Duzentos anos depois, a Independência pode ser analisada como uma obra incompleta. Para estimular o pensamento crítico sobre as vulnerabilidades que permanecem ao longo desses dois séculos, o Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) está promovendo, nos dias 15, 20 e 21 deste mês, o evento “Bicentenário da Independência e os rumos do Brasil”, no campus Praia Vermelha, na Urca, no Rio de Janeiro. A inscrição é gratuita e aberta ao público, com encontros presenciais e on-line. A curadoria do evento foi dos professores da universidade, o cientista político Luis Manuel Rebelo Fernandes e a bióloga Christine Ruta, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.
A mesa de abertura, presencial, foi realizada no dia 15 de setembro e discutiu o papel da universidade no desenvolvimento e na construção da independência do Brasil.
O presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine, fez sua fala de modo virtual. Ele destacou que o papel da universidade no Brasil depois das eleições será reverter os retrocessos. “A resposta para os inúmeros desafios que temos que enfrentar está na ciência, está na universidade”, afirmou o filósofo. Ele acrescentou que o conhecimento é parte da cultura de um povo. “O sentido da vida passa pela cultura, as pessoas têm que sentir alegria de viver. É com essa finalidade que queremos um Brasil melhor.”
Focando na ocasião, o bicentenário da Independência, a presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Bonciani Nader, lamentou: “Não gostaria de falar de coisas tristes nesse dia de comemoração, mas ao meu ver o Brasil não está independente: está 500 anos atrasado”. Ela explicou sua visão, ressaltando que a educação e a universidade têm tudo ver com isso. “Ou mudamos a forma e o conteúdo do nosso ensino ou daqui a 200 anos outras pessoas estarão aqui nesse lugar, dizendo que ainda não alcançamos a independência”. Para Nader, temos uma educação eurocêntrica, que ainda ensina que o Brasil foi “descoberto”. “Ora, o Brasil sempre existiu! Essa visão, de colonizadores, é extremamente desrespeitosa para com os povos originários.”
Helena referiu-se também aos anos anteriores à “independência”, dizendo que temos eu agradecer à Napoleão por ter ameaçado invadir Portugal, o que fez com que D. João e a corte portuguesa fugissem para o Brasil. “Aqui era proibido imprimir, para que não se difundisse nenhum tipo de informação ou conhecimento. D. João – por interesse próprio e da Corte, não porque quisesse que o Brasil evoluísse – liberou as gráficas, abriu escolas, deu início à nossa ciência, que é tão jovem e já alcançou tanto”, apontou.
Voltando ao presente, Helena Nader alertou que a sociedade tem que ficar unida nesse momento de grandes desafios. “Os cortes dramáticos de recursos destruíram muito da nossa ciência, em três anos. Vamos levar muito mais tempo para reconstruir”. Porém, ela pensa que devemos aproveitar a oportunidade para reavaliar as instituições. “Vamos atualizar o CNPq, a Capes, as universidades, com um novo olhar, de quem quer de fato tornar o Brasil competitivo”, sugeriu. Ela acrescentou que estudantes de excelência o país tem, mas está preocupada: “O que está acontecendo com nossa juventude? Nesse momento crítico, onde estão os estudantes? Por quê estão tão calados? Ou fazemos um diagnóstico acertado ou vamos continuar formando os líderes que nos odeiam, aqueles que afirmam que o Brasil não precisa de inovação, que quando precisar, ele compra”, arrematou a biomédica.
Finalizando, Helena afirmou que é otimista. “O Brasil já foi líder mundial em relação ao meio-ambiente, por exemplo. Temos que resgatar isso e explicar para os nossos jovens que foi o Brasil que fez acontecer a Agenda 2030, que a ciência e a educação precisam se tornar políticas de Estado. E eles também têm que lutar por isso, para garantir o futuro para eles, seus filhos, netos e toda a população brasileira.”
Pressa para reconstruir
Alcançar a sociedade vai além de alcançar os jovens, envolve também envolver os líderes políticos eleitos. Em nível de governo estadual, o presidente da Faperj e Acadêmico, Jerson Lima Silva, agradeceu aos políticos cariocas que exigiram o cumprimento da lei na manutenção dos recursos destinados por lei à Faperj, correspondentes a 2% da arrecadação líquida do estado. Com isso, foi possível que nos últimos anos a fundação apoiasse os jovens talentos, as meninas e mulheres na ciência, entre outros projetos, e possibilitou que a UFRJ não parasse no início da pandemia, conseguindo responder de imediato às novas e urgentes demandas geradas pela covid-19, fazendo testagem e desenvolvendo pesquisa.
“As fundações de amparo à pesquisa precisam ter garantida a estabilidade nos recursos. Isso é fundamental para o bom funcionamento. Temos o exemplo da Fapesp – ninguém mexe nos recursos dela. Tentaram, mas não conseguiram. E ela dá um imenso retorno para a sociedade”, apontou o médico e cientista.
Para Jerson, todos ali presentes estavam sonhando juntos com um país melhor. “E é assim que deve ser, uma grande união em torno de objetivos prioritários para o estado e para o país. O escritor francês Marcel Proust já dizia que se adoecemos de tanto sonhar, não é sonhar menos que vai nos curar, mas sim sonhar mais”, arrematou.
A juventude cotista: o que ela têm a nos dizer?
Primeira reitora negra de uma universidade pública brasileira, a reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Joana Angélica Guimarães da Luz, afirmou que é necessário falar do passado para que se possa planejar o futuro, e apontou: “No primeiro centenário da Independência, o Brasil estava dividido em um grupo de pessoas livres, com direitos sobre as riquezas geradas no país – inclusive a ciência – e outro grupo, escravizado, sem nenhum direito. No bicentenário, continuamos divididos: uma pequena parte da nossa sociedade é composta por aqueles que sempre tiveram direitos, e a maioria é de descendentes daqueles que nunca os tiveram”, ressaltou.
Os talentos negros, conforme Joana, foram invisibilizados na história do país. “E muitos devem estar perdidos por aí, pelas favelas”, observou a geóloga, formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com mestrado em geoquímica pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e PhD em Engenharia em Recursos Ambientais e Florestais pela Universidade de Cornell, em Nova Iorque, nos Estados Unidos.
Apenas a dez anos do bicentenário, a universidade resolveu fazer sua parte, com a criação da lei de cotas. Joana Angélica destacou que a discussão anterior à decisão era sobre a capacidade das pessoas incluídas pelas cotas em acompanhar o nível do ensino universitário. “Discutia-se se essas pessoas não iriam ‘baixar o nível’ das nossas renomadas universidades públicas”. O ambiente universitário, então, não ajudou para deiaar os cotistas à vontade, e falou por si: “Entrei na universidade no final dos anos 70. Não foi pelo sistema de cotas. Eu percebia que não tinha capital cultural para conversar com meus colegas, era intimidador”, afirmou a reitora.
Sobre o que está acontecendo com a juventude, Joana Angélica apontou que somos muito conservadores na forma de pensar a universidade. “Grande parte das pessoas não vê a universidade como uma opção, como algo que lhe pertence e a que tem direito. E como, então, essa sociedade vai defender uma coisa que não está no seu horizonte?” Nessa perspectiva, ela destacou que agora devemos avaliar o que os cotistas têm para nos ensinar. “Quais os outros conhecimentos, não gerados na academia, que podem contribuir na construção desse novo conhecimento universitário? Precisamos saber o que esses jovens das periferias desejam. Temos que sair do lugar de ‘PHDeuses’ que estão generosamente oferecendo sua sabedoria – e ouvi-los”, concluiu Joana Angélica.
Universidade ainda é excludente
A reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, concordou com Joana Angélica e acrescentou: “a universidade exclui a maioria da população entre 18 e 24 anos”. E o resultado das necropolíticas é que em 2022 o número de matrículas nas universidades foi reduzido em 60%. “E a oferta de cursos e horários foi a mesma, não é por aí. Isso vem acontecendo por conta da asfixia que as universidades vêm sofrendo, pelos ataques às instituições, pelo ataque ao futuro do país.”
Do ponto de vista de Denise, essas ações deliberadas visam manter a juventude na ignorância. “A quem interessa que os jovens se desinteressem pela universidade? São os que querem que o Brasil seja subserviente, seja colônia de exploração. Hoje estamos divididos, polarizados sim: entre os que querem explorar o Brasil e os que querem construir o Brasil. E esse é o nosso lado, dos que sonham com um Brasil que coloque 50% da sua população entre 18 e 24 anos na universidade”, encerrou a médica e cientista.
Assista a gravação do evento no YouTube do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ