A Acadêmica Thaiane Oliveira junto de Glaucius Oliva, vice-presidente para a região de São Paulo e coordenador da séries de mentorias, e os organizadores do encontro, os membros afiliados  José Rafael Bordin e Nara Quintão.

O mundo passa por uma crise informacional muito grave. Em todo o planeta, a desconfiança nas fontes tradicionais de conhecimento é fomentada por interesses políticos e econômicos explícitos, e nem a ciência está a salvo. Pensando nisso, a Academia Brasileira de Ciências realizou nesta terça-feira, 25 de outubro, a mentoria “Enfrentando a Desinformação Científica”, com a nova afiliada Thaiane Oliveira.

Thaiane é professora do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF); coordenadora do Laboratório de Investigação em Ciência, Inovação, Tecnologia e Educação (Cite-Lab) da UFF; pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC); pesquisadora da Cátedra Unesco de Políticas para o Multilinguismo; e membra afiliada da ABC eleita pela Regional Rio para o período 2022-2026.

A desinformação científica e o Brasil

De acordo com uma pesquisa de 2019 do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), 39% dos brasileiros são céticos em relação à ciência e 50% só acreditam quando a evidência científica corrobora suas crenças pessoais. Esses resultados estão acima da média mundial, e refletem uma sociedade que já estava impregnada em desinformação mesmo antes da pandemia. “É uma crise de descrédito das instituições epistêmicas, as pessoas começam a questionar autoridades que estavam estabelecidas, como médicos, cientistas, a mídia, o judiciário, e por aí vai”, explicou a Acadêmica.

Esse caos informacional não se dá de forma desinteressada. Pelo contrário, é semeado de forma coordenada e visando sustentar novas narrativas políticas. Para estudá-lo é preciso método e capacidade de compreender separadamente fenômenos que são semelhantes, mas não idênticos. Por exemplo, teses que simulam o rigor científico para fazer alegações inverificáveis e até metafísicas, como é o caso da astrologia, são chamadas de pseudociência. Mais graves são as posturas anticiência, que rejeitam completamente o método científico, e negacionistas, que se amparam no contraditório, natural do método, para constantemente fabricar incertezas onde existiam consensos.

Assim surgem as Fake Sciences, as notícias falsas científicas, que se apropriam de signos e estéticas da ciência tradicional para criar narrativas mentirosas e novas autoridades. Uma das formas de fazer isso é cooptando pessoas do próprio meio com alinhamentos ideológicos e agendas políticas, que acabam servindo de contraponto à imensa maioria da comunidade científica, tratada como corrompida através de teorias da conspiração. “O Brasil é o único país onde a história da cloroquina ainda circula. Isso ocorre porque aqui o tema foi impulsionado por pressão política e encontraram várias ‘autoridades’ para disputar a simbologia científica”, afirmou Oliveira.

Outro método de desinformação muito utilizado é a valorização da experiência individual como parâmetro de análise. Pessoas que supostamente haviam usado cloroquina e se curado foram tratadas como evidências sólidas, algo sem qualquer rigor metodológico – afinal de contas, a imensa maioria dos que contraíam covid-19 se recuperava, independente da medicação. Esse falseamento também foi utilizado contra as vacinas, e relatos inverificáveis pipocaram sobre supostos efeitos colaterais dos imunizantes.

Esse problema não está restrito às redes sociais, pois acabam englobando também os chamados veículos tradicionais. Para Thaiane Oliveira, a cobertura da pandemia pecou muito por não compreender o processo científico e privilegiar a controvérsia pura e simples, ao invés de explicar de forma cuidadosa e crítica o complexo trabalho dos cientistas. “A dúvida faz parte da ciência, o que não significa que essa dúvida deva ser midiatizada numa busca incessante pelo ‘outro lado’, sobretudo num momento de instrumentalização política. Isso não ajudou a compreensão pública”, avaliou.

Enfrentando o problema

Mas como combater a desinformação científica? Essa pergunta não tem uma resposta final, mas existem algumas alternativas.

A mais óbvia é a checagem dos fatos, e muitas agências voltadas apenas para esse fim surgiram nos últimos anos. Entretanto, é notório que a checagem tem alcance menor do que a mentira, que pode permanecer circulando mesmo após verificada. Pesquisas apontam que a checagem, para ser efetiva, deve trazer explicações detalhadas sem ancorar-se apenas no argumento de autoridade, enfatizando a correção e não o erro em si. As etiquetas de checagem e notificações nas redes têm contribuído para melhorar a comunicação nas plataformas, que estão lidando muito melhor com o problema do que há alguns anos.

Mas se o argumento de autoridade sozinho não é suficiente, continua sendo crucial estabelecer credibilidade, principalmente de divulgadores científicos que atuem para difundir informação de qualidade no debate público. Esses atores terão de enfrentar um ecossistema desigual, onde as mediações algorítmicas tendem a privilegiar a contradição e o engajamento, mesmo quando sem embasamento. “Cabe aos cientistas privilegiar abordagens multidisciplinares, levando em conta que as pessoas são influenciadas por todo um sistema de crenças e têm vontade de participar ativamente da construção do conhecimento”, enfatizou Oliveira.

Por último, Thaiane Oliveira destacou também um debate urgente que o Brasil terá de fazer: a regulamentação da informação e o papel da mídia. A legislação brasileira é anterior à internet e não previu muito de seus fenômenos. “Quando lideranças importantes apoiam a desinformação, fica muito difícil para o cidadão diferenciar. Esse é um debate delicado, mas que teremos que fazer alguma hora”, finalizou.

Combatendo a desinformação de dentro para fora da academia

“Sou de uma geração onde pensávamos que a educação era o mote de transformação do mundo. Esses tempos mais recentes têm me mostrado que não há uma correlação direta entre informação e racionalidade, já que houve um enfraquecimento desses laços”, comentou Glaucius Oliva (IFSC-USP), vice-presidente da ABC para a Região São Paulo e coordenador do evento.

O Acadêmico Paulo Murilo Castro Oliveira (UFF) trouxe para o debate uma outra questão preocupante: a desinformação vinda de membros da universidade. Referindo-se  principalmente aos casos de médicos que apoiaram o “tratamento precoce” contra a covid-19, o cientista afirmou que esse tipo de desinformação é ainda pior do que a que vem de fora, pois “desacredita a universidade e o todo o conteúdo produzido internamente”.

Complementando o tópico, Priscila Oliveira Silva Bomfim (UFF) apontou a existência de uma lacuna na formação dos cientistas em geral, que deveria ser prevista no plano pedagógico das universidades, abordando questões éticas e a comunicação cientifica para jornalistas. Ela destacou a necessidade de instauração de um movimento de debates em prol da inclusão de estudos de ética na formação acadêmica, com vistas à melhor formação profissional.

Para a a Acadêmica, apesar das ocorrências recentes a ciência brasileira teve mais acertos do que erros em relação propagação de conteúdo verdadeiro durante a pandemia. Para aprimorar a comunicação em pandemias e crises sanitárias futuras, Oliveira propôs a criação de um plano institucional de media training, capaz de criar uma ponte entre a informação científica e jornalistas. “Isso é muito importante para exercemos de fato nosso papel de transformação social”, explicou Oliveira. “Nossos cientistas precisam saber como comunicar suas descobertas de uma forma clara e acessível, para que os jornalistas não repassem informações equivocadas.”

Ciência como ferramenta política

O Acadêmico Marcelo Knobel (Unicamp) alertou para a guerra de narrativas que se instaurou nas redes sociais, independente de comprovação sobre a falsidade do conteúdo veiculado.

O ex-reitor da Unicamp defendeu a regulação das redes e das mídias sociais, com intuito de controlar o frequente assédio de que os cientistas têm sido vítimas. “O que temos vivido nos últimos tempos não é apenas desinformação, mas também ataques, acusações, discursos de ódio. Esses ataques precisam ser tratados de maneira correta, inclusive enquadrados dentro de uma legislação já existente.”

Para Knobel, não podemos continuar dando voz a esses ataques como se fosse algo natural ou fruto de uma falta de conhecimento científico. “Não podemos deixar a mentira tomar conta dentro dessa disputa de narrativas”, alertou Knobel, sinalizando o ataque reiterado às instituições científicas.

De acordo com Oliveira, esses fatos acentuam a necessidade de repensar o sistema educacional atual. “A partir do momento em que um sujeito acredita que a água com limão pode, de fato, curar o câncer ou que vacina é uma forma de controle em massa da população, é um sinal de que estamos pecando na educação em algum momento.” Ela propôs a inclusão da sociedade enquanto parte do processo de produção de conhecimento, para que equívocos como este sejam esclarecidos.

Combate ao ceticismo

Na opinião do Acadêmico Jorge Almeida Guimarães, ex-presidente da Capes e da Embrapii, há um jogo de interesses na relação governo e ciência. “Esse jogo é composto por múltiplas camadas, incluindo ceticismo, crenças, conservadorismo, além de razões politico-econômicas”, apontou. Em uma reflexão sobre o descaso com a ciência brasileira nos últimos anos, Thaiane Oliveira ressaltou que “o ceticismo enquanto um sistema de dúvida é comum, mas não pode ser utilizado como uma máscara para disfarçar o interesse politico e econômico relativo à produção de conhecimento.” 

Esse conflito de interesses, causado pelo desencontro entre conhecimento científico e os interesses dos governantes, precisa ser esclarecido para a população brasileira. Segundo Oliveira, o cinismo é um fenômeno complexo que precisa ser desvendado. “A pandemia permitiu que recuperássemos o entendimento e a percepção pública daquilo que desenvolvemos em nossos institutos. No entanto, o ceticismo também avançou”, explicou. “Esta é mais uma oportunidade para repensarmos nossos processos e formas de produção, de formação e de comunicação. O quão, afinal, estamos sendo efetivos?”