliezer Barreiro, do ICB/UFRJ, poderia ser comparado ao de um artista. Sua função é a de criar moléculas novas que sirvam à elaboração de novos fármacos. “Nós desenhamos, planejamos racionalmente em laboratório essas moléculas que ainda não existem, por métodos de síntese orgânica”, explicou ele.
O pesquisador vê na biodiversidade brasileira uma espécie de “fonte de inspiração molecular”. A união da química de produtos naturais com a química medicinal permite que a segunda se baseie em moléculas encontradas na natureza para produzir outras, com as funções necessárias. Desta forma, são produzidas substâncias para combater doenças que não são encontradas diretamente no ambiente natural. “É como se química medicinal ‘domesticasse’ as moléculas ‘selvagens’ da mãe natureza”, comparou Barreiro.