Leia entrevista da Acadêmica Normanda Araujo de Morais* com a pesquisadora e Acadêmica Mariangela Hungria da Cunha, publicada na REVISTAq (CNPq/ABC), em 2022:
Mariangela Hungria da Cunha é pesquisadora da Embrapa e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido projetos na área de agronomia, com ênfase em biotecnologia do solo. Recebeu o título de Comendadora da Ordem Nacional do Mérito Científico da Presidência da República em 2008 e na classe Grã-Cruz, área de Ciências Agrárias, em 2018. No ano de 2020 foi contemplada com o Prêmio TWAS-Lenovo em Agricultura e, em 2021, indicada como uma das cientistas mais influentes do mundo (Stanford University) e como uma das mulheres mais poderosas do Agro (Lista Forbes). Desde 2008 é membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e, desde 2022, da Academia Mundial de Ciências (TWAS). É bolsista de Produtividade 1A do CNPq.
Normanda Morais: Que aspectos contribuíram para você se destacar nacional e internacionalmente em sua área de conhecimento?
Mariangela Hungria da Cunha: Olha, é sempre muito esforço. Eu sempre fui muito estudiosa, bastante esforçada, então eu atribuo esse reconhecimento a esse esforço. Procurei fazer as coisas em que acreditava e de que gostava, não me importava com sucesso na carreira, em brilhar, nada disso. Fui fazer microbiologia do solo porque eu gostava daquilo. Os meus professores falavam: “Você é inteligente, você tem que ir para os fertilizantes químicos”, porque era o tema que estava no apogeu, sabe? As pessoas conseguiam empregos bons. Não existia emprego em microbiologia naquela época, era uma área vista como algo que não leva a lugar nenhum. Mas eu dizia “não, não quero ir para os fertilizantes químicos, vou me esforçar, alguma coisa vai dar certo e eu vou conseguir”.
E eu realmente acho que nasci com a vocação para cientista. Desde criança eu adorava tudo relacionado à natureza, gostava de observar as plantas, os bichinhos da terra e também de fazer experiências com a minha avó, que era professora de ciências. Eu tive o grande privilégio, a grande sorte, de ter tido uma avó mágica. E ela realmente me despertou. Eu tinha vocação, mas ela teve um papel fundamental. Por isso acho muito importante termos essa atitude de despertar a vocação nas crianças, desde o jardim de infância. Ainda mais nas meninas, porque queremos aumentar a massa crítica de mulheres na ciência, certo? Se eu não tivesse tido a minha avó, talvez eu tivesse despertado para outra coisa. Mas eu sempre me interessei por ciência, lia sobre a vida dos microbiologistas, queria saber tudo, e me encontrei. Se encontrar é muito importante. Quando fazemos as coisas bem feitas, a gente consegue se encontrar, de uma maneira ou outra.
NM: E institucionalmente? Você tem algum destaque a fazer?
MHC: Sim. Eu estudei em São Paulo, fiz mestrado na Esalq [Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz]. Mas eu não queria ficar em São Paulo. Tinha muita vontade de ir para Amazônia, pro Nordeste. Nessa época, havia uma pessoa super forte, uma mulher fabulosa, a Dra. Johanna Döbereiner [Acadêmica, primeira vice-presidente mulher da ABC], no Rio de Janeiro. Era assim: eu aplicava para ir para a Amazônia e para o Nordeste, mas não conseguia – quem conseguia era quem tinha carta da Dra. Johanna. Então eu pensei: “Vou ter que ir lá pro Rio para ganhar uma carta dessa mulher”. E fui, para fazer o doutorado.
A Dra. Johanna gostou muito de mim. Oito meses depois que eu cheguei, ela me deu um emprego e me convenceu a ficar. Aí eu entrei na Embrapa – e fiquei. Talvez na época, com 23 anos, eu não soubesse valorizar, eu achasse que aquilo que a Dra. Johanna fazia era normal, sabe? Mas hoje eu vejo que não era. Foi um grande privilégio.
A Dra. Johanna estava todo o tempo presente, ela sabia o que cada um ali do grupo fazia. Ela perguntava sobre nossos resultados, queria saber, queria discutir. Eu achava que todo orientador, todo pesquisador, era assim, mas hoje eu vejo que não. No início da carreira, ter alguém que conhece o seu trabalho, que te pergunta, te estimula, é muito importante.
Provavelmente, se eu tivesse ido para alguma outra unidade da Embrapa ou para outra instituição, com 23 anos, onde não tivesse alguém que se interessasse pelo meu trabalho, talvez eu não tivesse ido à frente na carreira. Foi um exemplo muito bom ter tido como chefe mulher uma mulher tão brilhante, que lutava pelas coisas, uma mulher que levava as pesquisas nas costas, super empolgada, que queria que as coisas dessem certo. E que também era mãe. E que sabia cozinhar. Era um exemplo muito positivo para nós, mulheres que viviamos num mundo machista. Ela realmente era um exemplo de “não ligue se falarem que você é mulher, que você não é competente, olhe para mim.” Foi uma influência muito positiva na minha vida.
Agora, pensando nos obstáculos, nas coisas não tão positivas ao longo da minha trajetória… Obstáculos… o preconceito. Quando eu estava no segundo ano da faculdade, engravidei da minha primeira filha, por acidente. Na época, tive que enfrentar muito preconceito.
E tive uma filha especial, com muitos problemas de saúde. Não tinha dinheiro. Não era fácil, eu tinha que trabalhar, naquele tempo não tinha bolsa de iniciação científica. Então eu fazia faculdade e trabalhava numa biblioteca. Era bom, porque eu adorava ler. Fazia muita tradução em casa, de inglês, fazia trabalhos de datilografia.
A gente tinha dificuldades financeiras, mas o que magoava era realmente o preconceito : “Ai, contratar mulher é difícil, porque tem que levar filho ao médico”. Eu ia lá, trabalhava toda noite, trabalhava final de semana e quando tinha que sair um dia para levar minha filha para fazer tratamento, isso era um problema!
Por outro lado, quando minha filha especial teve uma crise muito séria, com 17, 18 anos, posso dizer que o trabalho foi uma fonte de força para seguir adiante, uma válvula de escape, para respirar, tomar fôlego e ir em frente. Tem horas que a gente acha que não vai conseguir. Mas sempre deu certo e acabei conseguindo. Hoje, a minha filha especial é a coisa mais preciosa e querida do mundo.
NM: Na perspectiva de pesquisadora de destaque e mulher, como você avalia a iniquidade de gênero na ciência?
MHC: Essa área das ciências agrárias sempre foi predominantemente masculina. No meu tempo, mais ainda. Mas, está tendo uma reviravolta. Hoje já se encontra às vezes até mais mulheres do que homens nas salas de aula, na pós-graduação da microbiologia, na biotecnologia, que eu também oriento. Um dia desses parei para ver isso e fiz as contas, deu lá que uns 70% dos meus orientados de doutorado eram mulheres. Então, é uma área onde a gente tem visto a diminuição do preconceito e uma maior procura das mulheres por estas áreas da ciência.
NM: Você fez falas muito fortes, enquanto mulher, mãe, pesquisadora e vivendo na pele esse preconceito. E no trato com as alunas, o que é que você tem percebido? Nesse cotidiano, o que se passa?
MHC: Eu sempre falei para as minhas alunas: “Olha, maternidade é uma opção, você pode querer ou não querer. Agora, se você quer, tenha!” Porque não dá para ficar esperando um momento ideal. Talvez, se eu não tivesse engravidado por acaso, eu não teria tido filho.
E daí, as alunas respondem: “Ah, não, vou terminar a graduação”, “vou terminar o mestrado”, “vou terminar o doutorado”, “agora eu quero ir para fora”. E daí, a vida passa e você não tem filhos. Por isso é que eu falo que se quer ter, tenha.
E hoje, é com orgulho que vejo essa valorização da maternidade, esse reconhecimento de que a carreira científica é mais difícil para as mulheres, vejo o CNPq dar esses meses de licença, poder incluir a maternidade no currículo. Isso é fundamental, porque já é uma agonia você ter que terminar uma tese ou dissertação no prazo, e com filho é difícil, a gente não dorme nos primeiros meses! E eu acho que a gente precisa das crianças, a gente precisa crescer como país. Só que, para isso, a maternidade tem que ser considerada na ciência.
NM: Essas situações que você narrou, relacionadas à maternidade, de não poder levar a filha ao médico, também é assédio. Mas sabemos que ocorrem outros tipos de assédio, você presenciou isso, ou não? É uma curiosidade em termos de violência de gênero na academia.
MHC: Sim, quando eu comecei, eu fiquei meio chocada quando eu ia em congressos. Eram realmente congressos majoritariamente masculinos e eu era mulher, era jovem. Parece aquela coisa, sabe? Você ia, se preparava tanto, ficava tão nervosa para apresentar algum trabalho e aí ouvia aquelas observações: “Ah, você estava linda!” Sabe? Eram essas coisas: “Ah, está aí sozinha, está disponível”. E não, não estava. Tinha uma família que estava em casa. Muito legal que eles ficaram em casa para eu poder ir. Então, realmente, eu presenciei várias situações assim.
NM: E, por quais caminhos você acha que passa a mudança desse cenário de iniquidade?
MHC: Olha, eu acho que o fundamental, realmente, são as escolas em tempo integral, com colônia de férias, porque é isso que as mulheres que querem ser mães precisam, elas têm que ter paz de espírito sobre onde deixar os filhos.
Eu, por exemplo, fui pros Estados Unidos fazer pós-doutorado com as minhas duas filhas. Eu já era separada, fiquei lá três anos e meio, fiz dois pós-doutorados, morei em dois locais, nunca tive um dia de faxineira e a gente ficou super bem, por quê? Porque elas tinham escola o dia inteiro. Então, um país que realmente quer que a mulher entre no mercado de trabalho e seja competente tem que oferecer uma estrutura acessível financeiramente, porque no Brasil existem escolas em tempo integral, mas custam um absurdo, poucas pessoas podem pagar. Tem que haver uma estrutura pública que permita que as mulheres possam trabalhar.
A possibilidade da mulher subir na carreira, no Brasil, está muito relacionada ao poder financeiro, é maior para aquelas que tiveram os melhores estudos, que estão nas melhores posições, que têm dinheiro. Agora, veja só, uma aluna de mestrado que ganha mil e quinhentos reais, pode pagar uma escola integral pro filho? Elas geralmente custam mais do que isso e se você for lá na prefeitura, tem fila, é dificílimo conseguir vaga, então isso limita.
Eu acho que a maternidade de jeito nenhum é obrigatória, é realmente uma opção, e quem não quer ter filho, que vá em frente, que se dê super bem. Mas aquelas que querem, elas têm o direito de serem mães e têm o direito também de serem profissionais de sucesso.
NM: Você poderia situar brevemente, por favor, a sua área de pesquisa e projetos atuais?
MHC: Conforme eu já falei, sempre fui apaixonada por microbiologia do solo. Trabalho com microrganismos que conseguem substituir total ou parcialmente os fertilizantes químicos. Quando eu estava na graduação, conforme eu falei, essa área não era bem vista, pois os fertilizantes químicos eram tudo naquela época. Mas eu achava fascinante essa ideia, porque substituindo os fertilizantes químicos diminuímos muito a poluição.
Na época, era grave a situação dos rios e lagos. Depois vieram os conhecimentos sobre gases de efeito estufa. Eu era fascinada pela possibilidade de fazer agricultura, mas com menos impacto ambiental. E trabalhamos para selecionar microrganismos mais eficientes para soja, feijão, milho, trigo, temos tido bastante sucesso nisso. Hoje o Brasil é líder mundial no uso dessa tecnologia, a gente é líder em nível internacional nessa área.
NM: O que a pandemia da covid-19 tem nos ensinado sobre ciência no Brasil?
MHC: Um ponto positivo foi o despertar para a ciência. Eu vi lá em casa. Mora comigo minha mãe, de 91 anos, que tem suas cuidadoras. Elas discutiam
imunidade, vinham me perguntar, eu explicava o que era um RNA, por exemplo. Eu acho que houve um despertar para a ciência. Era muito legal ver professores, pesquisadores, nos jornais, falando na TV todos os dias. Contando o que estavam fazendo, falando sobre vacinas. Eu acho que esse ponto da valorização da ciência foi muito importante.
Em termos pessoais, para a população, foi tudo horrível. Não vejo absolutamente nada de positivo em tanto sofrimento. Um aprendizado que ainda estamos passando, mas que não serviu para nada. Mas para a ciência, foi bom.
NM: E qual o seu sonho para ciência do Brasil?
MHC: É uma grande frustração ser capacitado, ter certeza de que pode fazer uma coisa e não conseguir, porque não há recursos. Eu, por exemplo, quando estava lá nos Estados Unidos, fui convidada para ficar, mas eu não quis. Sou muito grata por ter tido ensino público gratuito e achava que tinha que retornar isso ao país. Sempre acho que um pouco que eu faça, vai fazer muita diferença. É muito triste você saber que pode fazer uma coisa, mas não tem o reagente, não tem o equipamento, não tem nada.
Então, o que eu desejo no futuro é que realmente os cientistas brasileiros possam expressar seu potencial. Agora, por exemplo, a gente está com um problema terrível de fuga de cérebros. Eu tenho alunos que foram para fora e eu fico assim, olhando, quanto eu investi ali em cada um deles. Esse pessoal só está lá fora porque não tem condições de fazer nada aqui. Só espero que no futuro haja isso, que eu nunca tive em toda minha carreira. Se eu tivesse tido os equipamentos, os reagentes… poderia ter feito muito mais. Eu sempre falo que no Brasil a gente não faz pesquisa, a gente faz milagre. Porque fazer o que a gente faz com o dinheiro e a estrutura que nos dão, é milagre mesmo.
Esta entrevista, realizada em 2022 junto com as outras, com Celina Turchi e Marcia C. B. Barbosa, são um importante farol, não só para reconhecermos e fortalecermos mecanismos que historicamente estão relacionados ao sucesso acadêmico (dedicação pessoal; influência de familiares e mentores; formação de qualidade em instituições que valorizam a pesquisa; experiências de internacionalização; financiamento de pesquisas, dentre outros), como também para a sinalização de mecanismos que insistem em perpetuar a iniquidade de gênero na ciência (machismo/sexismo; falta de políticas públicas específicas que valorizem a maternidade e as mulheres na ciência, por exemplo).
Ao trazer um pouco das trajetórias dessas brilhantes cientistas, queremos uma vez mais dar voz e valorizar o papel das mulheres na ciência. Que as gerações futuras de meninas e mulheres cientistas possam ter muitas e muitas Celinas, Marcias e Mariângelas a lhes inspirar…
*Normanda Araujo de Morais é docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor). É membra afiliada da Academia Brasileira de Ciências (ABC) 2020-2024 e bolsista de Produtividade 1D do CNPq.