Leia entrevista da Acadêmica Normanda Araujo de Morais* com a pesquisadora e Acadêmica Celina Maria Turchi Martelli, publicada na REVISTAq (CNPq/ABC) em 2022:

Celina Maria Turchi Martelli é pesquisadora do Instituto Aggeu Magalhães, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Pernambuco). Coordenadora do Grupo de Pesquisa da Microcefalia Epidêmica (MERG), ela tem desenvolvido projetos na área de infecção pelo vírus zika desde 2015, quando junto com sua equipe conseguiu identificar a associação do vírus zika com a microcefalia. Especialista em epidemiologia das doenças infecciosas, Celina Turchi foi citada entre as dez cientistas mais importantes do mundo, segundo a revista Nature, em 2016, e selecionada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes em 2017. Em 2018, foi agraciada com a Medalha Nacional do Mérito Científico, pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. É membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) desde 2018. É bolsista de Produtividade 1C do CNPq.

Normanda Morais: Que aspectos contribuíram para você se destacar nacional e internacionalmente em sua área de conhecimento?

Celina Maria Turchi MartelliAcredito que fazer parte do grupo de pesquisadores do Instituto Aggeu Magalhães Fiocruz (IAM-Fiocruz) foi fundamental no processo de formação rápida de um grupo-tarefa durante a pandemia de zika associado aos surtos de microcefalia grave de 2015 e 2016. Reconheço também o papel fundamental do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás, a instituição de ensino e pesquisa em que atuei durante quase três décadas e que faz parte da minha trajetória de pesquisadora e professora.

O reconhecimento científico nacional e internacional acontece, em geral, com o grupo de pesquisadores que, com suas investigações, consegue fazer avançar o conhecimento científico. Inicialmente, coordenei o Grupo de Pesquisa da Microcefalia Epidêmica, força-tarefa formada para investigar a causa do surto de microcefalia detectado no Nordeste do Brasil, no período da declaração de Emergência em Saúde Pública de Interesse Nacional e Internacional em 2015 e 2016. Desde então, pesquisamos diferentes aspectos do espectro da síndrome da zika congênita em coorte de crianças e, também, as questões relacionadas à infecção viral em gestantes e o sistema de vigilância.

Finalmente, o apoio do CNPq foi decisivo na minha formação de pesquisadora, me dando oportunidade de desenvolver investigação em áreas prioritárias. Recebi bolsa de pós-graduação na London School of Hygiene and Tropical Medicine, Inglaterra, oportunidade que considero fundamental na minha formação e trajetória profissional. Tenho orgulho de fazer parte dos pesquisadores que recebem a chancela de bolsistas de pesquisa do CNPq; colaborei no Comitê de Assessoramento (CA) de Saúde Coletiva e Nutrição e atuo como parecerista de projetos. Como pesquisadora, reconheço o CNPq como instância pública essencial para o avanço e continuidade das atividades científicas no Brasil.

NM: Que obstáculos você enfrentou para chegar onde chegou?

CT: Penso que nós, pesquisadores em epidemiologia das doenças infecciosas e saúde pública, enfrentamos alguns desafios ao longo das últimas décadas. A descontinuidade e a redução de financiamento e a falta de incentivos para formação de pesquisadores estão entre os principais.

Posso dizer que a descontinuidade de algumas linhas importantes de pesquisa e mesmo a falta de condições mínimas de retenção de pesquisadores jovens no Brasil são verdadeiros obstáculos. Investigar em tempos de pandemia é como atuar em situações extremas, de guerra, em que respostas urgentes são essenciais para tomar decisões de saúde pública. Trabalhar sob pressão, com incertezas e sob visibilidade midiática são, sim, desafios enfrentados pelas equipes de pesquisa em tempos de pandemia.

Além da competência  científica, precisamos desenvolver habilidades para comunicar os resultados da pesquisa para a sociedade em geral. Nessas circunstâncias especiais, a existência de equipes multidisciplinares competentes, trabalhando em instituições consolidadas, com experiência prévia em pesquisa e na divulgação dos resultados são fundamentais.

NM: Na perspectiva de pesquisadora de destaque e mulher, como você avalia a iniquidade de gênero na ciência?

CT: Estamos inseridas em uma sociedade desigual do ponto de vista socioeconômico, de gênero e de raça. Somos maioria no campo da área da educação e saúde em geral, mas não nas posições decisórias nos conselhos, direção dos institutos de pesquisa e ainda somos poucas nas representações governamentais para formulação de políticas públicas. Mas gostaria de ressaltar os avanços, citando a presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Nisia Trindade Lima [hoje ministra da Saúde], que vem liderando com sucesso essa reconhecida instituição de pesquisa, em situação de grande turbulência de saúde pública, devido às pandemias de zika e de covid-19 e suas consequências dramáticas, nacional e globalmente.

NM: Especificamente, nas ciências médicas, como você percebe isso?

CT: Pandemias, em geral, não são gênero-neutras. Lembramos que a última pandemia de zika, com eventos congênitos, atingiu de forma desproporcional as mulheres na sua saúde reprodutiva. Acrescente também a carga enorme para as mulheres que, geralmente, são as cuidadoras das crianças acometidas.

Vale lembrar que, nessa prolongada sindemia da covid-19, as mulheres representam um grande percentual de trabalhadoras em saúde, chegando a quase 90% nas categorias que prestam os cuidados diretamente aos pacientes internados pela doença, no que diz respeito às equipes de enfermagem.

NM: Você poderia situar brevemente a sua área de pesquisa e projetos atuais?

CT: Mesmo durante a sindemia de covid-19, o grupo de pesquisa do qual faço parte continuou o monitoramento das crianças com síndrome da zika congênita e a análise de dados da vigilância epidemiológica.

Aqui ressalto a interseção entre duas emergências de saúde pública. As restrições de movimento (lockdowns) exigidas pela epidemia de covid-19, além dos entraves econômicos e de sobrecarga dos serviços de atenção à saúde, prejudicaram o atendimento aos pacientes com outras doenças e também as atividades de campo de pesquisa. Somatório de tragédias.

No entanto, o período de pandemia foi marcado por intensa produção acadêmica e de desenvolvimento tecnológico, produzindo enormes avanços científicos.

Desde o início da pandemia de covid-19 temos analisado dados regionais do sistema de vigilância para subsidiar a tomada de decisão dos gestores em saúde. Participamos também de pesquisa sobre os fatores de risco e as condições de trabalho dos profissionais de saúde que atuam na linha de frente, especialmente no atendimento aos pacientes com covid-19 naregi ão metropolitana de Recife, em Pernambuco. 

Esse projeto foi expandido para outras capitais do Brasil, em esforço multicêntrico para avaliar os riscos inerentes ao trabalho profissional durante a crise de saúde nas diferentes regiões do país.

NM: O que as pandemias da zika e da covid-19 tem nos ensinado sobre ciência no Brasil?

CT: Pandemias como a de zika mostraram que com instituições de pesquisa sólidas, com serviços de saúde pública de qualidade, como o SUS, e com coordenação nacional é possível controlar, ou ao menos minimizar, os danos decorrentes de crises sanitárias extremas. Acredito que há muito espaço para melhorarmos, em termos de políticas públicas de incentivo à pesquisa, desenvolvimento e educação.

NM: Quais as suas perspectivas e sonhos para a ciência no Brasil?

CT: Sonho com um país menos desigual, com educação para todas e todos e com o estabelecimento de políticas públicas de incentivo à produção de conhecimento. As perspectivas imediatas não parecem promissoras para a ciência. No entanto, os pesquisadores brasileiros vêm se empenhando arduamente na busca de respostas e da comunicação dos seus conhecimentos para a sociedade.


Esta entrevista, realizada em 2022 junto com as outras, com Marcia Barbosa e Mariangela Hungria, são um importante farol, não só para reconhecermos e fortalecermos mecanismos que historicamente estão relacionados ao sucesso acadêmico (dedicação pessoal; influência de familiares e mentores; formação de qualidade em instituições que valorizam a pesquisa; experiências de internacionalização; financiamento de pesquisas, dentre outros), como também para a sinalização de mecanismos que insistem em perpetuar a iniquidade de gênero na ciência (machismo/sexismo; falta de políticas públicas específicas que valorizem a maternidade e as mulheres na ciência, por exemplo).

Ao trazer um pouco das trajetórias dessas brilhantes cientistas, queremos uma vez mais dar voz e valorizar o papel das mulheres na ciência. Que as gerações futuras de meninas e mulheres cientistas possam ter muitas e muitas Celinas, Marcias e Mariângelas a lhes inspirar…


*Normanda Araujo de Morais é docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (Unifor) É membra afiliada da Academia Brasileira de Ciências (ABC) 2020-2024 e bolsista de Produtividade 1D do CNPq.