Leia artigo do Acadêmico Hernan Chaimovich, professor emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq, publicado no Jornal da USP em 6/9:
Afirmar que a incorporação de conhecimento em produtos e serviços determina o seu valor ou que o aumento de recursos para pesquisa em ciência e tecnologia é investimento e não gasto são pleonasmos aceitos nos países desenvolvidos. A repetição destes truísmos no Brasil, porém, não tem impactado os governos, em especial os últimos ocupantes do poder, de modo a estabelecer estratégias de Estado, e não apenas de governo, sequer consistentes com a importância da ciência para o desenvolvimento social, econômico e ambientalmente justo no Brasil.
O Brasil não teria Embraer, nem extração de petróleo em águas profundas, nem seria o mais importante produtor mundial de proteína vegetal e animal, tampouco seria o grande exportador de celulose e papel que é hoje, sem as contribuições científicas produzidas por brasileiros nestes últimos cinquenta anos. A mesma observação vale para um país que possui a mais limpa matriz energética, em parte pela contribuição da Bioenergia, ou que é o único país do mundo a usar etanol e biodiesel para transporte.
Neste quadro, poder-se-ia pensar que a produção científica brasileira já atende às necessidades nacionais e, portanto, uma política de Estado para aumentar o volume e a excelência da ciência produzida no País é uma demanda descabida que só surge de forma corporativa da comunidade científica. Este argumento, brandido pela grande maioria dos responsáveis pelo atual Poder Executivo federal, por muitos dos governos dos Estados e por parte significativa dos empresários, é uma falácia que não resiste a qualquer observação de dados. Como em muitas esferas do comportamento humano, algumas ideologias (ou preconceitos) prevalentes ignoram, de forma consciente – ou inconsciente – os dados que as contradizem de maneira frontal.
Nos locais em que existe estreita relação entre as políticas de Estado para ciência e tecnologia, as universidades e institutos de pesquisa e as empresas de bens e serviços aumentam o volume e a excelência da ciência produzida pelo país. Esses países se caracterizam, também, por elevado investimento porcentual em C&T em relação ao PIB, além de uma reação anticíclica nos montantes desse investimento cada vez que se enfrenta uma crise. Outras características que as ideologias anticiência ignoram é que a razão entre publicações científicas por habitante nos países desenvolvidos é alta, e que a colaboração entre as empresas e os centros públicos de C&T resulta, sobretudo, da existência de (centros de) pesquisa nas empresas. Cientistas formados pelas universidades de pesquisa que trabalham em centros de investigação privados dialogam com seus colegas nas instituições públicas, compreendem as descobertas e publicam trabalhos que se originam ou da própria empresa em que atuam ou em colaboração com universidades e centros de pesquisa. Esses diálogos científicos público-privados resultam em melhores e competitivos produtos e serviços e na criação de empregos bem remunerados.
A produção científica brasileira, estimada pelo número de trabalhos indexados em bases de dados como o Web of Science ou o Scimago, cresceu de forma explosiva nos últimos quarenta anos. Entre 1980 e 2020, o número de contribuições indexadas passou de pouco mais de 2 mil para quase 97 mil. Essa variação pode ser representada por uma função exponencial muito próxima aos dados disponíveis. Em 2021, como resultado de uma política federal sustentada de ataque à ciência e às universidades, já se nota um afastamento da função exponencial, com clara diminuição do ritmo de crescimento. Parte da ciência produzida por brasileiros no Brasil, como já comentado, tem impacto social, econômico e intelectual gigantesco no País.
O Brasil ocupa lugar de destaque – há anos na décima quarta posição – nos rankings que ordenam os países pelo número de publicações científicas. Contudo, quando o critério de ordenamento é o número de publicações per capita, o Brasil cai para posição próxima do 80º lugar. Aumentar a produção de ciência por habitante não é tarefa trivial, mas é dever central se o País pretende sair de um patamar no qual a produção de bens e serviços não incorpora conhecimento, o setor público não se moderniza, e as diferenças sociais continuam mantendo o Brasil em condição em que o luxo de poucos convive com a fome de muitos.
Existem aqueles que pensam que o volume de publicações por habitante em um país só depende do Produto Nacional Bruto por habitante (PNB/h). Assim, poder-se-ia pensar que se (de novo) fossem aumentados os volumes e/ou os valores das exportações de produtos primários, o aumento de PNB/h conduziria naturalmente ao aumento da produção de trabalhos científicos, ou à diminuição da desigualdade social. Toda a história deste país e muitos outros dados demonstram que essa correlação é falsa.
Hoje, discuto se existe correlação entre o número de publicações e o PNB/habitante no mundo. A Figura 1 mostra que essa correlação é fraca, pois a dispersão dos pontos impede traçar, com segurança, uma função matemática que relacione o volume de publicações com o PNB por habitante. A dependência do PNB/capita parece ser linear, o que não faz sentido, pois PPPUS$ 90 mil por habitante nesta década parece ser um teto, explicando assim uma dispersão de dados acentuada, sobretudo a partir de vinte mil dólares por habitante. Analisar país por país, em um conjunto de valores sem correlação forte, é exercício fútil, pois seria muito difícil começar a pensar como passar de uma correlação até uma possível relação causal. Contudo, percebe-se que a relação entre publicações por habitante e PNB/h é tão fraca que, comparando horizontalmente, Qatar, com um PNB de quase PPPUS$ 90 mil apresenta número de publicações por milhão de habitantes similar ao da Grécia, com PNB/h da ordem de 30 mil PPPUS$. Já na comparação vertical, a mesma disparidade se observa quando se compara Portugal com as Bahamas. É claro, portanto, que o PNB por habitante não se correlaciona com a densidade de produção científica, estimada pela relação entre número de publicações indexadas e número de habitantes.
Outro indicador usado para comparar a situação dos cidadãos, que melhor representa a qualidade de vida em cada país, é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que, além de incluir no cálculo do índice o PNB por habitante, também considera a educação e a expectativa de vida em cada país. Há pouco, as Nações Unidas apresentaram um novo índice, que corrige os indicadores pela magnitude da iniquidade de cada país, o Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado pela Desigualdade (Idhad). Este índice representa melhor que o IDH a qualidade de vida média dos cidadãos de cada país. A descrição das metodologias de cálculo do IDH e do Idhad estão fora do escopo deste artigo e podem ser encontradas em publicações das Nações Unidas.
Contudo, devo apontar que tanto o IDH como o Idhad contemplam três dimensões relacionadas com a qualidade de vida dos cidadãos de um país:
• vida longa e saudável,
• grau de conhecimento e
• padrão de vida decente.
Estas dimensões são representadas por indicadores, que contemplam a expectativa de vida ao nascer, os anos de estudo esperados, os anos de estudo efetivamente cursados e o PNB per capita expresso em dólares, corrigidos pela paridade de compra. Estes indicadores geram índices correspondentes, que são relativizados e multiplicados para gerar um único número. Este número, que varia de zero a um, reflete a qualidade de vida de cada país em determinado ano.
Nas palavras dos responsáveis pela construção e divulgação destes índices:
“O desenvolvimento humano tem a ver com as liberdades humanas. Trata-se de construir capacidades humanas – não apenas para alguns, nem mesmo para a maioria, mas para todos. Em 1990, o PNUD publicou o primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH). Desde então, produziu mais de 800 RDHs globais, regionais, nacionais e subnacionais e organizou centenas de workshops, conferências e outras iniciativas de extensão para promover o desenvolvimento humano. Essas atividades ampliaram as fronteiras do pensamento analítico sobre o progresso humano para além do crescimento econômico, colocando firmemente as pessoas e o bem-estar humano no centro do desenvolvimento de políticas e estratégias” (em tradução livre).
A correlação entre o HDI corrigido pela distância social e as publicações indexadas por milhão de habitantes é exponencial (Figura 2) e apresenta uma correlação bem mais elevada do que a mostrada na Figura 1, onde se relacionava o mesmo indicador com o PNB por habitante. Pode-se notar que a dependência do número de publicações das variáveis usadas (PNB/ habitante e Idhad) é muito diferente. Sem pretender estabelecer relações causais, esta figura parece correlacionar bem melhor o volume de publicações por habitante de um país com um indicador que reflete o bem-estar de todos.
Melhor educação para todos, qualidade e expectativa de vida são componentes centrais para que um país, ao produzir conhecimento, possa ser mais rico e, ao mesmo tempo, socialmente mais justo respeitando o ambiente. Claro que isso não é suficiente, as políticas de Estado precisam incluir uma série de outros componentes. Mas, como sugerido aqui, o crescimento exclusivo do Produto Nacional Bruto não conduz a uma sociedade que, por ser justa e consciente, produz mais conhecimento. O simples crescimento do PNB pode, como vemos no Brasil, levar a uma riqueza enorme para poucos, em um mar de esfomeados.