Leia entrevista da Acadêmica Normanda Araujo de Morais* com a pesquisadora e Acadêmica Marcia Cristina Bernardes Barbosa, publicada na REVISTAq (CNPq/ABC) em 2022:

Marcia Cristina Bernardes Barbosa é professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua na área de física, com ênfase em física da matéria condensada e no estudo da água e de suas anomalias. Por estes estudos, ganhou o Prêmio Internacional L’Oréal-Unesco para Mulheres nas Ciências em 2013. Por sua atuação junto à pós-graduação, ganhou o Prêmio Anísio Teixeira da Capes em 2016, tendo sido agraciada pela Presidência da República com a Ordem Nacional do Mérito Científico, como comendadora, em 2018. No ano de 2019, foi indicada como uma das mulheres que mudou o mundo com a ciência pela ONU Mulheres e, em 2020, foi indicada como uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil, pela Forbes Brasil. Em 2022, foi nomeada para chefiar a Secretaria de Políticas Públicas e Programas Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).  Desde 2014 é membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e, desde 2020, da Academia Mundial de Ciências (TWAS). É bolsista de Produtividade 1B do CNPq.

Normanda Morais: Que aspectos contribuíram para você se destacar nacional e internacionalmente em sua área de conhecimento?

Marcia Cristina Bernardes Barbosa: Olha, eu acho que foram os “não” que eu ouvi. Eu não sou subserviente, não fui subserviente ao poder estruturado quando eu era estudante. Eu questionava em sala de aula o poder dos grandes professores. E cientistas têm que ser assim, meio questionadores mesmo. E “porque sempre foi assim!” ou “porque sim!” nunca foram respostas para mim. Professor é pessoa, igual a todo mundo. Pode ser importante, pode ser reconhecido, mas o estudante de ciência tem que questionar. Nem tudo que aquela pessoa diz é verdade. Então, não é questionar brigando, é questionar com
tranquilidade. Dizer que não acha que tem que ser assim, que vai tentar fazer de outro jeito e que, se quebrar a cara, vai assumir. 

Outro aspecto é que eu sempre fui a estrela principal da minha vida. Em ciência, as pessoas têm diferentes estratégias. Têm cientistas que gostam de começar a carreira em um grupo grande, ouvir os mais velhos e aí, em algum momento, ele ou ela se torna o mais velho. Eu, muito jovem, fundei meu grupo de pesquisa, por contingências e porque eu sou assim. Eu não fico ouvindo “faz assim”. Por quê? Eu quero fazer de outro jeito. Então esse questionamento foi um ingrediente importante para eu me sentir tranquila no ato de fazer o que eu acho que devo. Essa atitude potencializou algumas coisas, permitiu que, em momentos-chave, ficasse muito claro que quem tinha feito o que eu fiz fui eu. Não um chefe ou uma chefe, mas eu mesma, porque só tinha eu na sala, então era eu que tinha feito.

NM: E em termos institucionais, você destacaria algum aspecto que marcou a sua trajetória?

MB: Tudo. O Instituto de Física da UFRGS, onde eu me formei, foi muito importante, porque as pessoas tinham uma paixão pela ciência. Eu discordava da metodologia, porque era uma época em que as pessoas eram muito autoritárias para o meu gosto. Eu enxergava isso, mas entendia que elas eram autoritárias porque tinham um desejo de que as instituições fizessem pesquisa. Foi muito importante eu entender essa paixão, esse desejo, essa opção pela pesquisa.

Quando terminei o doutorado tinha um concurso que eu poderia fazer, mas sabia que se eu fizesse o concurso e passasse, eu teria que ficar. Então decidi passar um tempo fora do Brasil primeiro. Essa decisão de ir para o exterior muito jovem, me desafiar em um grupo muito importante, tentar sobreviver lá e fazer todos contatos possíveis e imagináveis para depois voltar para o Brasil foi decisiva. E aí voltei para o Brasil, consegui fazer um concurso e entrei para a UFRGS. Então optei por tentar internacionalizar, porque era o jeito de cultivar essa paixão que eu tinha aprendido na instituição, a paixão pela ciência. Eu via que as pessoas tinham feito vidas profissionais com sacrifício para montar uma instituição que priorizasse a pesquisa. Então resolvi me jogar nesse caminho, de modo parecido com o que outros fizeram.

NM: Que obstáculos você enfrentou para chegar onde chegou?

MB: A primeira coisa é que eu vinha da escola pública. Aí entrei numa universidade em que, na minha época, só tinha gente vindo das escolas privadas. Sou da geração dos yuppies, como chamam nos Estados Unidos, aquela geração que nasceu para brilhar — mas não quando vem de escola pública. E eu achava que era brilho demais pro meu gosto, todo mundo achava que ia ganhar o Prêmio Nobel no ano seguinte e eu achava muito engraçado. Mas foi um baque de diferença de formação. Não foi só diferença de formação no sentido da auto estima, que era mais elevada nos outros, mas a diferença de formação intelectual, pessoal. Eu nunca tinha lido filosofia, eu nem sabia quem era Karl Marx. Eu não sabia um monte de coisas que eram cruciais naquela época da ditadura militar. 

O segundo baque era ser mulher nas ciências físicas, onde não tinha mulher, onde eu olhava em volta e via algumas lideranças femininas, mas que eram muito sufocadas. Era um momento em que, nas universidades, não tinha muitas mulheres “no poder”, nem nas áreas sociais e biológicas, nem na liderança estudantil. Eu achava que tinha alguma coisa esquisita.

NM: Pensando nessa iniquidade na ciência de uma forma mais ampla, como é que você tem se situado com relação a isso? Viu muitas colegas ficarem pelo caminho?

MB: Muitas! Quando eu era aluna de iniciação científica, via os professores “poderosos” e não ia muito com a cara deles. Primeiro porque eu sentia que, como eles eram muito autoritários, haveria confronto, eu via que não ia dar certo. A primeira coisa que eu fiz, então, foi trabalhar com uma mulher – e vi ela sofrendo a pressão dos “poderosos”. Ela era brilhante, fazia um trabalho bonito, cuidadoso, difícil. Mas acabou largando a ciência e indo para a área administrativa. Quando eu vi aquilo acontecendo, pensei que estava muito errado. Comecei a ver outras mulheres que começaram brilhantes, mas eram chamadas de “esforçadas”. E elas acabavam indo por outro caminho, mas não por opção, por exclusão!

E fui vendo outras coisas ainda piores. Em um determinado momento, vi um desses “poderosos” comparando um aluno e uma aluna e ele dizia: “Ele é bom, ela é esforçada”. E ela era muito mais brilhante que o aluno. Eu pensava “Mas o que é isso? O que esse professor está fazendo com a auto-estima da aluna?”. Sem falar nas mulheres que sofreram assédio. Eu via todas as formas de assédio e as mulheres desistirem por causa disso. Elas iam fazer outra coisa, iam para outro ambiente. Eu via acontecer e não tinha poder para resolver. Mas eu reservava o sentimento para um momento em que eu pudesse fazer alguma coisa. Pensava: “Quando eu puder, quando eu estiver mais forte, eu vou trabalhar nesse assunto”. Porque é simplesmente inaceitável.

NM: Então, você falou do assédio, da desvalorização da competência da mulher cientista. E a questão da maternidade, como é que você percebe isso influenciando essa desigualdade?

MB: Eu não tenho filhos, uma opção bem pessoal. Eu tenho muitos outros interesses e a maternidade não “cabia” com esses outros interesses. Você pode “querer não querer”… Eu podia “querer não querer” e poderia decidir “querer” a qualquer instante. Eu não tenho nenhum problema com esse assunto. Percebo que a maternidade muda os tempos da produção científica. Tem um grupo maravilhoso chamado Parent in Science que estuda isso e mostra que a produção das mulheres diminui quando se tornam mães. 

Quando eu entrei na União Internacional de Físicos, há 20 anos, foi criado um grupo de trabalho para olhar a questão da mulher na carreira. Aí tomamos uma atitude absolutamente diferente. Em vez de olhar pro estudo, criamos um grupo e fizemos um grande evento internacional, em Paris. Na época, eu era uma pesquisadora muito jovem e o resto do grupo era só de gente importante. Eu virei a coordenadora do grupo, porque havia um desafio. Era 1999, o começo da internet. Eles diziam: “Como é que a gente vai montar esses times?” e eu dizia: “Eu tenho contatos no mundo inteiro, eu monto os times”. E aí fizemos um evento tendo como tema fundamental “Como conciliar carreira e família”. Esse tema era central, porque a carreira científica era desenhada para homens.

Desde então esse grupo existe, reúne 65 subgrupos, cada um fazendo política científica em seus respectivos países, olhando vários aspectos. Esse tema é muito central, porque é bastante perceptível que a mudança na carreira de um homem, com filho ou sem filho, é zero. Mas ter filhos muda a carreira de uma mulher cientista, é diferente. Temos aí duas questões que precisam ser resolvidas. Uma é a incorporação da família ao cotidiano do trabalho e outra é trazer o homem para a tarefa de cuidar da família. A maternidade não é uma questão individual e isso tem que estar claro nos projetos das empresas, das instituições, como é que elas vão lidar com essa questão.

Na UFRGS, organizamos um concurso para docente que leva em conta a maternidade. Se a banca não tiver mulheres, vai ter que justificar o porquê de não ter mulheres. Temos que começar a incorporar isso na distribuição de trabalho, permitindo que as pessoas que têm filhos consigam progredir na carreira, alcançar postos de destaque. Eu quero pessoas com filhos na ótica da construção das instituições, porque traz um olhar distinto.

NM: Especificamente na física, como você percebe isso?

MB: No mundo inteiro, a física tem um problema: o percentual de mulheres não avança ou avança muito pouco. Então, nós precisamos trabalhar na base para que as crianças, as meninas, percebam que física também é para elas. Para isso a gente precisa fazer um investimento. As pessoas que compõem o ambiente acadêmico da física têm que perceber que a diversidade é um instrumento de ciência.

Um colega meu disse, uma vez: “A física viveu tão bem sem as mulheres, por que você quer tanto que elas venham”? Porque trazer a diversidade transforma o conhecimento e isso não está acontecendo, no Brasil nem no mundo. Acontece em algumas áreas de ciências sociais, onde o ingresso da diversidade está estimulando outros olhares e outras perguntas. Porque a diversidade faz com que olhemos a resposta de uma pergunta de um jeito diferente. E faz mais, possibilita que outras perguntas sejam feitas. Então precisamos trazer mais gente com diferenças culturais, com histórias diferentes, para olhar para as soluções de problemas e desenhar instituições diferentes.

NM: Você poderia situar brevemente a sua área de pesquisa e projetos atuais?

MB: Eu estudo física básica. Tento entender e manipular os mais de 70 comportamentos estranhos da água. Um desses comportamentos é que a água flui super rápido quando passa por furinhos nanométricos. Um nanômetro corresponde a um fio de cabelo partido 60 mil vezes. Nessa condição, a água flui muito rápido. Fazemos simulações mostrando isso, como isso muda com diferentes materiais, buscamos entender as interações. Assim, tentamos desenhar computacionalmente filtros para limpeza de água, ou filtros para captar água, entendendo as “maluquices” da água.

Estamos querendo usar esses truques, dela fluir rápido por espaços pequenos, dela gostar muito de certas superfícies, odiar outras. Brincamos com as anomalias da água para propor estruturas que serão capazes de produzir água limpa em pequena escala, estruturas para ter em cidades pequenas, em uma região pequena, para passar a noção da ciência escalável no pequeno, a ciência possível para qualquer parte da sociedade.

Eu já fui à Jordânia e quando eu mostrei meu projeto, algumas pessoas perguntaram se já tem protótipo. E eu digo não, que sou teórica. Agora eu tenho alunos engenheiros que estão começando a pensar em como fazer de verdade. Porque a Jordânia não tem como fazer uma planta de verdade, é um país pequeno, pobre. Então, essa visão da ciência básica que atua num problema concreto, de olho no meio ambiente, é um setor da minha cabeça.

Um outro setor que tá lá do outro lado dessa minha cabeça é olhar para a questão de gênero com um levantamento de dados e com compreensão do que está melhorando, do que está acontecendo, e assim oriento funcionários do governo que querem fazer doutorado nessa área enquanto trabalham. E uma terceira área é olhar a construção de políticas públicas baseadas em evidências. Então, de novo, funcionários do governo que querem discutir, por exemplo, acesso aberto, que é um instrumento global. O que são os instrumentos que a gente pode construir para desenhar políticas baseadas em evidências para acesso aberto? Eu escrevi para as agências e ninguém está pensando direito nesse assunto, muito menos em construir políticas. Publicamos sobre políticas existentes no mundo, sobre o que está acontecendo no Brasil sobre esse tema, por que é que acontece do jeito que acontece e como poderíamos contribuir para modificar. Olhar políticas e instrumentos de política de acesso aberto é um exemplo, mas eu olho outros exemplos, voltados para como construir política baseada em evidências.

NM: O que a pandemia de covid-19 tem nos ensinado sobre ciência no Brasil?

MB: Primeiro que o Brasil faz ciência, faz ciência de ponta. Mas eu acho que o que o cientista brasileiro mais aprendeu é que ele precisa falar com as pessoas. 

NM: E qual o seu sonho para ciência do Brasil? Quais são as suas perspectivas?

MB: Meu sonho é implantar no Brasil uma política que seja de Estado, que independa do governo, que a gente consiga ter financiamento regular, ininterrupto, que forme as pessoas. Pessoalmente, eu ainda sonho em conseguir construir um dia, eu ou meus alunos, esse protótipo que vai vir do Brasil para ter água limpa no mundo. Porque o próximo grande desafio mundial vai ser a água. Precisamos ter soluções e que lindo ia ser, uma solução que venha aqui do nosso país.


Esta entrevista, realizada em 2022 junto com as outras, com Celina Turchi e Mariangela Hungria, são um importante farol, não só para reconhecermos e fortalecermos mecanismos que historicamente estão relacionados ao sucesso acadêmico (dedicação pessoal; influência de familiares e mentores; formação de qualidade em instituições que valorizam a pesquisa; experiências de internacionalização; financiamento de pesquisas, dentre outros), como também para a sinalização de mecanismos que insistem em perpetuar a iniquidade de gênero na ciência (machismo/sexismo; falta de políticas públicas específicas que valorizem a maternidade e as mulheres na ciência, por exemplo).

Ao trazer um pouco das trajetórias dessas brilhantes cientistas, queremos uma vez mais dar voz e valorizar o papel das mulheres na ciência. Que as gerações futuras de meninas e mulheres cientistas possam ter muitas e muitas Celinas, Marcias e Mariângelas a lhes inspirar…


*Normanda Araujo de Morais é docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor) É membra afiliada da Academia Brasileira de Ciências (ABC) 2020-2024 e bolsista de Produtividade 1D do CNPq.