A bióloga Mercedes Bustamante, membro titular da ABC, foi entrevistada na edição de 10 de janeiro do podcast “O Assunto”, do G1. A pauta foi a crescente destruição do Cerrado, segundo maior bioma da América do Sul, que se estende por mais de 2 milhões de quilômetros quadrados.
O monitoramento do bioma, feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), corre o risco de ser descontinuado a partir de abril. Os R$ 2,5 milhões anuais necessários para a operação ainda não têm previsão de serem repassados pelo governo federal. Bustamante classificou o fim do monitoramento como “falta de visão estratégica” e danoso para a imagem do Brasil no exterior.
Durante o podcast, a Acadêmica salientou a importância do bioma no ciclo hídrico. “O cerrado contribui diretamente para 8 das 12 regiões hidrográficas brasileiras, está no coração do país distribuindo água para as diferentes partes”. Também lembrou que o bioma é a savana com maior biodiversidade do planeta.
Bustamante explicou que a substituição da vegetação nativa por monoculturas afeta a absorção de água pelo solo, impactando na dinâmica hídrica do bioma. Por fim, afirmou que a expansão da fronteira agrícola nas regiões entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia é um “tiro no pé” e contribui para intensificar os períodos de estiagem.
Confira trechos do artigo escrito pela Membro Titular da ABC, Mercedes Bustamante, publicado hoje, 11 de janeiro, no Correio Braziliense
No ano do bicentenário da independência do Brasil, vale revisar os relatos das viagens do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire pelo interior do Brasil, entre 1816 e 1822, descrevendo não somente a natureza mas também muitos aspectos da sociedade brasileira à época. Em suas considerações sobre as transformações de nossas paisagens naturais, ele observou a ação humana reduzindo a diversidade de plantas com a perda de seus benefícios econômicos – árvores preciosas derrubadas “inutilmente sob o machado do agricultor imprevidente”, contribuindo com a extinção “de milhares de espécies úteis para as artes e a medicina”, em associação às queimadas. Saint-Hilaire lamentou a agricultura predatória e “sem inteligência” e a perda da vegetação nativa antes mesmo suas espécies pudessem ser catalogadas e estudadas.
Um leitor desatento poderia, tranquilamente, situar tal descrição no Brasil de hoje. Com a diferença que hoje podemos acrescentar o conhecimento sobre os impactos negativos do desmatamento nas mudanças climáticas e na oferta de serviços ecossistêmicos, como produção e conservação de água, polinização, controle de pragas agrícolas e de novas pandemias.
Nos últimos dias, houve a divulgação quase escondida (em 31 de dezembro!) dos dados oficiais do desmatamento do Cerrado em 2021. Os números Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), indicam novo crescimento do desmatamento e a perda de 8.531,44 km2, pressionando ainda mais o bioma que já perdeu quase 50% de sua vegetação nativa. Uma semana depois, em 6 de janeiro, o INPE informou que o monitoramento do Cerrado será mantido somente até abril desse ano por falta de verba. Os recursos usados na estruturação do PRODES Cerrado eram de um programa internacional e foram captados com o compromisso do Brasil de, posteriormente, garantir a manutenção do monitoramento.
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No Cerrado, as seguranças alimentar, energética e hídrica do país estão intrinsicamente conectadas e são dependentes da conservação da vegetação nativa em larga escala. A agricultura no Cerrado segue o ritmo da sazonalidade da precipitação, mas as projeções mais recentes de mudanças do clima apontam para a redução da precipitação e a extensão do período seco. A adoção de práticas de irrigação tem crescido persistentemente desde os anos 1970. Porém, o desmatamento em escala regional altera o ciclo hidrológico no Cerrado e, em conjunto com a variabilidade climática, podem limitar tais práticas.
No Brasil, 65% da matriz elétrica é de fonte hídrica. O mapeamento das unidades de aproveitamento hidrelétrico da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) indica que as unidades presentes dentro dos limites do Cerrado e as unidades externas que se encontram em bacias fortemente influenciadas pelo bioma representam 52% de todas as unidades do país. Em meio à maior crise hídrica em 90 anos, lembramos que a Bacia do Paraná, que contribui com a usina hidrelétrica da Itaipu, recebe 47% de suas águas do Cerrado.
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Longe dos olhos e do interesse dos setores econômicos e do governo por sua conservação, a perda da savana mais biodiversa do mundo, com expressivos estoques de carbono, responsável por significativa produção de água e energia para todo o país, traz um alto custo com graves repercussões por longo tempo. No entanto, da mesma forma que a Ciência nos revela os problemas, ela também é capaz de oferecer soluções que vão desde estratégias adequadas de restauração, planejamento e gestão de paisagens diversificadas e multifuncionais até o desenvolvimento de novos modelos de agricultura que preconizem a conservação e reabilitação dos sistemas alimentares e agrícolas. Alternativas existem. Faltam visão estratégica, responsabilidade e vontade política.
O Programa de Mudanças Climáticas e Saúde da Parceria InterAcademias (IAP) é uma iniciativa inter-regional que busca trazer soluções de adaptação e mitigação aos efeitos das mudanças climáticas na saúde humana. Como representante das Américas, a Rede InterAmericana de Academias de Ciência (IANAS) ficou responsável por redigir o relatório para o continente, que será lançado oficialmente em 8 de março de 2022.
Uma prévia do relatório foi disponibilizada em novembro de 2021. O documento traz análises dos principais problemas de saúde que são agravados pelas mudanças climáticas em cada região das Américas. São explorados estudos de caso que contextualizam problemas e soluções para diferentes localidades. A prévia destaca também a necessidade de colaboração entre os sistemas de saúde dos países americanos e o papel crucial que o combate às desigualdades cumpre na luta contra o aquecimento global.
A mensagem do relatório é clara: as mudanças climáticas já são realidade nas Américas. Eventos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes e isso tem impacto direto em nossa saúde e qualidade de vida.
A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em conjunto com a Fundação Nacional de Ciências Naturais da China (NSFC), está organizando dois workshops com o tema “A sinergia entre as pesquisas em mudanças climáticas na China e em São Paulo”.
O primeiro evento foi realizado hoje às 7:00, devido à diferença de fuso-horário com o país asiático. O segundo workshop ocorrerá amanhã, 23 de novembro, no mesmo horário. Participam das discussões os membros titulares da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USO, Marco Antonio Zago, presidente da Fapesp e Luiz Eugênio Mello, diretor científico da Fapesp.
O objetivo do encontro é divulgar as ações de combate às mudanças climáticas que as academias de ambos países estão envolvidas, em alinhamento ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 13 da Organização das Nações Unidas (ONU). Durante o workshop, também se iniciarão novas parcerias para a próxima chamada em 2022, estimulando o intercâmbio de conhecimento fundamental para o enfrentamento dessa crise global.
A 26a Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas chegou ao fim na noite de sábado, 13 de novembro. O documento final assinado ficou conhecido como Acordo de Glasgow e foi recebido com um misto de sentimentos pela comunidade científica.
Por um lado, o tratado trouxe alguns avanços, como na regulamentação do mercado internacional de créditos de carbono e na menção aos combustíveis fósseis, citados pela primeira vez na COP26. Sobre este último, os compromissos ainda são vagos, mencionando apenas um esforço na “redução de subsídios ineficientes”.
O Brasil cedeu a pressões internacionais e se comprometeu a zerar o desmatamento até 2028 e a reduzir em 30% suas emissões de gás metano até 2030. O país vem sofrendo com a deterioração de sua imagem ambiental, e viu governos estaduais e municipais, além de setores do empresariado e ONGs tomarem protagonismo nas discussões.
Entretanto, cientistas avaliam que os compromissos ainda estão longe de atingirem a meta de limitar o aquecimento médio do planeta em até 1.5°C. É o caso do professor da USP e membro titular da Academia Brasileira de Ciências, Paulo Artaxo, que participou presencialmente da conferência na Escócia.
Membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Artaxo avalia que o sistema institucional das Nações Unidas ainda é insuficiente para combater problemas globais. O professor compartilhou com a ABC suas impressões sobre a COP26. Confira a entrevista completa:
A COP26 começou promissora, com acordos importantes. Foi inovadora ao mencionar os combustíveis fósseis, porém, essa parte acabou suavizada. O resultado final foi decepcionante?
Não acho que devemos classificar a COP como um fracasso ou um sucesso. A COP reflete o atual sistema geopolítico e econômico do nosso planeta. Uma observação óbvia é a seguinte: em 26 COPs, é a primeira vez que se menciona a possibilidade de não se utilizar mais combustíveis fósseis na geração de energia. Só esse aspecto já mostra o gigantesco distanciamento entre a ciência – que já fala há 30 anos da necessidade de reduzir combustíveis fósseis – e a realidade dos países, que querem continuar usando à vontade, inclusive o carvão. Existe uma disparidade enorme entre a ciência e a política. Então não se trata de ficar ou não decepcionado, mas de constatar esse gigantesco distanciamento. A Rio-92 ocorreu há 30 anos, a Conferência de Estocolmo há 50. Faz meio século que a ciência enfatiza a necessidade de mudarmos nosso modelo de desenvolvimento econômico, e, basicamente, nada acontece.
Então você diria que essa COP manteve a tendência do “nada acontece”?
Sem a menor dúvida. O documento final da COP é extremamente vago, mesmo nos pontos centrais. Veja a questão do mercado de carbono, que foi apontado como uma das vitórias da COP. No mercado de carbono, se um país ou uma indústria emite mais do que poderia, então ele compra certificados de outro país ou indústria que ultrapassou suas metas. Ou seja, você deixa de emitir em um lugar para emitir em outro, não há ganho líquido para o clima do planeta. Isso tem alguma chance de trazer benefícios climáticos? A resposta é não.
Falando nos créditos de carbono, quais mudanças ocorreram no Pacto de Glasgow?
Antes de Glasgow, não haviam regras explícitas acordadas entre os países sobre como deveria ser feito o mercado internacional de certificados de emissão de carbono. O que temos é uma legislação brasileira, outra americana, outra europeia, e assim por diante. Existiam dificuldades significativas se um país quisesse trocar créditos com outro. Na COP26 isso foi regulamentado. Agora temos regras claras. Visando evitar a dupla contagem, que é quando um país deixa de emitir e registra isso em seu balanço geral do Acordo de Paris, porém um outro país compra esses créditos e também registra a mesma redução. Com a nova regulamentação isso se torna mais difícil de acontecer.
Agora, isso por si só não traz nenhum ganho líquido de redução de emissões, que é o que a ciência cobra. Ajuda o setor privado, abre mais mercados e possibilidades financeiras, mas do ponto de vista de reduzir emissões, não ajuda em nada.
Uma das esperanças que o senhor tinha antes da COP26 era de que compromissos voluntários se tornassem obrigações compulsórias, e isso acabou não se concretizando. Como essa coerção seria possível no contexto da ONU, que atua muito mais por acordos diplomáticos do que por imposições? Que mecanismos poderiam ser adotados?
Esse cenário enfatiza a necessidade de criarmos uma nova governança global para as mudanças climáticas. A ONU não tem mandato e nem foi desenhada para lidar com um problema dessa magnitude, tanto é que todas as decisões devem ser tomadas por consenso entre 196 países. Se algum país tiver restrições não é aprovado, como ocorreu no acordo sobre o carvão, em que a Índia decidiu continuar queimando carvão até 2070. A ONU não tem esse poder. Só que nos desafios das mudanças climáticas, sobre um recurso natural compartilhado por todos os habitantes do planeta, isso é absolutamente necessário. Precisamos de uma nova governança. Se um país não cumpre sua meta de redução, tem que haver punições ou sanções. Atualmente, se o Brasil não cumprir a meta de zerar o desmatamento até 2028, fica por isso mesmo, ele pode dizer que não conseguiu e adiar a meta para 2040. E nada acontece. Vai ser possível resolver o problema com este quadro institucional? A resposta é não.
E é difícil imaginar outro quadro institucional no curto prazo…
Mas é algo que tem que começar a ser discutido. O planeta não tem mecanismos para lidar com questões globais. A pandemia foi um exemplo óbvio, cada país tinha sua própria maneira de enfrentar a pandemia. Cada estado brasileiro tinha uma maneira e cada cidade brasileira tinha critérios diferentes da cidade do lado. Não é possível enfrentar a pandemia com esse sistema de governança, a mesma coisa é com as mudanças climáticas. Sem um novo sistema, que precisa começar a ser discutido agora, não teremos saída. Você olha o Pacto de Glasgow e percebe que não há qualquer garantia, qualquer obrigação, é tudo voluntário, compromissos políticos, nenhuma força jurídica.
Vamos falar do Brasil. O país se comprometeu a zerar o desmatamento até 2028, num acordo que tem participação das 30 maiores instituições financeiras do mundo e prevê a criação de um fundo de US$ 20 bi. É factível que o Brasil cumpra essa meta?
É absolutamente factível acabar com o desmatamento em seis anos. O Brasil já reduziu de 28 mil km² para 4 mil km² de 2002 a 2010 e mostrou que é viável. Não há nenhuma maneira mais barata, rápida e fácil de reduzir emissões do que acabar com o desmatamento de florestas tropicais. Basta cumprir a lei, já que 95% do desmatamento brasileiro é ilegal, é só fazer a Constituição ser válida na Amazônia. Coibir crimes ambientais, invasões de terras indígenas. Seria algo muito estranho acreditar que um país não consiga fazer cumprir sua própria Constituição.
Outro acordo com adesão do Brasil trata da redução nas emissões de metano, o que tem implicações diretas no agronegócio. Como fazer essa redução de emissões, principalmente no setor da pecuária?
Na COP26 estava o presidente da JBS (multinacional da área pecuária). Ele me disse o seguinte: “Paulo, 30% de redução na emissão de metano da pecuária é trivial de ser feito, e com ganho de produtividade”.
Como?
A melhoria da qualidade das pastagens consegue reduzir de 20% a 30% nas emissões, o boi engorda mais rápido e emite menos. Já existem pesquisas bastante avançadas em teste na Embrapa, com aditivos na dieta do gado para diminuir a fermentação entérica, e, consequentemente, reduzir o metano. As duas principais fontes globais de metano são a exploração de gás natural, com vazamentos na produção e no transporte, e emissão na pecuária. Então se as indústrias petrolíferas melhorarem seus procedimentos e impedirem vazamentos, o que é possível com a tecnologia atual, elas têm ganho de produtividade. Na pecuária também é possível reduzir emissões com ganhos de produtividade. É incrível.
As indústrias estão acostumadas com o modelo atual, então acabam se acomodando. Mas se conseguirmos realizar essas reduções, o impacto será muito rápido, a meia vida do gás metano é de apenas 12 anos. Agora, é importante entendermos que essa meta reduz em apenas 0.2 a 0.3 °C. Se reduzirmos o desmatamento, o ganho é muito maior, porque o desmatamento contribui com 17% dos gases de efeito estufa. Ambas são medidas que trazem benefícios econômicos e ambientais.
A participação do setor privado nunca foi tão grande numa COP, muitas empresas foram protagonistas. O senhor viu essa disposição do setor privado como maior até do que de alguns governos para conseguir chegar num acordo?
Muitas empresas não são favoráveis às ações do atual governo brasileiro, então estão atuando por fora. Participaram pelo menos 40 ou 50 presidentes de grandes empresas brasileiras.
Além das grandes empresas, governos municipais e estaduais também tiveram de assumir protagonismo. Quão importante foram essas iniciativas para a imagem do Brasil na COP?
Foram muito importantes, pois mostrou que quem representa nosso país não é só o Governo Federal. Além do setor privado e dos governos locais, as ONGs foram extremamente ativas nas discussões, sobre redução de emissões, sobre povos indígenas. O Brasil mostrou que parte significativa do empresariado brasileiro não se alinha às posições retrógradas do atual governo. Os CEOs da Klabin, Suzano, da JBS e de várias outras companhias estavam lá. Estavam enxergando oportunidades de negócios que poderiam aparecer com a implementação de medidas de redução de emissões, e várias se concretizaram.
E o mercado internacional, está mais atento a agropecuária brasileira?
É evidente que essas empresas perceberam que estava crescendo um movimento de boicote às carnes brasileiras. Supermercados da Inglaterra e da Suécia preferem carnes de países não associados ao desmatamento. O Brasil iria perder mercados de bilhões de dólares, então é bom para eles correrem atrás dessas questões, e deveria ser papel também do Governo Federal enxergar a COP como uma oportunidade de dar a volta por cima.
Como foi a participação do Ministério do Meio Ambiente, representado pelo ministro Joaquim Leite? Houve alguma contribuição concreta?
Acho que temos que olhar o governo como um todo, que não é só o Ministério do Meio Ambiente. A atuação do Itamaraty, por exemplo, voltou a ser muito positiva. Agora, é uma lástima a ausência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação nas discussões. Tem muitas questões científicas envolvidas, mas não se escutou falar do MCTI na COP26.
Sobre o financiamento para que países subdesenvolvidos consigam se adaptar às mudanças e reduzir emissões. O fundo de US$ 100 bi prometido desde o Acordo de Paris ainda está longe de se concretizar. Como está essa questão?
Tivemos um “avanço”, infelizmente. Ficou claro que os países ricos se negam a auxiliar financeiramente os países em desenvolvimento. Esses países se posicionaram contra a estruturação de um fundo e o documento final sequer menciona isso. Enquanto isso, os subsídios dos países desenvolvidos para a exploração dos combustíveis fósseis somam mais de US$ 1 trilhão ao ano. Eles se negaram a ceder 10% desses recursos para reduzir emissões no terceiro mundo.
São os tais “subsídios ineficientes”, conforme ficou redigido no documento final…
O que é um subsídio ineficiente? É incrível a maneira como acabaram contornando essa questão.
Durante a COP26, ocorreram movimentos, principalmente de jovens, simbolizados pela Greta Thunberg, que criticavam duramente a conferência, enfatizando sua ineficácia. Acredita que o que esses movimentos de fato pedem seria justamente uma governança global, com mais poder de transformar promessas em realidades?
Não há a menor dúvida de que a questão das mudanças climáticas mudou muito com o crescimento da pressão popular. Em Glasgow tivemos manifestações de mais de 50 mil pessoas e outras simultâneas em 100 cidades pelo mundo. Em Glasgow, os países desenvolvidos resolveram proteger os interesses das grandes companhias de petróleo e carvão em detrimento de 7 bilhões finais. A resolução final decretou que o mais importante é manter os subsídios aos combustíveis fósseis, e não reduzir emissões imediatamente. O IPCC recomenda reduções de 50% de emissões até 2030 para atingir a meta de 1.5°C
Atualmente, o que conseguiremos atingir seria algo em torno de 2.4°C?
Depende de como a conta é feita, podendo ser de 2.4°C a 2.7°C em média no planeta. Isso significa que no Brasil central e nordeste podemos ter até 3.5°C de aquecimento. Esse cenário inviabiliza o agronegócio, afeta milhões de pessoas, cria migrações em massa em todo o planeta. E tudo isso está sendo feito para proteger o interesse de algumas companhias de petróleo.
Existia uma expectativa na atuação dos EUA, por causa do governo Biden, que tem no combate das mudanças climáticas uma de suas bandeiras. Como o senhor avalia essa participação?
O Biden agiu principalmente em duas medidas, redução de desmatamento e metano. Nenhuma dessas medidas afeta os EUA. Então a disputa geopolítica predominou, foi muito mais forte do que a necessidade de controlar o clima do planeta ao longo dos próximos séculos. O cenário não mudou. Por isso a necessidade de uma nova governança. Enquanto isso não for resolvido, nós vamos ter COP27, 28, 40, 50 sem avançar, e nós não temos esse tempo todo. Já se passaram 30 anos sem medidas concretas e vão se passar mais 30. Enquanto isso o planeta aquece de maneira irreversível.
O Painel Científico para a Amazônia publicou o primeiro Relatório de Avaliação sobre a situação atual do bioma. O lançamento foi feito no dia 12 de novembro, durante o último dia da COP26, e urge pelo desmatamento zero como forma de evitar uma degradação irreversível da floresta.
O relatório é o mais completo levantamento sobre a Amazônia feito até hoje. Participaram 227 cientistas do mundo inteiro, dos quais dois terços são de países amazônicos. O documento é dividido em três partes. A primeira analisa aspectos físicos e biológicos da bacia amazônica e também faz um histórico da ocupação humana na região. A segunda parte foca na influência humana nos ecossistemas e seus impactos. Por fim, a terceira parte indica caminhos sustentáveis para o bioma, com o desenvolvimento de uma bioeconomia que inclua os povos locais e o fim do desmatamento.
A divulgação do relatório ocorreu em meio a uma COP onde o Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento até 2030. Entretanto, dias após o fim da conferência, dados oficiais do sistema Prodes (Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia) indicaram que o desmatamento amazônico em 2021 foi o maior em 15 anos.
Além do compromisso sobre desmatamento, outra meta – a redução nas emissões de gases do efeito estufa (GEE) – também fica comprometida com a destruição da floresta. Cientistas alertam que, no ritmo atual, a Amazônia deixará de ser um sumidouro de carbono global para se tornar emissora, sobretudo por conta das queimadas que assolam a região.
Confira trechos da entrevista concedida pela Acadêmica Mercedes Bustamante para a Folha de São Paulo. Publicada em 6 de novembro, a conversa aborda as mudanças climáticas no contexto brasileiro e a participação do país na COP26.
O relatório do Painel Científico para a Amazônia (sigla SPA, em inglês) foi finalizado para lançamento na COP26. Quais são as principais recomendações do texto?
Um dos primeiros pontos importantes é deter o desmatamento. E a gente não coloca um adjetivo aí, desmatamento legal ou ilegal, é deter o desmatamento e o processo de degradação da floresta.
O segundo passo é organizar as atividades sustentáveis na Amazônia. Há hoje uma série de atividades, algumas já ganhando escala, com base na utilização dos recursos biológicos que comporiam a bioeconomia num sentido mais amplo. Mas existe uma lacuna enorme no que poderia ser feito a partir da integração dos diferentes sistemas do conhecimento: ciência, tecnologia e inovação e conhecimento indígena e tradicional.
O que falta para a construção dessa chamada bioeconomia amazônica?
O conceito de bioeconomia deve ser abrangente o suficiente para a gente olhar povos da floresta, recursos terrestres, recursos aquáticos, agricultura familiar e atividades de maior escala.
O Brasil não conseguiu uma implementação satisfatória dos mecanismos que permitem o acesso aos recursos genéticos nem clareza em relação à repartição de benefícios associados ao conhecimento tradicional. Hoje o país não protege adequadamente o conhecimento tradicional, e eu acredito que também não atenda, de forma satisfatória, nem a indústria nem academia.
Outro gargalo para uma bioeconomia sólida e inclusiva é que ela demanda fiscalização e eliminação de atividades ilegais. Políticas que tenham como premissa a floresta em pé, rios saudáveis. Demanda ações claras de que apropriação indevida de terras púbicas, de unidades de conservação, de territórios indígenas não serão toleradas.
O que seria mais urgente para a gente reverter a situação atual e assegurar a moratória do desmatamento?
Vejo com bons olhos a movimentação dos governadores, das instituições locais, porque elas começam a ocupar o vazio que foi deixado pelo governo federal. Agora, uma boa parte do território amazônico é de responsabilidade de União.
A gente já percebe mercados que se fecham para o Brasil. Esse clima de instabilidade que a gente vive tem consequências econômicas.
Quando falamos de mudança no clima no Brasil, normalmente pensamos na Amazônia, mas o cerrado é segundo maior bioma. Que medidas de proteção são urgentes para a savana brasileira?
Os critérios de sustentabilidade que a gente vem discutindo para a Amazônia se aplicam para todos os biomas brasileiros.
A situação do cerrado preocupa bastante porque o avanço do desmatamento se deu de forma muito rápida.
Quando a gente fala que 50% do cerrado já foram convertidos, as pessoas têm essa impressão de que há 50% intactos, mas estão bastante fragmentados e muitos deles em estágio de degradação.
Apesar de o Código Florestal colocar que tem de conservar pelo menos 20% no cerrado, hoje a maior parte do desmatamento não tem autorização de órgãos ambientais. Novamente, existe o problema do cumprimento da lei. Isso impossibilita que você tenha uma gestão desse processo de ocupação, olhando a paisagem e não a propriedade, que é um dos nossos grandes problemas.
O segundo ponto é que nós temos enormes áreas de pastagens, que continuam sendo o uso prioritário da terra no cerrado. Pastagens que estão degradadas, abandonadas, sobretudo na porção mais antiga de ocupação, no centro-sul.
O que seria possível fazer nessas áreas?
Muitas delas podem ser utilizadas para a agricultura, segurando o desmatamento na porção norte, ou para restauração, para conectar fragmentos importantes que sejam de conservação da biodiversidade.
O terceiro ponto em relação ao cerrado é a mudança de práticas da agricultura de larga escala. No futuro, uma área extensa de monocultura não vai ter mais lugar, porque ela não se sustenta. E ela só tem lucro se tiver essa ocupação em larga escala.
Essa ocupação em larga escala no Matopiba [Maranhão, Tocantins, Piauí, Bahia] enfrenta um risco climático muito grande. E ele vai se acentuar, se a gente não conseguir manter o limite da temperatura em 1,5ºC, da meta do Acordo de Paris.
Isso começa a inviabilizar a agricultura nessas áreas e significa que elas têm de retornar para o centro-sul. Só que o centro-sul já está ocupado, então a gente vai chegar num dilema de competição por área, se não houver planejamento.
Qual a sua opinião sobre a participação do Brasil na COP26?
O governo brasileiro pode levar uma bela proposta, que não está sendo amplamente discutida com a sociedade ou com a academia. As ações são tão contundentes no sentido contrário que uma meta que não tenha a clareza de etapas, como vai ser atingida, tem pouco efeito.
O Brasil está perdendo um tempo precioso. A gente discute muito a questão da redução das emissões dos gases de efeito estufa, sobretudo porque essa emissão vem do desmatamento, mas não vem discutindo adequadamente ações de adaptação, num país em que as camadas sociais mais pobres estão cada vez mais vulneráveis.
Veterano de cúpulas climáticas e um dos maiores especialistas do mundo sobre a Amazônia e o seu impacto no planeta, o climatologista Carlos Nobre diz que a COP-26, que começou ontem em Glasgow, na Escócia, tem como desafio conseguir de governantes o compromisso com metas duríssimas, mas necessárias. Copresidente do Painel Científico para a Amazônia e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), Nobre afirma que a Humanidade tem à frente a década mais desafiadora de sua História.
O que podemos esperar da COP-26?
É uma pergunta de US$ 100 milhões. O momento me lembra o da COP-15, em Copenhague, para a qual havia uma imensa expectativa. Porém, só fomos alcançar os resultados esperados na COP-21, em Paris. E isso aconteceu porque houve um trabalho prévio do governo da França.
Que trabalho?
Uma intensa negociação prévia com os países. Os líderes, como o presidente americano Barack Obama, chegaram com muita coisa já negociada, prontos para o Acordo de Paris.
Por que é tão urgente chegar a um acordo substancial de redução de metas nesta COP?
Porque estamos atrasados. A ciência aponta os riscos há décadas e o último relatório do IPCC é a continuidade disso. Não falamos mais do que pode acontecer, mas do que já ocorre e do que precisamos fazer para tentar impedir que se agrave. E friso que passar de 1,5° C de elevação de temperatura será terrível. Para evitar que isso aconteça, teríamos que reduzir as emissões em 50% até o fim desta década.
Qual a chance de a COP-26 chegar a um acordo neste sentido?
Parece distante com o que temos na mesa neste momento. Este ano, as emissões de CO2 devem superar as de 2019, ainda que a atividade econômica não tenha se recuperado plenamente e enfrentemos a pandemia. Os números do Brasil de 2021 ainda não saíram, mas devem superar 2020, ano em que o Brasil foi um dos poucos países que registrou aumento de emissões, devido ao desmatamento da Amazônia. Este ano, o desmatamento continua a crescer e o governo ligou as térmicas.
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O senhor tem trabalhado com o projeto da Amazônia 4.0 de desenvolvimento associado à exploração sustentável da biodiversidade. O quão rentável pode ser a exploração sustentável da floresta?
Muito rentável. Vou dar um exemplo. Um hectare de sistema agroflorestal rende uma média de US$ 1.000 por ano. Isso representa um rendimento dez vezes maior do que o do gado e cinco vezes superior ao da soja.
E como está o Amazônia 4.0?
Apesar da pandemia, temos conseguido avançar. Conseguimos recursos para o primeiro laboratório que será levado a quatro comunidades no Pará. Ele está em construção em São José dos Campos e será usado para produtos de cacau e cupuaçu, com alta agregação de valor.
Qual a maior urgência da Amazônia?
Fazer uma moratória a jato para o desmatamento e a degradação em toda a Amazônia. Hoje, 17% dela foram desmatados e outros 17% degradados. É preciso zerar o desmatamento, não importa se legal ou ilegal, até porque o Congresso brasileiro tem legalizado as ilegalidades. A palavra legal passou a não significar mais nada por isso. Como 60% da Amazônia estão no Brasil, ele deveria liderar. Mas para isso é preciso de uma política mais enérgica para a região.